'UMA REUNIÃO EM FAMÍLIA' - Trecho retirado do livro "Giulia - Quando a Luz se apaga"

Todos pareciam ter compreendido o que Carlos tentara explicar. Explicara que Giulia estaria nas mãos de um ser extremamente poderoso, vindo de um outro reino, absolutamente desconhecido pelo ser humano e fora categórico em especificar os cuidados que todos deveriam ter ao entrar em contato com ele - "Caso entrem em contato com ele". Ele, e somente ele, ficaria frente à frente com aquele a quem chamaram de Vine.

- Não. De maneira alguma, querido! Não mesmo! Vc não vai ficar sozinho com aquele monstro. Não mesmo! E é bom que não tente me convencer do contrário. Não tente, pois não irá conseguir! - Celeste protestara com veemência. Carlos tentara dissuadi-la da ideia inconsequente de expor alguém além dele a um perigo desnecessário. - Desnecessário é vc me dizer que devo assistir de longe o resgate da minha filha! Minha filha! - E ela abrira a mão com os dedos afastados e batia em seu peito e a dor, aquela próxima ao osso esterno, aquele aperto, aquela agonia, logo reaparecia como se lhe dissesse: "Celeste, ouça o rapaz. Já não sou o mesmo. Não vou aguentar fortes emoções. Ouça o rapaz."

Enzo não entendera a metade do que fora explicado por Carlos, no entanto, mantinha aquela expressão leal em seu rosto quase que petrificado tal qual um guarda real britânico em frente ao castelo de Buckingham. - "Não posso esmorecer", Enzo pensava diante dos seus, sentados àquela mesa. Nãaao! Lamentara profundamente em seu íntimo. Faltava um membro. Uma menina de olhos ávidos assaz tristes e que saltitava ao seu lado, sempre exultante, batendo palmas, o que poderia tanto alegrar seus dias quanto perturbar sua concentração quando ainda era um homem de negócios. Ela sempre guardava para ele aqueles olhos de gratidão e de uma imensa admiração. Quase servidão.

- Ela não pode estar lá. O que ouvi é fruto da minha imaginação. Da minha imaginação. É. É isso. I-ma-gi-na-ção. Celeste, pobrezinha, às vezes pensa que vê, mas não vê. Ah...Celeste, pobrezinha! - Evitava, a custo, o coitado, pensar na sobrinha e no que ela deveria estar passando. "Ela grita. Eu ouvi. Ela grita e gargalha a noite toda e depois...tudo para.", ouvira, de relance, quando fora à padaria comprar o leite, evitando os olhares curiosos, cabeça baixa e ouvidos apurados, um dos muitos comentários sobre a casa assombrada pelo demônio e por sua amante e os gemidos altos e extremamente excitantes que ecoavam pela madrugada adentro. Receava acordar a besta dentro de si. Tinha o olhar fixo no filho como receasse que este fosse desmoronar a qualquer instante. Fernando apenas abanara a cabeça quando, desnorteado, pronunciara. - Só vou acreditar nisso tudo que vc me falou se vir diante de meus olhos. Não duvido de vc, Carlos. Entenda. - Carlos assentira com a cabeça como a dar razão ao rapaz pragmático com quem cursara Ciências Exatas durante quatro anos de sua vida. Ele mesmo não acreditaria no que havia descoberto sobre o que, segundo a descrição de Celeste que o vira menos do que o sentira, parecia-se com um ser mitológico a quem chamavam de Vine. Ele mesmo, se não houvesse estudado tanto ou se não houvesse visto com seus próprios olhos, casos semelhantes em outros países, em outras culturas riria de suas próprias palavras. Interessava-se pelo Ocultismo desde priscas eras. Lembrava-se do que apreendera em outras vidas, pois nelas acreditava, ao contrário de seu amigo que sempre vivera intensamente todos os momentos por acreditar que a vida seria uma só e, sendo assim, deveria viver como se não houvesse amanhã. Houve um silêncio incômodo durante um segundo. Nando dera a impressão de estar em pânico diante de tantas informações que iam de encontro ao seu mundo racional, onde os números volitavam sobre sua cabeça.

