A  SINISTRA  AVENTURA
 
 
 
                                                                                        Miguel Carqueija
 
 
                                                                 INTRODUÇÀO
 
SUMIÇO VIRTUAL
                      
                                                         
 
                     
 
     No tempo da exacerbação eletrônica, é surpreendente que alguém nos procure pessoalmente. Foi o que eu disse a Rik, quando ele me falou sobre as duas mulheres.
— Manias... — disse ele. — Pessoas que têm manias agem assim.
Eu me encontrava muito ocupado cortando em fatias uma polenta frita, buscando formar quadradinhos com quinze centímetros de lado (o tamanho ideal para fatias de polenta frita) e, distraidamente, pedi a Rik que as introduzisse.
Uma mulher madura e uma filha muito mais nova. A garota tinha feições francas e decididas e um olhar firme, emoldurado pelos cabelos negros soltos; a mãe, de cabelos grisalhos e mais curtos, usava antiquados óculos, era mais cheia de corpo e de rosto, mais baixa, e seu aspecto geral dava a entender bonacheirice e objetividade, mas me impressionou menos que a filha.
— É um prazer conhecê-lo, Eduardo Lampreia — disse ela, apertando-me a mão e dispensando tratar-me por “senhor”, o que provavelmente tinha a ver com a sua condição de baronesa — sou Marluce Cordeiro, esta é a Elaine, minha filha.
— Bem, se desejarem nos acompanhar...
— Não se preocupe...
— Há muita coisa aqui — indiquei a baixela com geléias, queijos e sucos de frutas: pitanga, nectarina, ameixa. Havia guarnições com pão, torradas, leite, café e chá, além de chocolate.
— Ele é um “gourmet”, mamãe — disse Elaine, segurando o braço de Marluce. — Vamos provar alguma coisa.
     A contragosto a baronesa Marluce sentou; Elaine fez o mesmo e procurou logo a xícara, jarra de suco e as torradas de orégano.
— Bem, Lampreia, eu agradeço a sua hospitalidade, mas eu vim procurá-lo...
— Sem dúvida para encontrar o seu marido, o Barão Altino Vanetta.
— Como é que você soube? — ela parecia sinceramente admirada.
— Ele lê e assiste notícias, mamãe — Elaine fez esse comentário enquanto passava geleia na torrada, muito interessada em comer. Ao contrário da mãe, ela não sorrira nem um pouco desde que entrara no aposento.      
— Bem, isso é verdade. O sumiço de meu marido está nos angustiando e tem que ser esclarecido. Já que a polícia não serve para nada...
— A polícia fez o possível — cortou Elaine.
     Rik foi chamado ao telefone e ficou conversando com uma mulher, a alguma distância; sem pressa de resolver o assunto, eu ia acumulando impressões sobre aquelas duas mulheres, muito diferentes entre si. Podia dar um pouco de corda...
— Por que a senhora demorou tanto a me procurar?
— Talvez eu devesse tê-lo feito antes. Mas porque confiei na polícia...
— Objetivamente, não encontraram nenhuma pista apreciável?
— Objetos dele, não lembra das notícias? Seu laptop, seu sensor psíquico...
— Tínhamos que ter ido lá — cortou Elaine. — conheço meu pai e acredito no meu instinto. Eu achá-lo-ia. Mas mamãe fez um caso sério, com medo que eu me arriscasse...
— Você quer parar de interromper?
— Por que me trouxe, mamãe? Eu tenho boca e opinião.
A baronesa voltou o rosto para mim, visivelmente irritada:
— Não ligue para ela. É uma filha problemática, você já está vendo...
— Por favor — observei. — Vamos nos concentrar no problema de achar o barão. A senhora tem alguma idéia do que devemos fazer?
— É claro. Você vai à Floresta Helênica e acha o meu marido, se ainda estiver vivo.
— Eu vou com ele — interveio Elaine, com os braços cruzados.
— Você não vai! Eu a proíbo! — e a baronesa deu um soco na mesa.
— Você não pode me proibir. Eu sou maior de idade.
Embora a mãe já gritasse Elaine mantinha-se firmemente calma, como se fosse feita de gelo. Mesmo taxativa, falava no mesmo tom com que diria: “Acho que hoje vai chover.” Comecei a perceber que a garota era desse tipo de pessoa que mata os outros de raiva só com a sua calma.
— Bem, vamos ver... — comecei, mas nesse ponto a voz de Rik se fez ouvir mais alta e irritada:
— Onde é que você pensa que eu vou arranjar esse dinheiro? Eu não sou o Banco do Brasil!
