'AINDA É CEDO' - do livro "Giulia - Quando a Luz se apaga"

As chaves ardiam em suas mãos trêmulas. Seu corpo todo tremia. Um tremor de nervosismo, raiva, impaciência consigo mesma. Irritava-se com ele. Com aquela atitude de bom moço que sempre cedia aos seus impulsos, seus desejos. Ele sempre a satisfazia nos menores desejos. E ela que nunca tivera os cuidados dos pais! Por vezes, ela o via como a um pai, sempre cuidadoso, zeloso, paciente para com as suas intransigências, sua impulsividade. Estaria perto de perder tudo e não sabia. Meu amor, ela sussurrara, comprimindo as chaves contra o peito enquanto apressava o passo por entre as ruas em que caminhava. Não poderia avaliar onde se encontrava naquele momento. Sabia somente que deveria se apressar. O que ficara do sonho da noite passada comprimia-lhe o coração dolorido, sufocado. As mãos que se separavam, a canção que não lhe saía da cabeça a despeito de não compreendê-la, as pessoas indo e vindo e um estranho som como sinos e a voz que lhe dizia para se apressar. Que sonho horrível! Um pesadelo. Nada de mais. Apenas um pesadelo. Acalmava-se a si mesma, pois estava sozinha entre dezenas de pessoas. Esquecera-se do caminho. Não. Deveria se lembrar quando visse algo. Algo que a lembrasse de onde deveria estar. Como? Se não sabia para onde seguia. Ah! Era tudo tão complicado em sua cabeça. Tudo lhe sumia da cabeça. Tudo se confundia. De súbito, levara as mãos trêmulas ao rosto, contendo um desejo absurdo de chorar em meio à multidão que a cercava.O ar lhe faltava. A cabeça lhe doía. Os gritos das crianças, as buzinas, as sirenes, as vozes, os pensamentos que se misturavam aos dela. - "Carlos, meu amor. Onde vc tá?". - Ela continuara a seguir adiante, olhos turvos, cabeça voltada para o chão. Evitava os olhares alheios. Olhos de ódio, raiva, cobiça, revolta. Olhos de um povo sofrido. Não havia sorrisos como os dele sempre prontos a acalmar o inferno em que ela costumava habitar até que ele a envolvesse em seus braços e a chamasse de Morgana. Tadinho. Cismou com isso. Sorria, complacentemente, fitando o céu azul, com nuvens branquinhas que deslizavam para o norte como se estivessem atrasadas para algum compromisso social, um casamento talvez. Ou seria para o Sul? Ela jamais soubera designar os pontos cardeais. - " O sol nasce ao Leste, Giulia!", gritava Fernando ao seu ouvido, enquanto ria-se vendo-a como um boneco, braços abertos como uma cruz humana em meio ao jardim de sua tia. - "E se põe ao Oeste, logo, o Norte está à sua frente e o Sul, atrás de vc. Eu já te expliquei isso antes. Chega!". - E se eu não souber onde o sol nasceu hoje? Sim. Eu tô longe de casa. Não sei onde ele nasceu. Lá em casa, ele nasce à direita do meu portão e se põe, à esquerda. E aqui!? Onde eu tô? Pronto! Ah! O Norte e o Sul que vão pra puta que os pariu, porra! Não gosto dessa maneira de me orientar, ela pensou, sem parar de andar ou pensar nele. No menino de olhos azuis que se mostrava arredio aos seus carinhos novamente. Acontecera algo que o afastara de si novamente. Ah! Isso realmente a tirava do sério a ponto de esbofeteá-lo num rompante de paixão não correspondida para, logo em seguida, afagar-lhe a face atingida com beijos e carícias e sucos de frutas, massagens no joelho em recuperação e pedaços de bolo que ela mesmo havia preparado.

