'A VIDA SEM MÚSICA SERIA UM ERRO" - Trecho do livro "GIULIA - QUANDO A LUZ SE APAGA"

O boato da amante de satã chegara aos ouvidos de Fernando que, atormentado e obviamente descrente, pois era um homem racional, cansara-se de esperar por uma solução que não viria dos Céus.

- Foda-se fantasma, demônio e o caralho a quatro! Eu quero minha noiva de volta, porra! Eu não sei o que tá acontecendo naquela casa! Eu tenho o direito de saber! Assentia, vigorosamente, com a cabeça, seu pai que em silêncio, ao seu lado, o apoiava. Suas feições extremamente endurecidas seriam cômicas se o assunto não fosse tão grave e as saudades, imensas. Ah! Como ele sentia falta de sua pequerrucha, como costumava chamar Giulia! A simples ideia de que ela estaria sofrendo acordava um monstro dentro de si. Um lado caótico que cada um possuí, capaz de matar com as próprias mãos, embora este lado seja mantido latente, sob o verniz da sociedade e da própria evolução. O ódio pode surgir no coração mais imaculado, desde que a fagulha perfeita entre em combustão na hora exata. Era assim que ele sentia-se diante do que ouvira de sua Celeste. Celeste não lhe dissera tudo. Não. Jamais. A pobre Celeste odiava ver tudo com tanta precisão e...Deus! Ver sua filha nas mãos de um ser que para ela era visível e não possuía entranhas, era tremendamente aflitivo.

Por vezes, chorava até que seu peito doesse o suficiente para que ela, receosa, procurasse não sentir aquele pequeno aperto no coração ou ter em mente que a dor seria passageira, nada além de uma pontadinha. Há anos que esta dor a perseguia. Por que justo agora ela iria lhe causar um mal maior, não é mesmo? Agora que precisava salvar a filha das garras de um maníaco sexual de outro mundo. Um violador, um verme que deveria ser banido da face da Terra. Onde está Deus que não vê isso? Por que a deixam sozinha sob o jugo dele? Ela se pegava a questionar sua fé, mas quando a via escapulir por entre os seus dedos, era a ela que se agarrava com unhas e dentes para manter-se de pé, pois seu filho precisava de sua fortaleza e experiência.

- Meu filho, se acalma, por favor. - pedira-lhe com sua habitual ternura. - De nada vai adiantar vc chegar lá assim, todo alterado! Ele o dissera tão alterada quanto ele que preferia ignorar o outro mundo além do material onde lidava com dinheiro, carros, contas, empregados, fornecedores e aquele bando de hipócritas que um dia frequentara sua casa atrás da ajuda de sua mãe. Filhos da puta! São os mesmos que vinham aqui pedir comida, mãe! Os mesmos que pediam emprego ao senhor, meu pai. Voltava-se ao pai que permanecia impávido, imobilizado como uma estátua e que mantinha, em sua mão direita, entre os dedos em punho fechado um taco de baseball. Eles é que estão falando por aí um bando de merda sobre a Giulia, mãe! Seus olhos eram duas bolas de fogo, seu rosto afogueado, seus cabelos desalinhados eram a expressão do desespero e da aversão aos pais de Giulia que permitiam que de lá vazassem informações tão sérias quanto contraditórias. - Não dê ouvido a eles, Fernando. Olhe pra mim. Ele, inquieto, andando de um lado ao outro da sala, não se deixava tocar. - OLHE PRA MIM! Estacara diante dela, ofegando com lágrimas nos olhos. Ele não pode estar tocando nela, mãe. Isso é mentira. O que eles dizem é mentira. Ela não pode estar com um homem lá dentro, mãe. Ela nunca foi assim. É a minha Giulia. Dissera-o num lamento. Eu não sou como vcs. Não acredito no sobrenatural. Não consigo. Não quero. Arquejara de dor enquanto ela o abraçava com todas as forças. Um abraço de mãe que deseja afastar o mal de seu filho a todo o custo. Um abraço bem apertado. - Isso é mentira. Mentia ao filho. Mentiria sim. Continuaria a mentir mesmo que fosse contra suas convicções. Dizer o quê? Que ele a sodomiza há dias? Dizer que ela...- engolira em seco a amargura. - Que ela sente, além de dor, prazer com o que ele faz a ela? Dizer que o mundo onde ela se encontra não pertence a este onde nos encontramos e que ela não é totalmente a nossa Giulia!? Pro inferno! - Eles mentem, meu querido. Hoje iremos até lá e a traremos de volta. Ela te ama. E agora não mentia. - E vcs serão felizes juntos novamente. Acredite em mim.

- Meu pai! - exclamara com sua voz suavemente atônita e um olhar de compaixão. O homem que lhe dera a vida, posicionara-se ao seu lado como um cão de guarda, um soldado fiel em um campo de batalha prestes a guerrear contra a tirania da Inglaterra sobre a Escócia. Enzo amava a História e seus heróis e Sir William Wallace, o escocês que dera início à liberdade do povo escocês era um deles. Erguera o queixo e os olhos risonhos e leais ao filho. Celeste contivera um riso em meio aquele caos em que viviam. Não. Não havia homem como aquele. Aquele homem à sua frente sempre seria o homem de sua vida. - Que porra de taco é esse, meu pai! - exclamara com a incredulidade saltando de seus lindos e exasperados olhos azuis. - Meu Deus! Fiquem! Eu imploro...fiquem. - suplicara com a voz cheia de amor pelos pais. - Eu não vou fazer nenhuma visita social. Vcs não podem me acompanhar. De jeito algum!