Ele diminuiu o tom, percebendo que havia ouvintes. Elaine encheu de novo o copo de suco e observou secamente:
— Quem irá além de você, Eduardo?
— Ora, o Rik, meu sócio, é claro...
— Calculei isso. Assim ele foge um pouco dela, não é?
— Como disse?
— Para com isso, Elaine! Não se meta com a vida dos outros! Eduardo, não repara... não sei porque ela é tão mal-educada...
— Mamãe — Elaine fuzilou com o olhar — você é muito mais mal-educada do que eu.          
— Cale a boca! Não se fala assim com a mãe!
Ela ia replicar quando o Rik se fez ouvir novamente, sacudindo o aparelho:
— Por que você tem sempre que se meter em encrencas?
Acrescentou algumas pérolas verbais que fizeram a baronesa enrubescer, enquanto Elaine sacudia os ombros. Eu me levantei, tomei de repente o fone do Rik e fui dizendo:
— Escute aqui, Adelaide, aqui é o Eduardo Lampreia. Me faz um favor, ligue mais tarde para o Rik. Não me leve a mal, é que nós estamos atendendo duas clientes importantes... o que? Não é a Adelaide? É a Rosana? Bem, de qualquer forma me faça esse favor. Um abraço! — e recoloquei o fone no gancho.
— Por que fez isso? — reclamou Rik. — Piorou ainda mais a situação!
— Esquece. Vamos atender as clientes. Desligue o seu celular — e assim dizendo, coloquei o convencional na gravação.
Quando retornei às clientes, a baronesa estava preocupada:
— Escute, meu amigo, acha mesmo que levar o seu sócio é necessário?
— Não se preocupe, minha senhora, ele é ótimo investigador e vai ser bom para ele se afastar um pouco da cidade.
Tentei retornar ao fio da meada:
— Bem. Por que mesmo o seu marido fez questão de ir à Floresta Helênica?
— Altino é meio excêntrico. Ele quer, porque quer, testar algumas teorias malucas a respeito de lapsos dimensionais. A Floresta Helênica era um prato cheio...
— Eu imagino — respondi, utilizando a minha régua culinária para cortar mais fatias de polenta em cubos de quinze centímetros de lado. — Não sei porque as pessoas pegam excentricidades. Mas o que ele acha que são os lapsos dimensionais?
— Para o Altino são realidades virtuais, por estranho que possa parecer.
Elaine se intrometeu:
— Eduardo, é o seguinte: papai acha que uma civilização antiga e alienígena habitou a Terra num passado remoto e obscuro, e que essa raça divertia-se praticando jogos eletrônicos em escala planetária. Dessa maneira abriram nichos virtuais em vários pontos do globo, ambientes imaginários como aquele que tem na Enterprise do Capitão Picard, e que esses lugares virtuais sobreviveram à tal civilização.
— E que civilização maluca foi essa, posso saber? — indagou Rik.
— É claro! Tratar-se-ia dos Allutin, uma raça bípede dotada de anteninhas flexíveis na cabeça... que nem aquelas do Chapolin Colorado.
— Deixe de besteiras! — protestou Marluce. — Olhe aqui, Eduardo, as idéias de meu marido pouco importam. O que importa é trazê-lo de volta!
— Mamãe, eles têm que entender um pouco da psicologia e das intenções do papai. Senão como é que...
— Deixe que eu falo com eles! Por que fui trazê-la aqui? Oh, vocês me desculpem!
— Senhora, que é isso... — disse Rik.
Resolvi encerrar a discussão:
— Baronesa, nós iremos. Se fazem questão virão conosco, por sua conta e risco. São 50.000 créditos adiantados, o que já cobre as despesas iniciais e paga os nossos serviços por uma semana. Se concordarem, amanhã mesmo estaremos na Floresta Helênica.
— O que? Isso é muito dinheiro!
— Talvez do seu ponto de vista, mas não do meu. Nós teremos muitas despesas e iremos arriscar nossas vidas.                                                                                      
— Como arriscar a vida, homem? Não pode haver risco nenhum por lá.
— Está bem, minha senhora. Se de fato não existe nenhum perigo por lá, então por que o seu marido desapareceu?
— Porque é um panaca, é claro! — gritou ela, perdendo a pose.
Elaine se ergueu de repente:
— Basta, mamãe! Pague logo a eles! Ou não percebeu que eles são profissionais?
— Está bem, eu pago, mas exijo recibo! E tem mais: se você for com eles eu vou também! Ou você acha que eu vou deixar uma maluca como você perturbar o trabalho dos meus detetives?
Mais tarde Rik comentou comigo ter quase deixado escapar que preferia levar uma doida na excursão, a ter que levar duas.
 