Sua tia não estava bem das pernas. Ela tentava esconder de Giulia, mas Giulia percebia os arquejos de dor, as constantes astenias, as repentinas tonteiras, as cartelas de calmante sobre a mesinha de cabeceira. - "E se eu tomar um, eu durmo pra sempre? Ora cale-se! Agora que tudo está bem. Pela primeira vez, vc está onde sempre desejou, entre os que vc ama! Para que dormir e não acordar? É. Isso! Não tem sentido. Tenho tudo agora. Tudo. Tudo. Agora, tenho tudo. - Repetia, de olhos grudados no semáforo. Vermelho, vermelho, vermelho, vermelho. Vai dar. Vai dar...espera ...um...pouco. Merda. Abriu. - Correra por entre os carros ruidosos que circulavam, céleres e os motoristas absortos em seus pensamentos. Ouvira os xingamentos e os gracejos. Percebia agora que saíra de casa com a roupa que usava para lavar o quintal ou arear as panelas. Um vestido de Chita. E ela adorava aquele vestido de chita que lhe caía como uma pluma. Flores imensas e coloridas de um azul exuberante ao amarelo ensolarado, sob um fundo verde da cor dos campos verdejantes. Os campos verdejantes aonde Carlos prometera levá-la quando viajassem de volta à Itália! - "Mas eu não posso voltar a um lugar onde nunca estive, Carlos! Esqueça essa história! Eu já te falei, meu bem. Vc vai enlouquecer com essa coisa de se lembrar de duas vidas. Eu, heim! Uma vida já me deixa louca! Imagine duas! Para! Para de me chamar de Morgana porque sou capaz de matar vc e ela, os dois, de uma só vez, com minha espada flamejante! Não ria, Carlos. Sim. Espada. Hummm...seu safado pervertido. Não quero ver sua espada! Não mostre! Esconda isso a-go-ra!" - Ria-se, enrubescida tendo em sua mente aquele corpo nu, enrolado em uma toalha felpuda branca, levemente presa, enroscada em sua cintura onde ela chegava a ver aquelas protuberâncias pornográficas - as cristas ilíacas - que a levariam ao pecado. Ocorrera-lhe excitar-se com duas partes do corpo de seus homens que possuíam nomes bizarros. Que nomes! E que partes! As Cristas Ilíacas e o Pomo-de-Adão! O pomo-de-Adão de Nando! Ahh...não havia nada igual! Agora, as cristas ilíacas de Carlos. Os pingos da água do chuveiro ainda acariciavam sua pele fresca, macia, perfeita...ahhh! Tudo nele era perfeito, Senhor! Onde vc tá, meu amor. Por favor, haja o que houver, me espere! Tá me ouvindo? Talvez esteja. Vc me ensinou, lembra? Me ouça...me ouça, Carlos. Me espere.

***

Levara um tempo até chegar à mansão de Carlos e, petrificada, horrorizada, constatara o que seu coração já pressentia. - "Ele viajou, querida. Hoje mesmo. E me parece que desta vez, será por um bom tempo." - Informara a governanta que simpatizara com Giulia desde que a conhecera, apesar de achá-la invasiva, limpando e organizando tudo, na intenção de ajudar e acabava por atrapalhar o seu serviço. Nelly querida, não me custa nada. Eu lavo, passo, cozinho e faxino que é uma beleza! Agora, Nelly a via ali, agarrada ao portão, quase a desfalecer. - "Ele te esperou por um tempo, sabe? Quando cobrimos os móveis com lençóis, ele te esperou. Não! Não chore, criança. Vc é mais forte do que imagina. Vamos, levante-se. Deixe-me ajudá-la." - Giulia apoiava-se num dos lados do portão da casa onde fora feliz um dia. Deixara o pranto rolar sem se importar com a senhora distinta com seu belo coque preso no alto da cabeça e um pequeno colar de pérolas ao redor do fino pescoço que lhe conferia uma elegância imponente. Talvez por ter uma neta da mesma idade de Giulia ou por ter amado muito seu esposo e tê-lo perdido para o Câncer, ela a compreendesse e sentisse sua dor como sendo sua. Ali, parada, recostada ao portão, ela a convidara a entrar e a tomar algo, descansar, recompor-se, pois a via com ares de alguém que estivesse em fuga e parasse à sua porta somente para poder respirar e prosseguir, em completo desalinho. Era bonita a moça. Seu patrão não havia mentido quanto lhe confessara estar viajando para tentar esquecer uma linda mulher com jeito de criança. Um bom homem, pensara a governanta enquanto observava os traços delicados daquele rosto umedecido pelas lágrimas abundantes, e como se alguém a houvesse empurrado para frente, a senhora elegante e discreta, jogara-se sobre Giulia e a tomara em seus braços num amplexo, tão perplexa quanto Giulia que se deixara abraçar. Precisava de amparo naquele momento desolador. Não mais o veria. Não mais ouviria sua voz ou sentiria seu toque. Não lhe pediria desculpas por ter sido tola em seu último encontro. Diria a ele que beijara Nando daquela forma voluptuosa somente por querer que ele a notasse, sentisse ciúmes ou por querer satisfazer seus fetiches em observar e se deliciar com o prazer alheio, tornando-o seu.