- Estaremos sempre juntos, Oh, Captain, My captain! Enzo proclamara seu grito de guerra. Nando revirava os olhos exaustos, jogando-se sobre o sofá. - Enquanto eu quebro tudo, vc invade o quarto e pega a nossa Giulinha! Já está tudo esquematizado.

- Na sua cabeça, meu pai. Na sua cabeça. Ele repetia num desânimo. Lançara um olhar aos pais, ali, diante deles, tão frágeis e doentes e, ainda assim, tão dispostos a lutar por ele. Fora o bastante para que as lágrimas brotassem de seus olhos e ele...ele francamente já não se importava em demonstrar sua fraqueza. Chorava como criança, envolvido pelo carinho dos pais. - Eu não sei lidar com isso. Não sei. Ela não quis me ver naquele dia. Não quis. Ela sempre me amou, mãe. A gente sempre sabia o que sentia antes mesmo de falar. E, naquele dia, eu não sabia pra quem eu estava olhando, pai! - houve um silêncio terrível onde Celeste e Enzo entreolharam-se lacrimosos, impotentes. Em seguida o som ainda mais terrível do choro do filho amado. Um soluço profundo, abafado, reprimido de um homem cheio de vergonha assim como medo e tristeza. Um som que uma mulher talvez nunca o emitisse, quase anormal. - Eu tô perdido. - pronunciara num tom quase inaudível. Fora neste exato momento em que ouviram um ruído bastante conhecido: o do velho portão da Casa Lilás que rangia ao se abrir.

- Cheguei em uma boa hora? - Perguntara com sua voz firme, serena e aquele olhar confiante.

- Louvado seja o Senhor! - Celeste correra em sua direção, lançando-se sobre ele, abraçando-o entre lágrimas. Menos, Celeste! Menos! Gracejara Enzo, felicíssimo, repetindo o gesto da esposa. - Vc vai ajudar nossa menina, não vai?

- Foi para isso que viajei por mais de dez horas! - afirmara, resoluto. Fitava o amigo encolhido no sofá e não pudera deixar de compará-lo a uma criança. Uma criança que o fazia lembrar-se de outra, muito distante, com quem vivera há muitas eras e por quem nutria um imenso amor. - Ei! Não mereço um abraço!? Nando levantara-se meio cambaleante, olhos avermelhados, francamente abatido, desnorteado. Carlos o puxara contra si e o envolvera em um amplexo fraternal e revigorante como o faria a um filho. Ah...a um filho amado que morrera em uma época em que os ratos infestavam a Terra, espalhando a morte por onde passassem. - Fica calmo. - falara baixo ao seu ouvido e Fernando sentira-se imediatamente revigorado com aquelas palavras. - Vamos tirá-la de lá. Eu te prometo!

- Sério!? Vc vai comigo!? - sua expressão infantil tocara o coração de Carlos. Ele estava tão sentimental naquela noite. Tão nostálgico. Parecia estar em outro século, em outra cidade, em outro país, vivendo uma outra vida. - Vc vai ficar do meu lado!? - Ele ainda não acreditava que seu amigo estaria de volta.

- Pode apostar a sua vida! Ela sai de lá hoje ou não me chamo Carlos.

- Carlos, o gay! - dissera-o sem a alegria de sempre.

- Idiota! - retrucara sem se importar.

- Que bom que voltou. - Confessara, esperançoso. Os velhos amigos, apesar de todas as diferenças e de amarem a mesma mulher, uniam-se, ali, diante de Celeste e Enzo que exultavam com aquela união, cujo único objetivo era o de livrar Giulia das garras de Vine.

- Agora, por favor - Anunciara, de pé, olhando-os devidamente acomodados naquele cômodo, de maneira solene e havia muita seriedade e um tom sombrio em sua voz. - Sentem-se e me ouçam com muita atenção. Sei que vai parecer estranho, mas, vcs terão de me ouvir e confiar em mim. Embora não pareça, eu sei o que estou fazendo, mesmo que a música alta dificulte um pouco.

- Música!? - Celeste replicara com aquela expressão: "Vc tomou alguma coisa antes de vir para cá, meu filho?" - Não há música.

- Tem sim! - Sorrira e seus dentes brancos, aos poucos, foram vistos por todos.

Em poucos minutos, "Under Pression" de David Bowie ecoava pela casa no último volume, sob os olhares perplexos de seus moradores.

- ISSO NÃO É A PORRA DE UM BAILE, CARLOS! Fernando fora o primeiro a se exaltar.

- EU SEI! - Comunicavam-se como marujos em um navio em meio a uma furiosa tempestade em alto mar. - CALE A BOCA E APURE SEUS OUVIDOS! A VIDA DE GIULIA DEPENDE DISSO, OUVIU!?

- OUVIMOS! CONTINUE! Celeste o encorajava. Sentia a luz que se irradiava dele e o amor incondicional do homem que viajara milhares de quilômetros somente por salvar a filha amada. - E O QUE ELE NÃO OUVIR, EU PASSAREI PARA ELE, COCHICHANDO! Ela piscara e naquele simples movimento, Carlos entendera que ela havia captado o segredo.

- ELE NÃO NOS OUVE COM MÚSICA ALTA! ESSE SERÁ O NOSSO TRUNFO!

- FILHO DA PUTA! - Enzo gargalhava de se curvar. - AGORA TE PEGAMOS! Vibrava e dançava e erguia os braços antevendo a vitória. Fora difícil a tarefa de fazê-lo sentar-se de volta ao sofá e aquietar-se. - VAI DAR TUDO CERTO, MEU FILHO! AGORA VAI!

Fernando abanara a cabeça e um sorriso tímido surgira em seu rosto apático. - "Tomara".

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 01/09/2019
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