 
CAPÍTULO 1
 
AS RAZÕES DE LAMPREIA
 
 
Ir na Floresta Helênica não é tão difícil assim, mas é preciso possuir um dímen bem
apurado. É necessário seguir por um misterioso atalho no bosque da sub-sede de Guapimirim do Parque Nacional de Teresópolis. E quando o dímen vibra em harmonia com o portal você pode passar. Mas passe rápido. Com o dímen você também pode voltar. E se você perder o seu dímen na Floresta Helênica,  pode ser trazido de volta pelo aparelho de tropismo ou por uma equipe de resgate.
         No caso do Professor Altino isso não funcionou. E eu, deitado em meu leito, ainda insone, começava a me arrepender por ter aceitado a missão. Talvez fosse menos arriscado mergulhar nos pélagos profundos, habitados por “krakens”, a penetrar num local misterioso que nem sequer fazia parte do nosso planeta. Era aterrorizador.
         As teorias sobre a verdadeira natureza dos bolsões extradimensionais eram muitas e conflitantes. A teoria dos buracos de verme, de Topázio Tenco, tinha muitos seguidores, e era bastante perturbadora. Os bolsões não eram infinitos, ao que parecia; por isso o mais intrigante era explicar tal coisa: como poderia o nosso universo infinito (ou pelo menos ilimitado) abrir-se para um universo aparentemente finito. Mas Tenco argumentava que tais regiões eram mais inexploradas que a Lua e, consequentemente, não se podia afirmar com plena certeza a ausência de passagem para mais adiante. A finitude seria, portanto, aparente; haveria um meio de ultrapassar as barreiras e seguir para mais além.
         Essa teoria supunha uma causa natural e não sobrenatural para enclaves extradimensionais como a Floresta Helênica, o Deserto Cor-de-Abóbora e regiões similares. Mas existiam os seguidores da teoria dos Allutin, que me parecia mais perturbadora ainda. Eles eram mencionados em antigos tratados ocultistas como o Necronomicon, mas eu não quisera mencionar esse detalhe.
         Tinha muitas contas para pagar e precisava de dinheiro.
 