Era Giulia a sonhadora. Era Giulia quem via seres de Outro Mundo e com eles conversava. Cabia a ele, protegê-la de si mesma e não deixar que ela mergulhasse neste mundo como se, de fato, ele existisse. Cruzara as pernas e pusera as mãos na beira da mesa de jantar da cozinha onde todos costumavam se reunir em dias festivos ou aos "Sábados de Massa", dia em que Enzo demostrava aos filhos, seus dotes culinários e como havia conquistado Celeste pelo estômago. "Sono figlio di italiani!". Ah...a boa massa italiana era venerada e devorada impiedosamente por Nando e Giulia que disputavam, à garfadas, quem comeria o último pedaço de la pizze ao salame. Viviam felizes os quatro, na Casa Lilás. Ah! Os sábados de Massa! Giulia jamais os esqueceria. - Não sei no que acreditar, Carlos. - Dissera-o escondendo o rosto entre as mãos aflitas, cotovelos apoiados na mesa. Suas feições abatidas, seu olhar desesperançado. Tudo nele parecia estar em suspenso. Flutuando num espaço sombrio, vazio. Seu mundo sempre palpável ruía diante de si. - Vc tá me dizendo que esse tal de...- perguntara numa calma ilusória. - Esse imbecil não é deste mundo e que está com a minha namorada dentro daquele quarto há dias, prisioneira, impedida de sair? - Carlos assentira lentamente com a cabeça, ciente do quanto aquilo seria incrível demais para ele. - Que mesmo a mãe ou o pai dela não conseguem tirá-la de lá? - Outra vez, ele acenara com a cabeça, cerrando os olhos num gesto de fadiga. Celeste e Enzo fitavam o filho com compaixão e sentiam a raiva borbulhando em cada célula de seu ser. Escutaram o que Carlos dissera e a cada palavra que suscitava uma imagem aterradora, seus corpos estremeciam de ódio. Um ódio capaz de provocar desejos destrutivos, sanguinários nos mais puros dos corações. Celeste possuía uma ampla visão de tudo e, portanto, era a que mais sofria. Amaldiçoava seu dom quando forçava-se a desviar seus pensamentos da visão obscena em que sua sobrinha entregava-se à criatura consensualmente. Enzo a via como vítima, incapaz de recuar ou de enfrentar este ser maligno que surgira...surgira...ele não se lembrava da parte em que Carlos explanara sobre a aparição de Vine. Cerrava os olhos apreensivos e suas órbitas davam voltas e mais voltas embaixo das pálpebras violáceas, sem que ele se lembrasse exatamente de como tudo havia começado ou o que Carlos estaria fazendo ali. Seria o "Sábado das Massas!?" - Deus. Não preparei nada ainda. É preciso sovar a massa e dar um tempo para que ela cresça! - Ele mostrava-se apreensivo, quase em desespero. Não havia comprado o fermento biológico! Inadmissível! - Preciso ir ao mercado! Onde fica o mercado, meu Pai? Não me lembro. Não me lembro. Não. Não posso dizer que não me lembro. Celeste disse que devo dizer que lembro se eu não me lembrar. Dizer que lembro mesmo sem me lembrar. É. É isso que devo fazer. Eu me lembro. Ah, Celeste meu amor. - Ele a vira de relance quando seus olhos atônitos procuravam por algo do qual havia se esquecido, mas que sabia estar em uma daquelas muitas portinhas branquinhas dos armários presos à parede de azulejos floridos. Sorrira, fitando-a com extremos de ternura e ela o vira com aqueles olhos apaixonados. Assustara-se tremendamente. Aqueles olhos calmos e doces em meio a um assunto gravíssimo sobre o qual estavam discutindo significaria apenas uma coisa. Um único e terrível acontecimento. Quase tão terrível quanto o rapto de Giulia: o Alzheimer o queria para si. - "Ai, meu coração! Não vá doer. Não vá parar! Não agora! NÃO AGORA! PRECISO AJUDAR MINHA FILHA! Não se atreva a doer agora!"

