A PASSAGEM - capítulo 05

A mulher se achegou e o abraçou com suavidade.

- Sei que está amedrontado, inseguro e até incrédulo, mas sou eu mesma. Veja!

- O máximo que posso dizer é que parece ser você. Mas . . . como?

- Tenho muito a lhe explicar, mas antes vou providenciar para que se lembre mais.

Pôs as mãos nas têmporas dele e fechou os olhos. O rapaz sentiu calor, tremia, a vista embaçou e deixou de sentir o corpo. Percebeu que desfalecera ao acordar e ver que estava deitado na cama, em sua casa. Sentou-se e viu que estava em perfeitas condições físicas.

Ao vê-la entrar com uma bandeja, disse: - Heintim?

De imediato, não entendeu por que a chamou assim, mas logo lembrou que a conhecia desde que veio morar ali, há mais de trinta anos. Por que a esquecera, então?

- Sei o que está pensando, querido! Sou, realmente, a Heintim que convivia consigo. Sei que lembra, também, que conheceu Altino na tarde em que vim com ele pedir que alugasse a casa, mas a verdade é que você o conheceu um ano antes, num orfanato que ele auxiliava e no qual éramos voluntários. Compadeceu-se do estado dele, conversamos depois a respeito, porque sabíamos que o portal lhe proporcionaria extensão de vida com melhor qualidade, permitindo que continuasse o trabalho filantrópico por anos ainda. E você resolveu beneficiá-lo!

- Lembro que encontrei o portal após aproveitar as ruínas daquela casinha e reformá-la. Como me fez bem! Remoçei, tornei-me, mentalmente, mais apto, fiquei muito mais disposto e forte, e ainda encontrei você, que, certa noite, saiu dali, como fez hoje, só que bem tímida e quietinha, querendo me conhecer, porque me via de lá do outro lado, sempre, como me disse.

- Não sabíamos, porém, que ao trazer Altino para perto do portal, noite após noite, toda a influência que exercia sobre você seria transferida para ele. Pior foi que sua memória sobre aquilo foi se apagando, e até eu, vinda de outra realidade, deixei de existir para sua mente. Dia após dia você esquecia detalhes a meu respeito, até que numa manhã perguntou quem eu era.

- Imagino que resolveu ficar por perto, fazendo de conta que era esposa de Altino, até que tudo se resolvesse, de alguma forma. De Heintim, virou Rita. É isso?

- Acertou, querido! Altino se sentia culpado por vê-lo naquele estado, mas sabia que era situação reversível, e após um tempo que considerou prolongado demais, resolveu que já era hora de lhe devolver o que havia recebido. Preparou tudo e sumiu, sabendo que morreria em poucas semanas, longe do portal. Tentei dissuadi-lo, mas estava convicto e não me ouviu. Ao ver que tinha partido, atravessei o portal, novamente, e aguardei até poder voltar.

- Lembro, Heintim! Lembro que a amo! Lembro, inclusive, de tudo que o portal me proporcionava, mas ainda nada sei sobre ele ou você, sua origem, sua natureza.

- Eu o observei, de lá de meu mundo, por quase um ano do seu tempo, até que resolvi contatá-lo. Convivemos por quase dois anos, sendo um ano e meio antes de Altino estar frente ao portal, e quase seis meses após. Eu queria levá-lo ao outro lado, mas sua resposta era a mesma, sempre: “Temos tempo de sobra!” Não o tivemos, porém. Após o esquecimento, você envelheceu do modo usual de seu tempo, enquanto eu me mantive, por transitar entre os dois mundos, continuamente. Quero lhe dizer tudo de lá e de mim, quando quiser saber.

- Disse bem! Agora sou um velho, e você uma menina. Linda e meiga, como sempre foi.

- E esta menina ama esse velho! No entanto, há muita coisa que você ignora.

- Com o tempo que me resta, quero saber tudo que puder, quero estar consigo, quero ter coragem de continuar o belo trabalho de Altino e, sei lá o que mais.

- O tempo só parece rígido aos humanos deste planeta, mas é medida extensiva, que pode ser manipulada de várias formas. Sobre sua própria pessoa, você conhece bem pouco.

- Que quer dizer com isso?

- Como acha que encontrou a passagem? E esta propriedade? Como chegou aqui?

- Uma pessoa me ofereceu, sabendo que eu queria um lugar sossegado.

- Conhecia essa pessoa? Ela sabia de suas preferências ou seu jeito de ser?

- Agora que comenta isso, lembro que o sujeito apareceu na empresa onde trabalhava, disse que eu perdia tempo ali, que deveria ter meu canto, viver em contato com a natureza e ir de encontro aos meus ideais. Não questionei nada, mas adorei ouvir e aceitei sua dica, depois.

- Pois chegou a hora de conhecer aspectos que ignora de sua própria realidade, antes de conhecer algo de meu mundo ou de minha pessoa. Prepare-se para algumas surpresas!