 
CAPÍTULO 2
 
ALÉM DO PORTAL
 
 
         O funcionário que nos atendeu, de cara quadrada e idade avançada, parecia um desencorajador profissional.
         — Deixa eu explicar a vocês. Esse troço aonde vocês vão é lugar nenhum, é coisa alguma, e não tem saída conhecida em qualquer parte. É uma floresta tropical repleta de árvores de tipo comum, de mistura com outras, desconhecidas. Existem insetos mordedores, escaravelhos gigantes, lagartos de um tipo muito agressivo e segundo as lendas, seres escuros e muito perigosos, que vivem nas copas das árvores e atacam facilmente. Há quem diga que são os chupacabras. Já houve quem visse o demônio de Jersey, esvoaçando acima das árvores e gritando: “Equilibrem o orçamento nacional!” Contam-se também histórias sobre seres repelentes que surgem de buracos no chão, algo assim como lesmas hipertrofiadas. Em suma, um catálogo de horrores que, francamente, não deviam interessar senhoras prendadas e cavalheiros de alto nível.
         “Alto nível? Será que ele está falando do Rik?”, pensei, enquanto assinava o termo de responsabilidade. Marluce estava agitada, impaciente, e diante da indiferença glacial de Elaine, parecia ficar mais irritada ainda.
         — Está ouvindo, Elaine? Haja o que houver, não se afaste de nós nem um pouco e nem um segundo! Sobretudo, não se afaste de mim, ouviu bem?
         Elaine bocejou.
         O camarada — Velton, conforme o seu crachá — entregou-me então uns calhamaços e esclareceu:
         — Isso aqui são os manuais de instrução, as certidões de seguro de vida e cópias dos termos de responsabilidade que vocês assinaram. Como já estão armados, creio que já estão prontos!
         Marluce puxou-me pelo braço, impertinente como de hábito.
         — Não há mais nada a fazer? Então vamos indo!
         — Vamos! — disse Rik, bancando o pimpão. — Vamos à nossa aventura! — e foi andando à nossa frente, portando o seu dímen. Elaine seguiu-o, muito elegante em sua blusa quadriculada, de faroeste. Fui atrás deles e logo a baronesa, numa corridinha, alcançou a filha:
         — Lembre-se do que eu lhe falei!
         — Mamãe, por que não ficou em casa? Você vai é nos atrapalhar!
         Fiquei observando o vôo de uns escarabídeos, já entediado com as turras de mãe e filha. A vegetação era exuberante, agreste, e eu não me esquecera da ocorrência de cascavéis, mas tínhamos conosco o soro anti-ofídico.
         Penetramos na misteriosa vereda.
         Árvores, folhas, samambaias, gramíneas, flores, insetos, cheiro de açafrão, o chão úmido, galhos que afastávamos, e os dímens vibrando cada vez mais...
         Olhei para o meu, na palma de minha mão, seguro por uma pulseira: redondo como uma bússola, seu ponteiro vibratório já em convulsão. Num momento havíamos passado.
         Estávamos numa clareira. Passado o choque inicial nossa atenção foi despertada por um pterodáctilo anão que passou guinchando a pouca distância.
         A baronesa teve um gesto inusitado: se abaixou, pegou uma pedra e fez menção de lançá-la. Elaine deteve-lhe o gesto:
         — Pare, mãe! Ficou maluca?
         — Como você ousa? Largue meu braço!
         Elaine largou-a: o bicho já havia sumido. Cerrando os punhos de raiva, a garota exclamou:
         — Mamãe, isso é demais! Você se comporte! Quer nos arranjar encrencas?
         — Cale a boca!
         Eu me aproximei, já agastado:
         — Baronesa Marluce, nós não podemos ficar agredindo as formas de vida desse mundo. Isso aqui não é a Terra!
         — Como não é a Terra, homem? Nós não viemos aqui de espaçonave!
         — Não importa, baronesa. Ultrapassamos um portal dimensional. Ponha na cabeça, por favor, que estamos em outro mundo.
         — Isso aqui não é outro mundo! É apenas um anexo do nosso! Vocês não vêem que é o mesmo sol?
         — Nós não sabemos — disse Rik. — As aparências podem enganar.
         Elaine tocou-me o braço:
         — Vamos, Eduardo. Descubra o meu pai que é melhor.
 