- Enzo, meu bem! - exclamara num tom apreensivo, no entanto, suave. - Preste a atenção! Está prestando a atenção!? - Estalava os dedos acima da cabeça como se estivesse lidando com cães adestrados. - Enzo? - Confusão mental. - SERÁ QUE VC PODE PRESTAR A ATENÇÃO! - Erguera seu tronco da cadeira, inclinando-se perigosamente sobre a mesa. Uuuuuiiii. Ela ouvira o gemido de dor do homem de sua vida. Ria-se nervosamente pelo ato impulsivo em pranchar a mão dele, entre a sua e a mesa, como um chinelo de dedos esmaga uma barata sobre o asfalto quente. - Me perdoem. - dirigira um olhar embaraçado a todos, voltando-o a Enzo. Então ela sorrira, acariciando-lhe o dorso da mão avermelhada. Ele movera os lábios sem emitir som algum. - "Estou aqui. Fique tranquila".

- Então...- Fernando prosseguira, olhos que se reviravam, como se visse, num quadro-negro, cálculos intrincados aritméticos de difícil resolução que ocupavam toda a extensão da lousa. - Eu devo acreditar que este tal de Vine é um demônio? - E isso ele o dizia aos berros, enquanto a música de David Bowie ribombava pela casa e por seus cômodos e em seus dois andares e também pelo quintal afora. Era preciso ter música, dizia Carlos. Ele não nos ouve enquanto houver música. Não raciocina. Não foca. Não nos ouve. - E que ele comanda trinta e seis legiões de demônios e fala sobre o presente, passado e futuro.

- São especulações. Nada de concreto.

- Sei...- parecia não ter dado ouvidos ao amigo. - E que esse mesmo demônio descobriu que a minha Giulia... - Repetira, demonstrando uma nítida irritação. - A minha Giulia é uma bruxa.

- Exato. - Esclarecera Carlos num tom solene.

- Exato!? - protestara, com as narinas dilatadas, inclinando-se ligeiramente em sua direção. - Uma bruxa!? Minha Giulia, uma bruxa!? Gritara e ainda assim concorria com a voz aguda de Freddy Mercury em dueto com Bowie. - E que também pode criar tempestades, mover montanhas e o caralho a quatro! - Dissera-o com tanta ira que sua voz era quase um sussurro. Carlos recostara-se na cadeira, erguendo seu tronco, mãos sobre a nunca, olhos semicerrados e um meio sorriso. Aquilo era demais para Nando. Até mesmo para si próprio. Há dois dias, Carlos estava em uma reunião de negócios, num dos maiores centros financeiros do mundo, em Tóquio. Agora, estava ali, naquela casa, no subúrbio, entre seus amigos, tentando convencê-los de que deveriam tomar certas precauções contra os ataques de um suposto ser diabólico. - "Isso seria patético se não fosse real", pensara sentindo-se ridículo, conquanto, soubesse ser o único, entre eles, capaz de transitar entre dois mundos: o racional e o sobrenatural. - Vc tá ouvindo a merda que tá dizendo!? Quer que eu acredite mesmo nesse bando de bosta que vc tá dizendo!? - exclamara nitidamente furioso. - Exato!? Não há nada de exato nisso, Carlos! Eu quero provas! Não saio daqui sem provas.

- POIS ENTÃO QUE FIQUE! - erguera-se Celeste batendo sobre a mesa com a mão espalmada. As maçãs, as peras e os limões rolaram da fruteira que chacoalhara com o impacto. As laranjas saltavam enlouquecidas sobre o piso da cozinha sob os olhos ligeiramente divertidos de Enzo que pensara em espremê-las enquanto esperava a massa crescer e dobrar de tamanho. - "Meu Deus, tio! Isso parece um monstro! Aqueles bichinhos que a gente não pode dar água depois da meia-noite senão eles crescem e comem a gente, sabe?!", ouvira a voz assustada e exultante da pequerrucha que lhe sapecava um beijo na bochecha a cada dez minutos enquanto, ao seu lado, diante da pia, em pé num banquinho de madeira, assistia ao grande espetáculo dos fungos microscópicos que se alimentavam do açúcar, diante de seus olhos estupefatos, liberando gás carbônico e álcool. - "É por isso que crescem, tio? Ah...tá! Álcool! Disso o meu pai gosta!" - Fique! Não precisamos de vc! Carlos e eu iremos sozinhos! Está decidido.

