'SEGUNDA CHAMADA' - Extraído do livro "Giulia-Quando a Luz se apaga"

Melhor assim. Nada como poder se esquecer. Dissera-o baixinho, com um sorriso pálido no rosto. Esquecer-se de tudo. Eu gostaria. Seria tão mais leve. Por que ela o beija daquele jeito? Por que me faz sofrer, Giulia? Que merda que eu vim fazer aqui!? Seus seios estavam perfeitos. Perfeitos. Ele havia feito um ótimo trabalho de reconstrução. Ele os tocara com tanta delicadeza. Pra quê!? Ela ficou com ele depois de tudo, otário. Tá lá, morando com ele. Confabulara consigo mesmo folheando a revista com tanta pressa e vigor que rasgara uma das páginas. Amassara a página, reduzindo-a a uma pequenina bolinha em sua mão forte, grande e cheia de rancor e mágoa. Ela beijava o outro como se ele fosse o seu salvador. Não valia nada a menina. Ele a vira abraçada ao outro, de longe, ressentido, amparado pelo abraço de Celeste que tudo percebera.

- "São duas crianças, Carlos." - Celeste comentara baixinho, bem próxima a ele dias após o resgate da 'Noiva do Demônio", como ficara conhecido aquele episódio entre os moradores daquele malfadado vilarejo. "- Não sei quem é o mais infantil, meu bem. Sinceramente, temo pelos dois." - Ela o confessara, olhos baixos, uma mão sobre o peito e a outra recostada ao ombro de Carlos, o 'Santo'. - "Eu amo meu filho e amo a Giulia. E posso dizer que te amo também, meu querido". - Aqueles olhos risonhos e pacíficos! Quem ficaria imune a eles. Carlos não. Carlos passara a adorar Celeste e seu jeito de olhar, de falar sempre com ternura e os braços que se movimentavam como as asas de uma borboleta recém-saída do casulo. E seu jeito de sorrir, sempre encabulado, com os olhos piscantes. - "Ahhh! Vc está envergonhado! Que lindo esse seu jeitinho, Carlos. Vc fica ainda mais irresistível com essas bochechas rosadas, sabia?" - Suas sobrancelhas moviam-se insinuantes, divertidamente. - "Se eu fosse uns vinte anos mais nova...não! Uns dez!" - rira-se de curvar o tronco e ao subir, engolia o riso, inspirando profundamente, olhando ao redor, como se houvesse feito algo de terrível, indesculpável.

É. Eram essas as características e fascinantes que conquistaram o respeito e o amor de Carlos que a fitava com os olhos serenos.

- "Perdão, querido." - Baixara o tom de voz, após um breve pigarrear. Pousou a mão sobre o braço dele e continuou com aquela expressão grave e morna em seu rosto sofrido. - "Sei que vc a ama. E eu, do fundo do meu coração, adoraria ver vcs dois juntos se isso não magoasse meu filho, vc me entende? Carlos, vc é capaz de me entender? Diga, meu bem. Diga que me entende. Por favor, diga que me entende. Eu gostaria tanto que vc me entendesse!" - Ele assentira com a cabeça e um meio sorriso no rosto e os olhos amáveis. Ah! Agora sinto-me melhor. Não deveria, mas sinto-me. Vc deve estar sofrendo. Afirmara, voltando os olhos semicerrados ao filho e à sobrinha que se mostravam apaixonados, enroscados um ao outro, como linhas em um novelo de lã, logo ali, diante dele, à mesa de jantar. Quantas recordações teria para contar aquela mesa de jantar, a cozinha, os cômodos da velha Casa Lilás. Ela as contaria a quem afinal?