 
CAPÍTULO 3
 
NO MUNDO ALÉM DA TERRA
 
 
         Olhei em volta. A princípio não sabia o que fazer. Não via pista alguma da passagem do barão e eu não estava acostumado a rastrear as pessoas na selva, como um índio pele-vermelha. Mas antes que eu pudesse me resolver a qualquer gesto a Elaine mostrou a sua bússola e passou à frente do grupo:
         — Nós estamos num raio de dez metros do ponto em que meu pai emergiu, portanto encontraremos sinais dele, assim espero.
         — Mas a polícia e os funcionários salva-vidas do parque já estiveram aqui — objetou meu sócio.
         Elaine não o quis escutar e saiu andando.
         — Conheço papai. Ele não é um fanático da selva. Iria, sem dúvida, por onde a selva é menos densa, lá na direção daquelas quaresmeiras, eu acho.
         Corri para alcançá-la; afinal, não fôra contratado como guia e detetive para deixar que ela conduzisse a investigação. Mas antes que eu pudesse falar qualquer coisa a mãe da filha também a alcançou, já gritando:
         — Você não sabe nada! O Altino procurava uma civilização perdida; por isso ela deve estar no mais espesso da mata, pois se é coisa antiga os cipós já envolveram tudo...
         — Isso é relativo, mamãe; ele não tinha equipamento para desbastar selvas virgens...
         Havíamos chegado a outra clareira. Eu procurava uma brecha no bate-boca para falar, quando talvez por instinto olhei para cima e só tive tempo de gritar:
         — Cuidado!
         Elaine olhou, bem na hora em que a criatura lhe pulava de um galho baixo em seu pescoço. A reação da garota foi surpreendente: acertou um golpe de caratê na carótida do assaltante, em pleno ar; e a fera caiu estatelada no chão, gravemente atingida.
         Esfregando a mão direita, dolorida com a força da pancada, ela observou:
         — O que é isso?
         — Um chupacabras — respondi. — Um dos perigos desta região.
         Era um bicho horripilante de se olhar, por isso chamei o grupo:
         — Vamos embora, vamos nos afastar dessas árvores!
         Era a minha chance de liderar o grupo. Rik e Elaine me seguiram sem discussão, mas eu devia saber que precisava vigiar a baronesa.
         BANG!
         Voltamo-nos os três, espantados. A pistola de Marluce fumegava e o chupacabras agora era um cadáver, entornando sangue.
         ELAINE:
         — Mamãe! Mamãe! Outra vez, não!
         — Cale a boca! Esse bicho ia matar você! Não quero escutar mais malcriações da sua boca!
         Elaine cobriu o rosto com as mãos, contorceu-se agoniadamente, não tinha mais palavras:
         — Oh, mãe... você, você... oh, por que? POR QUE eu tenho que aguentar isso? — assim dizendo, afastou-se de nossas vistas, chorando.
         — Baronesa Marluce — falei — a senhora avalia o que acaba de fazer? Matou uma criatura deste mundo, que não é o nosso. Podem haver outros da mesma espécie por perto. Poderemos sofrer represálias.
         — Ora, Lampreia! E a Elaine não o derrubou?
         — Ela agiu para se defender e não matou a criatura.
         — Acho isso uma besteira. Exageros de ecologia! Esse chupacabras ia nos atacar de novo assim que acordasse! Agora, onde é que a Elaine foi?
         — Baronesa, por favor deixa eu conversar com ela, a coitada está nervosa e se a senhora for procurá-la agora vai ficar mais nervosa ainda! Fique conversando com o Rik, que eu volto já!
         Abri caminho entre as samambaias e trepadeiras e encontrei Elaine sentada numa pedra à beira de um riacho límpido, lenço na mão, soluçando.
         — Não leve isso tão a sério — falei, sentando a seu lado.
         Ela olhou-me com uma camaradagem que não mostrara até então.
         — Me desculpe, Eduardo. Não sei mais o que fazer com a minha mãe. Você compreende? Eu não sou má filha, não quero ser. Cada vez que eu brigo com ela, sinto remorsos. Mas é demais para a minha paciência... as coisas que ela faz...
         — Bem. Enquanto estamos aqui por que não deixa que eu conduza a expedição e que eu resolva os problemas que ela causar? Assim você pára de esquentar a cabeça.
         Ela baixou o olhar.
         — Se você acha isso... se acha que pode ter paciência com ela...
         — Sou obrigado a ter. Afinal ela está me pagando para isso.
         Ela deu um riso espontâneo. Afinal, ela era capaz de rir.
         — Eu tenho tanta vergonha. Mas está bem: deixo-a a seu encargo. Você é extraordinário, Eduardo.
         — Você também.
         Ela voltou o rosto para mim e eu acrescentei:
         — Diga... você tem namorado?
         Ela deu um sorriso amarelo.
         — Tenho aspecto disso?
         — Quem sabe?
         Num impulso romântico, eu a beijei. Fiz aquilo cheio de temor de uma reação temperamental. Mas não. Ela correspondeu ao beijo e, logo em seguida, enlaçou o meu pescoço.
 