- Calma, mãe! - gritara com os olhos marejados. Gritara, pois, de outra forma, não seria ouvido. Ao fundo, ouviam David e Freddy entoando "Love, love, love, love, love!" - NÃO ME PEÇA PARA TER CALMA! - Os olhos dela estavam conturbados, sua serenidade sumia a cada minuto que perdiam ali, sentados. - Eu vou com o Carlos e trago a Giulia de volta! Aqui parada eu não fico mais! E eu vou te dizer uma coisa! - Voltara os olhos, cheios de decepção, ao filho e a voz lhe embargara. Engolira a seco o amargor. - Não é porque vc não acredita em uma coisa que ela deixa de existir, meu filho! Elas existem crendo vc ou não! Entendeu? ENTENDEU!? - Pusera-se a chorar copiosamente sendo amparada por Carlos que desejava ardentemente sair dali, tomar Giulia em seus braços e arrancá-la das mãos daquele filho da puta pervertido. Nando parecia exausto demais para protestar. Levantara a mão para cobrir os olhos. Jamais vira a mãe tão exaltada como naquele momento. Ela estava desesperada e aquilo o fazia crer em tudo o que ela dizia. Nela, ele confiava, a despeito de sua descrença em tudo o que não poderia ser explicado racionalmente ou nos fatos que não poderiam ser comprovados cientificamente. Nela, ele acreditava. - Vai ficar aí parado ou fazer algo de útil!? - Ela o desafiava com os olhos em chamas e o corpo tremendo de raiva, asco, horror pelo que pressentia. Jamais estivera sob tamanha pressão em sua vida. - "Eu não vou perder meu marido. Não vou perder minha filha e não criei nenhum filho para ser covarde numa hora como esta!" - RESPONDE, FERNANDO! - Voltara a se reerguer e a inclinar-se para ele. Ela estava completamente desequilibrada, porém, não poderia cair. Não naquele momento. Depois, cairia sobre a cama e deixaria que a morte a levasse, mas, agora não. AGORA NÃO! - Vamos! Erga-se desta cadeira! - Carlos, já de pé, afligia-se com tudo aquilo. Vira que Celeste estava a um passo de um infarto. Percebera a doença nos olhos ora lacrimosos ora raivosos de Enzo e não compreendia a hesitação quase infantil do amigo e rival em tentar salvar a mulher a quem ele mesmo amava e que, contra sua vontade, deixara partir. Ahh! Carlos estava a ponto de explodir e seus olhos iam de Celeste até Nando e voltavam à Celeste, indignados.

Fernando tinha mais a dizer, a perguntar mas fez um gesto para que os outros esperassem. Mantivera a mão direita erguida, fez um gesto hesitante e depois começara a falar.

- E o que faremos então? - Perguntara com um sorriso amargo. - Quando estivermos diante do...do...- Hesitara por minutos, dando pequenos socos na testa como o fazia quando criança, após diversas tentativas sem enxergar o valor de "X", nos tempos de colégio. - "Tenha calma. " - Ouvira de seu pai, paciente, sempre ao seu lado. - "Tente outra vez e, se não conseguir, apague tudo, arranque a folha, amasse-a e recomece do zero". Fitara a mãe ali, de pé, lembrando-se dos tempos em que seus maiores dilemas baseavam-se em qual disco deveria ouvir quando chegasse a casa após as aulas ou a quem deveria beijar primeira: a loira ou a morena, já que ambas o disputavam. - O que faremos quando a encontrarmos lá?

- TIRAR ELA DE LÁ, ORA BOLAS! - aquilo parecia-lhe tão lógico! Desconfiava da sanidade do filho naquele momento.