As coisas não são como a gente quer, Celeste pensara abanando a cabeça num gesto de reprovação ao casal que deveria ter mais recato, mais respeito pelo rapaz que arriscara sua própria vida pelo bem dos dois, esquecendo-se de si mesmo. E ele ali, tão calado, tão contido e tão sofrido. Pobre Carlos, Ela pensara. O que diria? E que partidão Giulia estaria perdendo! Um homem e tanto! Ai, Celeste, aquiete-se. Pobre Carlos. - "Então..."- Pigarreara. Ele erguera as sobrancelhas, incitando-a a falar. Não me olhe assim, meu bem. Estou em cólicas. O que se fala numa hora como essa? Giulia, meu bem! Poderia se conter um pouco mais na frente dele!? Pelos deuses! Pra que se beijar tão ostensivamente!? Se demorarem mais um pouco, ela perde os sentidos. Ela o ouvira gargalhar. Pensara que a dor seria tão grande a ponto de enlouquecer o rapaz. - "Coma mais uma fatia da lasanha, Carlos! Enzo fez com tanto carinho! Embora tenha se esquecido do molho". - Aproximara-se dele como a contar-lhe um segredo. - "Um lapso. Coisa boba." - Dera um risinho sem graça, uma ajeitada no cabelo e aquele jeito de voltar ao normal, como se tudo estivesse na mais perfeita ordem. - "E Camila? Tem visto Camila? Um primor de menina! Vcs dois formam um casal tão bonito! Deveriam tentar novamente Carlos". - Ele baixara a cabeça enquanto partia uma fatia da massa ainda fumegando. E eu que fiz mau juízo de vc, meu bem. Pensei até que fosse maligno. Sério!? Ele sorria enquanto deglutia a lasanha com um molho improvisado. Sou tão feio assim? Carlos, vc me ouve? Ela estava pálida como um fantasma. Celeste! Ele a fitara com aquela expressão: "Essa não é a primeira vez.". É. É mesmo. Eu tinha me esquecido. Essa coisa ainda é tão louca, não é mesmo? Ele abanara a cabeça, evitando olhar para Giulia que parecia compreendê-los. Celeste o ouvia com nitidez. Uma nitidez interior e inexplicável. Sorriam um para o outro como crianças que compartilham um segredo e se envaidecem por isso. Fernando notara aquela cumplicidade e em seus olhos, a inveja típica dos filhos enciumados. Tente ser feliz, meu filho. Ame quem te ama. Camila me parece uma ótima menina. Ela esticara-se sobre a mesa, alcançando seu braço, deslizando sua mão até a dele. Deu-lhe uma piscada. - "Quem sabe a felicidade está onde menos esperamos? Hummm...não está deliciosa essa lasanha?" Perfeita! - "Ai, Carlos, vc é um pedaço de mau caminho!" - Ele abrira um sorriso que inundara seu rosto de luz. Aquele sorriso ele reservava somente aos que realmente o mereciam. Homem de poucos sorrisos, Carlos, 'O Santo'.

Era o título que Carlos recebera após sair da casa assombrada com a moça louca e exorcizada, em seu colo. Tudo isso graças à inestimável colaboração de Carlota, a vizinha à esquerda da Casa Lilás. Aquelazinha que sempre cobiçara Enzo, sem jamais ser, por ele, correspondida, apesar de seus olhares lânguidos e de sua fala mansa, melosa, deveras enjoativa. Ela, Carlota, fizera questão de anotar os pormenores do salvamento e depois, como se houvesse presenciado a tudo, estando dentro da casa, como uma repórter desbravadora, num furo de reportagem, com flashes ao vivo e seu câmera-man a tiracolo, fizera questão de espalhar aos quatro ventos sua versão da história. Eis a versão compactada:

Giulia fizera um pacto com o diabo, trancafiara os pais em casa, deixando-os à míngua, por dias a fio. Em seguida, fornicara por longas noites com o próprio Satanás, com quem tivera um filho, mas, o pobrezinho morrera ali mesmo, dentro do quarto sem ter visto a luz do dia. Endiabrada, Giulia - que já não prestava por ter hábitos estranhos como vaguear à noite pelas ruas e beber água da chuva - recostada ao peitoril da janela, entoava cânticos e feitiços que atraíram seus dois homens, inocentes, ao covil do Maligno. O filho da 'Mulher de Branco' levara três socos da possuída que passara a ter um força descomunal, quebrando, inclusive, o joelho do pobre moço, em três partes distintas. Ele voltara ao carro, aos prantos. O 'Santo', homem ma-ra-vi-lho-so com olhos que a comiam viva (foram estas as palavras de Carlota) e músculos escondidos e insinuados pelo manto sagrado de um azul profundamente escuro, abrira um portal para o outro mundo, de um violeta púrpura, em meio ao jardim da casa por onde levitara até o quarto da louca. Ele, num só gesto, enviara ao inferno o demônio seduzido pela ninfeta, desfizera o pacto sombrio e ainda controlara o fogo ardente da bailarina esnobe com uma pequenino auxílio de uma chuva torrencial jamais vista por aquelas bandas. Caíra justo no momento do resgate! Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo! Somente assim, ele pudera trazê-la nos braços. E não parou aí não! Quando todos seguiram na ambulância que surgira do nada, certamente, uma intervenção divina, mérito da mão do rapaz aleijado, o 'Santo' fora visto em atitude suspeita, dentro de seu próprio carro, ao lado da noiva do demônio que abrira as asas negras como as de um morcego e o fizera seu escravo, pois ele a levara dali e o destino, nem mesmo Carlota soubera dizer. Este fora o relato de Carlota.

- "Anotar na agenda: Vingar-se de Carlota o quanto antes", pensara Celeste.

***

Um outro avião havia acabado de decolar e a sua vez estaria chegando. Estranhava o fato de já não ter chegado. Aviões vem e vão, um após o outro. O dele parecia resistir à viagem. Deixaria o país por um longo período. Seus negócios iam de vento em popa e, com dinheiro, ele não precisaria se preocupar. Investia aqui e ali e, a cada investimento, sua fortuna multiplicava-se. Era um homem de sorte e de um vasto conhecimento apesar da pouca idade. A quem deixaria o que conquistara durante sua curta vida? Pensara em ter filhos com os olhos castanhos esverdeados como os dela. Dois rostos muito familiares surgiram em sua mente. Lembrava-se quase com perfeição dos traços finos e delicados de Ève e Antoine. Isso é ridículo, ele pensara, vasculhando com os olhos aflitos o saguão agora vazio. - "E se for tudo coisa da minha mente? Se não houver filhos, Morgana ou vidas passadas? Se o que eu vi na regressão for coisa da minha cabeça? Mas eu sinto. Sinto aqui...dentro da minha cabeça. Eu vejo e sinto e meu coração dói de saudades. Não tô louco. Não. Afundara a cabeça entre os joelhos e rira-se de si mesmo. E aquela noite? Era ela, minha Morgana. Eu sou Vincenzo. Sou sim.