 
CAPÍTULO 4
 
A SURPRESA
 
 
         Voltamos poucos minutos depois, guardando segredo com relação à evolução de nosso relacionamento. Tinha sido muito espontâneo e inesperado de parte a parte. Mas, ao me aproximar, achei um pouco suspeito o colóquio em voz baixa mantido por Rik e a baronesa. Nos dias atuais as matronas da nobreza já não fazem tanta questão de se afastar dos plebeus, mas o caso é que Marluce era casada e queria o seu marido de volta. Só me faltava o Rik querer bancar o Don Juan de golpe do baú diante do meu nariz, mas talvez tudo fosse produto da minha imaginação.
         — Ela já se acalmou? — indagou a aristocrata.
         — Já, e espero que a senhora também.
         — EU ESTOU CALMA! — esbravejou ela.
         Surpreendentemente a Elaine não protestou, a ponto de Marluce olhar para ela, como se estranhando a ausência de reação imediata.
         — Vamos prosseguir — disse Elaine, em tom prático. — Não adianta ficarmos aqui perdendo tempo.
         Empalmou novamente a bússola e seguiu adiante, sem olhar para trás, e todos nós a seguimos, Marluce porém aos gritos:
         — Quem você pensa que é? Você não está comandando a expedição. Lampreia, faça-a parar! Eu o autorizo a segurá-la a força!
         — Baronesa, por favor — disse Rik, numa intervenção surpreendentemente séria. — Já tivemos encrenca demais. Se a senhora quiser guiar a expedição, por que não o faz?
         — Não — apressei-me a dizer. — Não há mal nenhum em seguir nessa direção. Fui eu quem decidiu isso.
         — Foi você?
         — Sim, baronesa. Temos de ir aonde os policiais não foram...
         Notei que todos olhávamos frequentemente para cima. Súbito umas figuras estranhas foram vistas a distância, entre nuvens baixas. Figuras tão medonhas que desafiavam a imaginação. Elaine recuou até junto a nós:
         — Asas-negras! Escondam-se! Não devemos deixar que nos vejam!
         Às nossas indagações sobre como ela podia estar a par dessas coisas, a garota foi taxativa:
         — Eu li o Necronomicon, meu pai tem um exemplar. Os asas-negras são homens-morcegos, são muito perigosos e provavelmente ligados ao culto de Cthulhu. Eles nos matariam para oferecer um culto ao seu ídolo.
         Com a minha luneta procurei observar a ameaça. Felizmente, afastaram-se rapidamente na direção oposta.
         — Talvez isso não passe de lenda — falei, pouco à vontade. — Mas os seres existem.
         — Você já viu — disse Elaine — que isso aqui é perigoso. Eu temo por meu pai, ele não está acostumado...
         — Não comece a agourar! — bradou Marluce, com sua desabridez habitual. — Você tem uma boca enorme!
         — Mamãe! — queixou-se ela, procurando visivelmente se conter.
         Eu abri a boca, prestes a pronunciar uma admoestação contra a grosseria da baronesa, quando subitamente, entre dois cactos de cor beije, surgiu uma figurinha estranha, uma espécie de garota quase anã e magricela, com anteninhas na cabeça e vestida algo assim como uma pajem do século XIV.
         — Ah, vocês estão aí! Finalmente chegaram!
         Diante de observação tão banal, as reações variaram: dona Marluce deu um piripaque, desmaiando nos braços de Elaine (que ficou completamente fria); Rik deu um pulo e gritou: “Caramba! O que é isso?”, e eu, mais prático, pus a mão esquerda no coldre.
         Duas outras figuras, agora masculinas, apareceram por trás da primeira, e também eram antenadas.
         — Como sabem nossa língua? — indagou Elaine, com propriedade.
         — O Professor Vanetta nos ensinou — respondeu a criatura.
         — Meu pai? E onde ele está?
         — Na Grande Mola dos Allutin — respondeu a outra.
 