- O que vc quer saber? - Carlos falara baixo, pois estava bem próximo ao seu rosto, apoiando o corpo, com os braços flexionados sobre a mesa. Sua voz possuía um tom causticante. - O que deseja além do que já falei? Detalhes? - Dissera-o num tom sombrio. Cansava-se de ter de esperar pelo que já deveria ter terminado. - Quer saber o que fazem naquele quarto? A que ela é submetida todos os dias, acordada ou dormindo? - Fernando não retrucara. Apenas afastara o rosto daquela voz que lhe dizia verdades. Sua raiva havia se consolidado em algo pior. Abanara a cabeça antes de se controlar. Ouvia a voz rancorosa e grave de Carlos. - Quer saber se ela sofre quando se nega a realizar seus desejos bestiais? Se ele a espanca? - PARE, CARLOS! - Ordenara Celeste, numa aflição, sob o umbral da porta que dava para o corredor. - VAMOS EMBORA. - Implorou. - E Carlos continuara a despejar sua ira sobre ele. Sobre o homem que tomara o amor de Giulia de si e que parecia não dar a menor importância ao seu sofrimento. - Quer saber se ela gosta de ser tratada como um objeto sexual? - Agora estava bem próximo dele e murmurava ao seu ouvido. - Quer saber se ela ainda pensa em vc ou se já se acostumou aos carinhos que ele lhe dá logo depois de socar aquele rosto lindo e frágil que conhecemos?

- VAI TOMAR NO CU, FILHO DA PUTA! - Num ímpeto de fúria, o braço desgovernado varrera a fruteira vazia de sobre a mesa. Ela voara de encontro à pia e se espatifara no piso escuro. Os caquinhos transparentes espalhados pelo chão brilhavam como diamantes sob a luz incandescente da luminária fixada ao teto. - Não fode! - Repetira, desconcertado.

- Resposta madura. - Ironizou, afastando-se, de súbito, pisando sobre os cacos. - "Como ela pôde te escolher?" - Agora seguia em direção à Celeste. Recuara um passo quando o ouvira gritar com a voz vacilante.

- O QUE A GENTE VAI FAZER QUANDO CHEGAR LÁ!? QUAL É O PLANO, PORRA!? - De repente, parecera perturbado. Emudecera. Depois,voltara a falar e sua voz era baixa, com um triste assombro, um leve erguer de sobrancelhas. - Vc tem um plano? - Carlos voltara os olhos para ele. - É óbvio que vc tem um plano. - decretara retoricamente.

- Te conto no caminho. - retrucara enquanto acenava com a cabeça para que ele o seguisse. - Não temos tempo a perder. E Nando assim o fizera. Erguera-se da cadeira e seus pensamentos fervilhavam em sua mente desnorteada. Giulia sendo tocada! Giulia sendo violada! Giulia sendo esbofeteada! Giulia sentindo prazer nas mãos de outro!

- ONDE!?

- No carro.

Antes de deixar o corredor por onde todos já haviam passado, Nando cruzara com ela. Uma relíquia de sua mãe. Celeste a amava. Recebera das mãos de seu pai antes de perdê-lo, ainda criança. A Virgem Maria num pequeno altar de mármore, simples, sem adorno, à direita de quem seguia para os diversos cômodos ligados ao extenso corredor. Nando procurara firmar a voz, passara os dedos pelo cabelo e se contivera, formando um punho com a mão direita em frente à imagem da Virgem com a cabeça baixa, véu branco, minúsculas mãos de gesso abertas, olhos de uma melancolia profunda.

- Não posso. Pela minha mãe...eu não vou. Pela minha mãe. - Desistira de partir em mil pedacinhos a estátua da mãe d'Aquele que, segundo ele, deveria estar dormindo para deixar que tudo aquilo acontecesse.

De mochilas nas costas, Carlos adiantara-se, chegando à porta da saída e sem olhar para trás, estancara, de chofre. A música havia cessado. Voltavam ao silêncio e o silêncio era uma porta, uma passagem. - Peço a todos que me escutem somente mais uma vez. - anunciara em voz baixa.