Revia agora os últimos acontecimentos. Jamais havia pensado que um dia usaria um Rakusu fora do mosteiro ou organizaria um grupo de busca e resgate tão insólito como aquele ou lidaria com criaturas de Outro Mundo, tudo ao som de David Bowie e INXS . - Under Pressure! - Exclamara, rindo de si mesmo de uma forma totalmente agradável e condescendente. - Bem apropriado. - Rira baixinho por minutos. Chegara a ruborizar, escondendo o rosto entre as mãos que deslizavam por seus cabelos negros e ondulados. Precisava cortá-los. Ela gostava de seus cabelos bem curtos. - "Espetando, arranhando, Carlos. É assim que eu quero, coisa fofa." - Ouvira a voz rouca de Giulia ao seu ouvido. Chorava de tanto rir sozinho, ali sentado, emendando um riso ao outro, não se importando com os rostos curiosos, interrogativos dos que, por ali, passavam. Arquejara, desolado e, por fim, sucumbira a um mudo desespero. Não queria se afastar. Queria lutar por ela. Era dele. Ela pertencia a ele. Fora assim em outras vidas. Deveria continuar a ser. Ele levara tanto tempo até reencontrá-la. - Ela é minha. Sempre foi. - dissera-o baixinho, voltando os olhos turvos ao azul do céu visto através da grande cortina de vidro. No alto-falante, uma canção. Bem poderia ser a deles. A letra simples e profunda, a voz grave e intermitente do cantor e a melodia que despertava a paixão, a loucura, o desejo combinava com a história dos dois. Combinava com o jeito impulsivo dela. Dava para imaginá-la correndo até seus braços, lançando-se sobre ele como se voasse após impulsionar o corpo num trampolim. Ah...se ele não tivesse revirado o lixo do colega de quarto à procura da carta, eles nunca teriam se reencontrado. Ele nunca a teria visto naquela festa em seu vestido vermelho, com um decote encantadoramente provocante. Ainda era uma menina. Uma menina com olhos salientes num corpo de mulher. Seios exuberantes sob um tecido fino com frufrus e fitinhas de seda da cor do vestido. E como ela se curvava diante dele! Curvava-se para a frente, devassando o abismo entre seus seios. Um abismo perfeitamente visível no qual ele mergulharia sem hesitar, naquela mesma noite, se ela não estivesse profundamente magoada com o amigo de infância que a trocara por outras moças mais experientes. - "Não liga. Eu o conheço. É fogo de palha. Amanhã, com a cabeça fresca, ele vai te pedir desculpas." - Odiara-se por ter sido tão politicamente correto quando, na verdade, sua vontade era a de roubá-la do colega de quarto que nunca respondera às suas cartas, nos tempos de faculdade. Melhor assim, ele pensou, reparando na mulher que passava à sua frente arrastando duas malas pesadas sobre saltos altíssimos. Parecia levar o corpo do marido traidor, mutilado, fatiado e entalado naqueles pequenos espaços quadrados, de couro preto. - Se ele tivesse respondido, eu não teria conseguido uma brecha. E então, nada teria acontecido. Nada é por acaso. Mas, às vezes, um pouco de astúcia muda tudo...tudo o que eu quero é ficar...- Um suspiro profundo e então aguçara a audição. Ouvia a música e a traduzia.

- 'E talvez, eu descubra um jeito de voltar algum dia, pra te vigiar, pra te guiar através da escuridão.' - Conhecia a letra e começara a cantarolar baixinho e ela voltara com força aos seus pensamentos. O primeiro beijo sem jeito. As mãos aflitas, o barulho ridículo dos dentes que se encostavam ao dele. A crise de riso. A paciência que ele tivera até que ela tomasse coragem e, respirando profundamente, entregava-se aos seus lábios e à sua língua experiente. - "Então...isso é beijar, Carlos? Acho que preciso praticar mais uma vezinha." Recostara na cadeira, braços erguidos, mãos que se apoiavam na nuca. Um sorriso patético grudara ao seu rosto. E, por mais que tentasse, lá estava ele, exercitando quase todos os seus músculos faciais. Agora, a mesma canção em inglês e aquela melodia mexia com seus nervos, de tão sentida. Penetrante. Não era o seu estilo de música. Muito comercial para o seu gosto, mas...mexia com ele.

" - If I could, then I would, I'll go wherever you will go.", reverberava, baixinho, o refrão.

- Eu vou aonde vc for...Giulia. - Pensara alto. - Eu não quero ir embora, amor. - Voltara a mergulhar a cabeça entre os joelhos. Agora, escondia um pranto silencioso. Assustara-se com a segunda chamada para o seu voo. Seu peito estalara de dor. Antes de apanhar a mala ao seu lado, sobre a cadeira e jogar a mochila sobre as costas, lançara um olhar esperançoso ao seu redor. Nada. O que esperava, imbecil? Que ela viesse aqui e te impedisse de partir? Seria um pouco mais fácil se vc tivesse dito que viajaria a todos durante aquele almoço. Somente a ela. Ao menos, a ela. Vc tinha que ter falado pra ela, porra! Vamos. Seja homem. Prossiga. Acabou. È finito.

***

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 14/09/2019
Reeditado em 15/09/2019
Código do texto: T6744642
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