 
EPÍLOGO
 
O PROFESSOR
 
 
         Marluce não parou de chiar enquanto acompanhávamos o trio:
         — Ah, o seu pai vai ter muito que explicar! Que desaforo, ficar tanto tempo fora de casa e sem dar notícias! Ele é um leviano, mesmo! Pensar que eu me afligi tanto e trouxe dois estranhos para procurá-lo...
         — Mamãe, não fale assim dos nossos amigos!
         — Amigos? Você por acaso já fez amizade com eles? Esquece que eles estão trabalhando para a gente?
         — Ora essa, mãe, e daí?
         Atini, a garota das antenas, voltou-se para a matrona e falou:
         — A senhora quer parar um pouco? Já estou ficando irritada!
         — O que? E quem é você para me falar desse jeito? Eu sou uma baronesa!
         — Aqui isso não significa nada!
         — Dona Marluce — observei, evitando propositalmente chamá-la de baronesa (afinal, aguentá-la era um verdadeiro ordálio) — por que não aguarda os acontecimentos? Ainda nem falamos com o seu marido!
          — Como se atreve a falar assim comigo? Eu estou lhe pagando, lembre-se!
         — Perdão, mas o que a senhora me paga não é favor nenhum!
         — Como disse?
         — Pois sim! — e aqui eu parei de andar para enfrentá-la — O que a senhora acha? Que eu, um profissional respeitado do gênero, sou contratado para realizar o meu serviço e não posso dirigi-lo? A senhora não está na sua terra, e nem lá pode esnobar os outros com seu título de baronesa. E nem eu estou aqui, acompanhando esses “chapolins”, por...
         — O que foi que disse? — Atini olhava-me bem séria: — Não conheço essa palavra. O que o senhor quis dizer ao nos chamar de “chapolins”?
         — Esquece, dona — foi Rik quem interveio. — Nesse grupinho todo mundo é meio maluco, menos eu, é claro. Nós estamos muito longe ainda do catedrático?
         — Do que?
         Elaine deu um empurrão em Rik:
         — Por favor, Atini. É meu pai que interessa. Guie-nos a ele. Não se importe com o que eles falarem.
         Afinal, depois de muito disse-me-disse, chegamos a uma grande clareira e ao fim da qual, na encosta de uma verdejante colina, achava-se uma construção bizantina misturada com pagode japonês. Grandes colunas, à esquerda e à direita, limitavam um amplo pórtico dourado engastado de carbúnculos, jaspes, ágatas, ônix e sardônicas, entre outras pedras. Motivos japoneses, principalmente “sakuras”, enfeitavam uns botaréus que apoiavam externa e lateralmente as colunas.
         A baronesa, desta vez sinceramente interessada, avançou seguida de Rik. Elaine e eu ficamos mais para trás; ela afagou minha mão carinhosamente e sussurrou:
         — Eu te quero, e não sei por quanto tempo vou esconder. Se soubesse como a minha vida tem sido vazia...
         — Você é uma garota e tanto, Elaine. Mas vamos ver como está o seu pai.
         — SEU MISERÁVEL!!! — ouvimos os gritos. — Então isso é papel de homem? E eu aqui morrendo de aflição por você! Esse tempo todo aqui com esses antenados, como se atreveu? Como se atreveu a me deixar à sua espera?
         Elaine olhou-me com um sorriso triste e resignado.
         — Está vendo agora por que o papai não quis voltar?
         Ladeado pela Elaine, finalmente entrei para conhecer o Barão Altino Vanetta. Com seus óculos quadrados, sua barbicha branca, seu gorro, sua calça curta, seus sapatos e meias, parecia um explorador ou cientista desses que o Mickey e o Pateta às vezes ajudam. Estava utilizando um escritório completo no palacete. Quando entramos os ânimos ainda não haviam serenado, pois Elaine exclamou “Papai!” e mesmo assim a baronesa continuou berrando.
         — Pare, mulher! — gritou por sua vez o barão. — Não posso nem falar com a minha filha?
         Altino e Elaine se abraçaram e a garota perguntou:
         — Por que você demorou tanto por aqui? Podia ter retornado depois...
         — Eu sabia que mais cedo ou mais tarde alguém me localizaria. E precisava tirar umas férias de sua mãe. Além disso eu fiz a maior descoberta científica do século e esses meus amigos estão me ensinando muita coisa, um acervo imenso de informações revolucionárias! Como eu poderia voltar tão depressa?
         O personagem mais tarde identificado como Lótus 130 aproveitou para acrescentar que era uma honra o intercâmbio com o Professor Vanetta. Tranqüilizado porque, com a missão cumprida, o meu ganho estava garantido, percebi que Rik não se encontrava no gabinete. Onde teria ido? Elaine acalmava a mãe, com uma nova tolerância no olhar; eu me voltei para procurar meu sócio quando escutei os gritos lá fora. Corri temendo que Rik estivesse sendo atacado pelos asas-negras, pelos mi-go, pelos shoggots ou quaisquer outros monstros lovecraftianos. Mas era pior do que isso: três mulheres, uma loura, uma ruiva e outra morena, estavam empenhadas em massacrar o Rik, aos gritos de “patife!”, “traidor!”, “casanova!” e coisas piores.
         Pelo visto, Rosana e Adelaide não eram as únicas. Quem seria a terceira? Com muito custo, rapazes e moças chapolins contiveram as mulheres. Enquanto Atini ajudava um amarfanhado Rik a se erguer, eu procurei esclarecer as coisas:
         — Afinal o que foi que ele fez?
         — Ele me prometeu casamento! — disseram as três quase em uníssono.
         Elaine, que viera tomar conhecimento do tumulto, observou com um sorriso:
         — Veja do que o amor é capaz, elas conseguiram nos seguir!
         — É...
         — Querido, nós não temos nada com isso. Venha, quero falar com o papai a respeito de nós dois. 
                                                                
 
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 20/06/2019
Código do texto: T6677175
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