- De novo? - resmungara Enzo que se assustara com o moço de olhos negros, imobilizado como quem estivesse ouvindo alguma mensagem numa espécie de fone de ouvido invisível. Celeste, ao seu lado, repreendera-o com os olhos aflitos. Ele encolhera os ombros e arregalara os olhos azuis e confusos. - Mas ele já falou muito. - Cochichara ao seu ouvido. Ela contivera um risinho absolutamente inapropriado. É. Ele já falou muito. Ela amava aquele seu jeito irreverentemente inocente, inconsequente. Ele era o amor de sua vida e estava ali, com seu taco de baseball em punho e aquela expressão típica de um guerreiro viking prestes a decepar cabeças e a gargalhar vitorioso, vendo-as rolarem pela grama verdejante, manchada de vermelho escuro. Ela o amava.

- E isso é de suma importância. - Carlos falara baixo e pausadamente olhando a cada um deles nos olhos. Pousara lentamente o indicador sobre os lábios. Pedia por silêncio, erguendo os olhos ao teto, de uma maneira sinistra. Enzo chegara a pensar que houvesse câmeras ocultas naquele cômodo. Não havia música. Era preciso ter música.

- Não temos câmeras! - Enzo exclamara num tom jovial, quase alegre. - Não se preocupe. - Fernando baixara a cabeça, lamentando-se pelo estado do pai. Estava tão perdido quanto ele. Ele voltaria a ser o homem sensato que um dia o ensinara a se barbear? - Ei! Acorde, homem! - Carlos sorrira, complacente e antes que as mentes febris de Celeste, Enzo e Fernando começassem a pensar em Giulia e em tudo o que haviam escutado naquela tarde ou a disparar perguntas e comentários que a criatura pudesse captar, Carlos voltara a pousar a agulha fina no sulco do vinil sobre o círculo felpudo da vitrola que girava e girava sem parar. Agora ouviam - e muito provavelmente os vizinhos também ouvissem - em altíssimo som, "Apassionata", uma valsa belíssima.

- Diga-nos! ESTAMOS OUVINDO! AO MENOS, TENTANDO! Ahhh! Que belíssima escolha! Como Enzo apreciava aquela composição! - "APASSIONATA". - Enzo sorria. - BELÍSSIMA! NÓS COSTUMAMOS OUVI-LA ANTES DE DORMIR, NÃO É MEU BEM! - Celeste assentira vagarosamente com a cabeça e no rosto, aquela expressão piedosa dirigida somente às crianças ou aos doentes mentais.

- Eu já disse que ele não nos ouve quando há música, num volume alto. - berrara, vendo-os a comprimirem os olhos. Riria muito se não fosse tão fora de propósito.

- VC JÁ DISSE ISSO. - Enzo informara, dominado por uma combinação inexplicável de confiança e empolgação. - EU ME LEMBREI! EU ME LEMBREI!

- Sim. Eu sei. - Carlos o incentivara dando-lhe tapinhas nas costas. - O que não mencionei é que, provavelmente, de alguma forma, ele já deve estar sentindo algo, se estiver aqui...

- E isso é possível!? - Celeste arquejara de pavor. Levara as mãos à boca e em seus olhos o medo havia se instalado. - Ele...aqui?

- É provável. Não uma certeza. Portanto, daqui por diante, até chegarmos lá, teremos de cantarolar.

- CANTAROLAR!? - Nando zombara, caindo na gargalhada. Todos o observavam com um olhar de reprovação. Rira-se ainda mais vendo-se alvo de todos. Rira-se de se curvar e lembrara-se de que Giulia possuía a mesma característica. Da gargalhada histérica passara, num átimo, ao choro compulsivo, cobrindo o rosto banhado de lágrimas. Estava totalmente fora de si. - Continua. - pedira de cabeça baixa, enxugando o rosto com o dorso da mão. Seu pai o abraçara fortemente e depois afastara-se, mantendo a postura de guarda.

