A PASSAGEM - capítulo 01

Genon esticou o braço para além do peitoril da janela, para cortar dois raminhos da pereira, que prejudicavam a visualização de grande parte da cidade. Ele mesmo achava muito estranha essa dualidade em seu íntimo, que o fazia gostar de viver em centro populoso, bem movimentado, mas afastado do burburinho cotidiano. Aliás, ele vivia no alto de um morro, que se situava em bairro periférico, de onde podia ver muito, sem participar, diretamente.

Amava suas plantas, seus animais e a chacrinha, onde se sentia diferente dos demais, com quem, periodicamente, interagia. Tinha poucos amigos e somente um familiar (uma tia), e nenhum deles entendia o porquê de ele ter escolhido lugar tão ermo para viver, pois, embora não fosse abonado, podia subsistir, sem grandes problemas, em vários locais bem situados. No entanto, a cada alusão a tal tema, ele sorria, encarava o interlocutor, e pedia para que fosse mudado o assunto. E não adiantava insistir. Pura perda de tempo.

Naquela manhã, ao apreciar a vista de que tanto gostava, pôs-se a pensar em tudo que tinha vivido até aquela data. Estava com quase setenta anos, lembrava-se de ter vindo morar ali com trinta e tantos, cheio de planos, pensando em inovar e virar um empresário bem sucedido. Logo de cara, delineou toda a propriedade, de um alqueire, e em divisões perfeitas, plantou, construiu, estruturou, cuidou de muitos detalhes, e, depois disso, parece que desceu um véu sobre sua memória, e muito pouco do que ocorreu, nos outros trinta e poucos vividos, até o presente, ocupava sua mente. Lembrava das tarefas do dia a dia, das visitas, conversas e pequenas comemorações domésticas, alguns poucos incidentes, e só.

Permaneceu absorto, olhando o horizonte, e lembrou, também, de Altino, seu vizinho, falecido há pouco mais de dois meses. Era um sujeito tranquilo, bom de conversa, que veio morar na casinha que Genon construíra anos antes (para quê, mesmo?). O imóvel ficou vazio durante bom tempo, até que surgiu aquele camarada, numa cadeira de rodas, empurrada por sua esposa, Rita. Perguntou-lhe se o aceitaria como inquilino, e, sem mais nem menos, a coisa se acertou, sem mais papo, sem documentos, e desde então, o casal ali viveu, até que Altino resolveu se despedir da vida. O mais estranho é que, no dia seguinte à sua morte, a casa já estava vazia, Rita sumiu, sem se despedir, e a impressão que ficou é que nunca alguém havia morado naquele lugar. Tudo limpo, sem marcas, sem desgaste, sem vestígios.

Agora que lhe vinham à mente tais impressões, recordava que foi logo após a chegada de Altino e sua mudança, que tudo se aquietou em seu lar, em seu íntimo, como se a chama inicial tivesse se apagado. Dali pra frente, vivera para se manter e cuidar de sua propriedade, e ainda que amigos e a tia o questionassem, nada respondia, pois não sabia o que dizer.

Muitas lacunas na cachola! Muitas dúvidas, que só começavam agora a incomodar.

Resolveu voltar à casinha, onde Altino vivera com a esposa, e fuçar um pouco mais.

Antes de entrar, ao olhar na parede lateral, observou uma mancha no alto, e quando entrou, foi até o quarto, verificando que ela também aparecia do lado de dentro. Nunca havia reparado naquilo, e como sabia que nenhum encanamento passava lá, achou melhor dar uma olhada mais apurada. Juntou as ferramentas necessárias e subiu na escadinha, para olhar de perto. Tinha de tirar o reboco, para ver como estava a parede nua. Pegou o ponteiro, posicionou-o bem no centro da mancha e deu uma martelada.

Um estrondo! Um tremor! Era como se o ar estivesse ondulando, vibrando.

Todo seu corpo tremia, e não conseguia se movimentar ou raciocinar direito.

Não soube definir quanto tempo ficou nesse estado, mas, repentinamente, normalizou-se a situação. Ao olhar a parede, viu que não sofreu nenhum mínimo dano, mas algo estava diferente. Só não sabia, exatamente, o quê. Olhou para a janela e viu que estava anoitecendo.

Como podia ser isso? Há pouco iniciara o dia!

Será que ficara tanto tempo assim fora do ar? Imóvel e no alto da escadinha?

Decidiu continuar a investigar a insólita ocorrência na manhã seguinte.

Voltou pra casa e arrumou a mesa para lanchar, mas estava sem fome. Ligou a tv, mas não tinha vontade de assistir nada. Acomodou-se na poltrona, fechou os olhos, respirou fundo, e . . . , estranhamente . . . , uma avalanche de lembranças começou a invadir-lhe o íntimo.

Altino! Rita! A mancha! Quanta coisa perdida e recuperada, meu Deus!

A passagem! Como pude me esquecer de algo tão surpreendente e único?

Preciso, urgentemente, entender o que está acontecendo comigo!

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 15/06/2019
Reeditado em 16/06/2019
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