Estava tudo perdido, ela pensara, jogando-se, desleixadamente, sobre o degrau da escadaria que dava para a porta de entrada da mansão, cotovelos apoiados nos joelhos, mãos que cobriam o rosto manchado pelo rímel preto que desciam pelo seu rosto formando dos perfeitos filetes. Acabou. Suspirou, derrotada. Acabou assim? Fitava as folhas secas sobre o chão e percebera um belo tapete vivo, amarelo cor de ouro ao redor das árvores e dos arbustos e da Dama-da-Noite, sua árvore predileta. Ele também adorava a essência que dela exalava ao anoitecer. - "Sempre que eu sentir esse cheirinho delicioso, vou me lembrar de vc." - E então, ela o fitava com fogo nos olhos enquanto ele sorria e explicava, uma, duas, três vezes se fosse necessário. - "Não. Não quero te deixar. Nunca. Aonde vc for, eu vou". E, dizendo isso, ele pousava a mão, delicadamente sobre seus cabelos e o adornava com aquela florzinha branca e extremamente delicada e com um perfume inigualável. Beijavam-se sob o alpendre de madeira da varanda do quarto onde dormiam juntinhos, com um sorriso estampado em seus rostos.

- Acabou. - Ela dissera com a voz entrecortada por soluços.

- Ainda não. - A governanta replicara com um leve erguer de sobrancelha, fitando-a de cima para baixo. Secara seu rosto, limpando os filetes negros com um lenço de papel umedecido. - Levante-se, vamos. Erga-se. Componha-se! Pegue isso. - Tirara algumas cédulas de sua carteira e, num gesto discreto, colocara-os na palma da mão de Giulia, forçando-a a fechar a mão com a sua mão sobre a dela, e a cobrir a quantia. A mão da governanta fechara-se sobre a dela com força como se quisesse lhe transmitir uma mensagem, ainda que sentisse a mão delicada e lisa e jovem de Giulia a lutar por abrir-se e devolver o que não lhe pertencia. - Tome um táxi e vá direto ao aeroporto. Ele não saiu há tanto tempo assim e voos costumam atrasar. - Piscara para Giulia que sorrira entre lágrimas. Jamais imaginaria ver aquela senhora tão garbosa e contida a piscar para ela.

- Não posso! - Exclamara, indignada.

- Pode. - Afirmara com tranquilidade.

- Não devo. - Retrucara, duvidosa.

- Vá. - Pedira, apontando para a calçada onde, logo adiante, havia uma fileira de carrinhos amarelos com letras brilhantes e toscas onde se lia - TÁXI - logo acima do teto.

- A senhora precisa entender que eu não sou o tipo que corre atrás de outro homem, sendo compromissada, entende!? - Seus olhos arregalados, as mãos cruzadas sobre o peito oprimido, as chaves guardadas dentro do sutiã, do lado esquerdo. Ela as havia esquecido. Apalpava o seio e sorria, agradecida. Ahh...elas estão aqui. Menina estranha, pensara a governanta enquanto a via tocar um dos seios com aquela expressão de louvor. No entanto, Nelly, que aceitara esse nome (este não era seu nome de batismo) por insistência de Giulia que reconhecera nela a governanta fiel, amorosa e forte de Cathy em "O Morro dos Ventos Uivantes", conhecia a fama de destrambelhada, arrebatada da menina que enfeitiçara seu patrão por quem nutria um forte sentimento maternal. Fora praticamente ela, Nelly, quem cuidara de Carlos quando o conhecera ainda na casa dos pais do moço. Que morte estranha os pais de Carlos tiveram, ocorrera-lhe este pensamento justo ali, em frente à Giulia que parecia uma italiana com seus gestos exageradamente dramáticos, olhos que se abriam demais ou cerravam-se por um longo tempo, seguido por um profundo suspiro. - Nelly! Eu preciso falar com ele. Preciso mesmo. Sou noiva, sabe. Sim. Eu não te contei? Tenho um noivo e vou me casar com ele. Bem. É o que pretendo quando ele me pedir, e eu espero que peça. Bem, é quase certo que ele vai me pedir, mas, eu...eu gosto muito de Carlos, entende? É um tipo de gostar diferente, mas...

- Mocinha. - Falara entre dentes, impaciente. - Está perdendo seu tempo. - A senhora de coque perfeito segurava Giulia pelos ombros e por um átimo de segundo, não a chacoalhara como uma roupa seca que se tira do varal. - Vá! - Ordenara-lhe aflita.

- Mas...eu não...- Ela empurrara Giulia para fora da propriedade, trancando o portão pelo lado de dentro. - Tenho medo! - Giulia agarrada ao portão. Giulia choramingando, encostando a testa nas frias grades do portão que guardava tantas memórias! - E se eu não o encontrar!? - Gritara à Nelly, já no alto da escadaria, ereta, cenho franzido, digna como a Estátua da Liberdade.