- Daqui até lá, nossas mentes deverão estar sempre ocupadas com música. Não importa o que houver. Não conhecemos uma forma mais técnica de impedir o acesso dele aos nossos pensamentos. Então...só nos sobra a música. É a única forma de mantê-lo distante, fora de controle, distraído. Estamos lidando com algo desconhecido e extremamente brutal. Não quero que ela corra risco. Não admito. - Ele fitava Fernando com os olhos de um pai severo a exigir disciplina do filho.

- Isso é ridículo. - pensara alto. - Não tá acontecendo. Não tá acontecendo. - Repetia Nando aleatoriamente enquanto alcançavam o portão, ao lado do jardim. Celeste os seguia, cantando, mentalmente, a oração de São Francisco. Enzo dera preferência ao bom e velho Nat King Cole. Bradava a longos haustos a canção "What a wonderful world" e sua disposição para a luta fazia com que seus olhos brilhassem majestosamente. O homem era pura luz. Não precisa ser tão alto, amor. Basta que vc pense. Ela o alertara, um passo adiante, com sua bolsa a tiracolo, seu rosário e sua coragem. E levava também a dorzinha incômoda em seu grande coração. Grande mesmo.

- É melhor assim, Celeste. - Dissera-o baixinho ao pé do ouvido. - É melhor assim. Eu não consigo pensar em nada, além de...- Enzo então abrira os olhos, desmesuradamente, em pânico. - Eu prefiro cantar alto. Vai que alguma coisa me distrai e eu perco a letra ou penso no que não devo? - Ela abanara a cabeça ligeiramente e ele percebera o horror em seus olhos. Está bem, meu anjo. Faça como quiser. Ela o abraçara tão cheia de amor e temor. Cante, cante o mais alto que puder. Cante lindas canções e não pense em mais nada além das canções. Ele fora o último a cruzar o batente do portão preto com ponteiros dourados. De costas para o carro estacionado na calçada, sentira uma mão forte em seu ombro direito enquanto tentava enfiar a chave na fechadura. Eu preciso cantar. Eu preciso cantar. Eu preciso cantar. Repetia o homem que sorria com os olhos.

- O senhor precisa ficar. - Informara-lhe Carlos, o único com a coragem para encará-lo naquele momento. Celeste recusara-se a dar a notícia a ele. Ele não pode, Celeste. Infelizmente, um lapso de memória e pronto. Tudo acabado. Celeste ainda tentara convencer Carlos a mudar de ideia. Queria-o ao seu lado. Ele está tão animado e corajoso. Sente-se tão útil. Deixe-o ir. Ela implorara sentada no banco traseiro de seu carro. Nando a convencera do contrário. Ainda desnorteado e francamente derrotado por tudo o que ouvira e pelo que imaginava estar acontecendo à Giulia, ele a convencera de que o pai não poderia seguir com eles. - " A doença, mãe. A doença." - Preste atenção, Enzo. Não fique assim. - Carlos segurava o homem alquebrado pelos ombros. Sua voz serena aliás firme atraíra a sua atenção. Seu olhar incisivo fixara-se aos azuis de gude tal qual o do filho. Aumente o som, meu filho! Aumente o som! Eles estão conversando! E Nando girava o botão do volume agindo por imposição e não pela razão. A música alastrava-se pela rua, descendo a ladeira, atraindo olhares curiosos dos que comentavam sobre os homens da bruxa, amante de Satã. Outros compadeciam-se da família em sofrimento. A chuva chegava de mansinho, envolvida pelo vento frio do início da noite sem estrelas ou luar. - "Uma noite escura e sombria". - Pensara Celeste, observando o céu através da janela escura do carro de Carlos. Por instantes, vira a luz alaranjada do poste tremeluzir como as chamas de uma vela sob a ação da brisa. Uma lufada de ar quente atingira seu rosto. A mesma sensação que tivera quando tomava chá com Eulália naquela tarde onde ela o vira pela primeira vez. - "Ele está aqui". - O senhor é uma peça de fundamental importância em tudo isso. - Asseverou Carlos. - "Sou!?" - Sim! Imagine se ela fugir!? Certamente, virá bater no seu portão e quem estará aqui para recebê-la? - Carlos apertara suas mãos, afundando os olhos hipnóticos nos dele. Deus! E ele odiava usar de suas faculdades daquela forma leviana.

- Sim! Claro! Ela pode vir pra cá e eu abrirei a porta para ela. "Correto". - Eu estarei aqui e a abraçarei. Ahhh! Minha Giulinha. Não tenha medo! - "Perfeito". - Eu estarei aqui. O tio vai te esperar, meu anjo. O tio vai te esperar. - "Concluído". Carlos, por fim, pousara a mão direita em sua nuca, puxando-o para si, encostando sua testa à dele. - Fique aqui e não pense em nada além de música. - Falara baixinho aos ouvidos aguçados de Enzo. Enzo balançara a cabeça, olhos vagos, sorriso nos lábios. "- Vc não se lembra de nada que conversamos aqui, não é?" - Enzo não soubera responder. Apenas retribuíra o forte abraço do rapaz com a fala doce e penetrante que o fazia ter vontade de dormir.

- Voltaremos com ela, amor! - Celeste cantarolou a frase enquanto Carlos afundava o pé no acelerador. Ela o vira afastar-se de si, com aquela expressão alheia a tudo e pensara que deveria tratar de um problema por vez. Se não for assim, antes de infartar, eu enlouqueço. - O que vc fez com ele, Carlos? - Interrogara-o com seu olhar questionador que não dava margens a outra resposta a não ser a verdade. Coisa boba, Celeste. Coisa boba. Repetira ao volante, contraindo as feições. Pensava em Giulia e no filho da puta que deveria voltar ao lugar de onde nunca deveria ter saído: ao inferno. Em poucos minutos, passava da segunda à quinta marcha, chegando aos cento e vinte por hora. - Vamos conseguir, não vamos? - Ela gritara do banco traseiro. Precisava acreditar. No carro, ouviam Bach. Ahh! Celeste amava as composições de Johann Sebastian Bach. "Jesus, a Alegria dos Homens."

- Sim. Vamos. - Respondera, num tom distante, ao reflexo de Celeste no retrovisor acima de sua cabeça e, ato contínuo, lançara um olhar piedoso ao amigo ao seu lado. Amiudava-se no banco do carona como uma criança indefesa com medo do escuro. Lembrara-se dos tempos de faculdade onde ele era obrigado a defendê-lo dos namorados enciumados e revoltados das meninas com quem Nando se metia somente por sentir uma forte estima por ele. Não saberia dizer, àquela época, de onde ela viera. Apenas a sentia, Gostava de seu lado inconsequente, tão distinto de sua própria personalidade, introspectiva, observadora. - "Cara! Eu não tive culpa. Elas me amam. O que eu posso fazer?" - Dessa vez...só dessa vez, faz o que eu te pedir, ok?

- Ok. - A voz de Nando saíra por um fio. A imagem de Giulia sendo tocada por outro homem não lhe saía da cabeça, vergastando-lhe a alma, acordando um monstro dentro de si. Cravara as unhas na pele de seu próprio antebraço e filetes de sangue escorriam pelo pulso até mancharem a camisa branca de malha, com a gola polo. A preferida de Giulia. Observava a mancha crescer de tamanho, espalhando-se pelo tecido e não ouvira a mãe ofertando-lhe o lenço e sua tentativa em limpar as feridas. Não ouvira Carlos pedindo-lhe que colocasse o cinto de segurança ou o ronco do motor que, agora, fervilhava a mais de cento e cinquenta por hora. Ouvira apenas a voz dela a lhe chamar. Ouvira a voz suave e inocente da menina de olhos vívidos e tristes a lhe implorar por ajuda. Com os olhos turvos, começara a recitar a canção com que ele a fizera dormir em seus braços quando se amaram pela primeira vez. Recitara com a voz baixa e rápida, levado pelo seu próprio ritmo. Eles não as lágrimas em seu rosto. Ele fitava seu próprio reflexo na janela lateral do carona.

- Espere por mim, morena. Espere que eu chego já. - Silenciara por segundos engolira em seco e desembargara a voz. - O amor por vc, morena, faz a saudade me apressar.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 06/09/2019
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