- Chame por ele! Grite pelo nome dele! Faça qualquer coisa, mas vá! - Giulia fez que sim e antes que pudesse agradecer, abrir a boca e emitir algum som, ouvira a mulher rugir, de braço erguido. - VÁ!

- EU VOU! EU VOU! - Saltitava a menina que despedira-se de Nelly com as mãos que se agitavam no ar como as hélices de um helicóptero prestes a decolar. DECOLAR! Correra atrás do último carro cujo motorista desistiria de trabalhar naquele exato momento por não ter passageiros, mas encantara-se pelas coxas delineadas da bailarina, logo ali adiante, acenando-lhe com os braços acima da cabeça, cruzava-os e os descruzava como um guarda de trânsito em meio a uma avenida com o tráfego caótico. Faltava-lhe somente o apito. Giulia estava em total descontrole. - Leve-me ao aeroporto! - Ameaçara, de supetão, com a metade do tronco enfiado pela janela do carona. Um sinistro sorriso surgira em seu rosto fatigado. Enfim, pronunciava estas palavras. Sentira-se tão poderosa ao dizer aquelas palavras! Sempre assistira aos filmes e jurara para si mesma que um dia ela as diria. E lá estava ela! Deslizara no banco traseiro com a velocidade de um relâmpago. Diria: "Siga aquele carro!", mas se contivera, agarrando-se ao encosto do banco do motorista, quase a encostar seu rosto ao dele. Falara um pouco mais alto do que o necessário. - Siga até o aeroporto!

- Qual, senhorita?

- Não sei! - Exclamara em profundo desespero. Levara aos mãos às têmporas, revirava os olhos atônitos sob o olhar intrigado do homem ao volante que aguardava a resposta, vendo-a pelo retrovisor. - Onde ele tá? Quantos aeroportos existem nesta cidade? Meu Deus, me ajuda! Eu o perdi. Eu o perdi! Moço, eu o perdi! - Enfurnara os dedos em suas madeixas e as puxaria com força se ele não a impedisse, voltando-se para ela com um sorriso benevolente.

- Senhorita, acalme-se. - A voz do homem era suave e passava uma certa confiança. Os cabelos grisalhos emprestavam-lhe um ar digno e seus olhos...eram os olhos de seu tio. O homem sorria com os olhos. - A senhorita pretende se encontrar com o Sr. Carlos? Aquele que mora logo ali? - Apontava com o dedo para a mansão de onde Nelly a fitava, imperturbável. Ela assentira com a cabeça, pois as palavras lhe faltavam. O raciocínio ficara do lado de fora do carro. Ou nunca o tivera. - Eu o levei até o Internacional não faz muito tempo.

- Graças a Deus! - Ele a via jogar o corpo contra o assento, pálida, ofegante, quase sem ar. Ligara o ar-condicionado. - Fique tranquila. Vai dar tudo certo. - A música! A mesma música flutuava até seus ouvidos vindas do aparelho de som daquele carro. A música do sonho. Da moça na escuridão; do homem que a amava e a conduziria através da escuridão e ele iria aonde ela fosse. Ah! Era aquela a canção! Era a canção! É ela! É um sinal! Só pode ser um sinal! Ela sopesava mentalmente. Definitivamente, é um sinal. Seu corpo pendia para frente e para trás como o pêndulo de um relógio Carrilhão. O MESMO DA CASA DE CARLOS! Exultara de si para consigo. Olhos desmesuradamente abertos e vívidos. É um sinal! - "Menina estranha. Estranha e muito bonita.", pensara o senhor com os olhos risonhos. Recostava, agora, sossegada, a cabeça no apoio aconchegante de couro, apreciando os altos coqueiros enfileirados ao longo da alameda, através da janela do automóvel que ultrapassava os noventa quilômetros por hora. O verde contrastando com o azul do céu e as nuvens que pareciam ter mudado de ideia. Agora voltavam ao Sul. Ou iriam para o Norte? O que me importa? Eu vou te encontrar, meu amor. Me espera, me ouça, me ouça. Eu vou te encontrar. - Avisava-o telepaticamente sem ter a menor ideia se aquilo funcionaria ou não. - If i could, when i would...- Cantarolava baixinho, com um sorriso patético no rosto, cabelos esvoaçantes, batimentos cardíacos em descompasso. Suspiros esperançosos. - I'll go wherever you will go.

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Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 15/09/2019
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