'PER SEMPRE' - do livro "Giulia - Quando a Luz se apaga"

Estancara assim que vira o saguão repleto de pessoas indo e vindo num movimento incessante. Malas que passavam sobre seus pés. Seus pés que calçavam uma de suas piores sapatilhas. As que usava para fazer compras no mercadinho da esquina! Ora, bolas! Quem poderia supor que ela estaria num dos mais movimentados aeroportos do mundo naquele final de tarde? O molho de chaves chacoalhava em uma de suas mãos fazendo ruído, abrindo espaço por onde passasse. Seus olhos assombrados e lacrimosos, sua respiração incompleta, seus cabelos numa completa confusão de fios, emaranhados e armados como se estivesse prestes a desfilar em um passarela, cheios de laquê. Quem não abriria espaço para que ela passasse? Olhavam-na com compaixão. Havia tanto desespero em suas feições. Tanta medo em não encontrá-lo. Avistara logo acima de sua cabeça uma placa onde se lia claramente: PORTÃO DE DESEMBARQUE. - Agora, as lágrimas embaçavam suas vistas, impedindo-a de caminhar. O horror tomava conta de seu corpo frágil, pois não se alimentara desde que acordara com a ideia fixa de que algo de ruim aconteceria. Meus tios. Eu os deixei sozinhos. Lembrava-se Giulia, tarde demais. Deus, proteja meus tios e, se puder, me ajude a encontrar ele. Eu sei que o certo é 'encontrá-lo', mas...ME AJUDA! Cerrara os olhos e ouvia as vozes. Eram tantas, vindas de tantos lugares. Ouvira os sinos! Os mesmos sinos do sonho! Na verdade, não eram sinos. Era a voz de chocolate da funcionária do aeroporto num speech de "segunda chamada" ao microfone, para o voo com destino à Itália. E o que seria "segunda chamada"? Ela olhava à sua roda, olhos questionadores. Alguém pode me dizer o que isso significa? Itália, mia Itália...é pra lá que ele vai. Sorrira confiante. Eu sei. Eu sinto. - Carlos! - Gritara tão confusa e desamparada quanto uma criança perdida dos pais. Queria se mover, mas não conseguia. A desesperança agarrava-se às suas pernas. A Solidão lhe abraçava. - "Primeiro a amiga. Depois o amante. Então, o amor." Ouvira uma voz cavernosa sussurrando em seus ouvidos. Era a voz interior. Aquela que queria acordar e sujar tudo o que ele, seu amante e amor havia limpado. - "Giulia...não há como escapar. Ao final, serei eu a te acompanhar até o fim dos dias." - NUNCA! - Bradara heroicamente, arrastando-se pelo salão, olhando para tudo e para todos, adivinhando os passos do homem amado. Abriam espaço para que ela e sua dor chegassem ao seu destino. Um homem alto e negro, olhos acinzentados e dentes perfeitos surgira à sua frente, sorrindo-lhe afetuosamente. Ela baixara a cabeça, desnorteada. Ele a entendera sem que ela precisasse pronunciar, com palavras, o que procurava. O senhor me ouve? Ele assentira com a cabeça e seus olhos encheram-se de água. Ahh...o pobre homem era sensível à sua dor. Como um bravo e nobre guerreiro celta, ele lhe oferecera o braço. Ela hesitara por pouco tempo e acabara por enlaçar o seu ao dele. Agora, recostava-se em seu braço forte enquanto caminhavam. O homem era alto mesmo. Mais alto do que Carlos, ela o fitara de soslaio. Ele sorria enquanto a levava a algum lugar. Giulia apenas deixava-se levar. Onde eu tô? Tenho sede. Já estamos chegando, querida. Ele falara com a linguagem da alma. O moço, Vincenzo, está ali. Giulia sufocara um grito de pavor. Seus olhos encontraram-se e ela vira a tempestade que se aproximava, nos olhos plácidos do homem que lhe retribuía o olhar com uma serena seriedade. Seus olhos, agora, sombrios a fitavam com compaixão.

- Como sabe dessa história? - Ela o perguntara com a voz rouca, sussurrante. - Conhece meu Vincenzo? - Ele, mais uma vez, assentira vagarosamente com a cabeça onde alguns fios brancos reluziam sob a luz fluorescente da Área de Desembarque. - O senhor poderia me levar até ele? Eu...- As vozes, o vento frio em seu rosto, as gargalhadas gostosas de seus filhos, as borboletas, os ratos, a Peste. Ela perderia as forças, tombaria ao chão. Seu passado e seu presente misturavam-se. Ela não era tão forte quanto ele. Carlos era forte! Era nele em que ela se apoiava em suas crises quando a mulher devassa, desleal e apaixonada rompia os grilhões das grades da prisão e voltava aos braços dele e retornava à Escuridão somente sob seu comando. Ele conhecia os estragos que aquelas fugas causavam na alma em conflito de Giulia. Ele não queria deixá-la sozinha. Ele a protegia de si mesma. E ela agora o entendia. Acorde, moça. Venha! Temos pouco! Ele o dissera e ela o ouvira, ainda tonta, desorientada, sob os olhares curiosos daquelas pessoas sorridentes e outras que choravam pela partida de seus entes queridos. Seguiam em uma direção. Passos resolutos, convictos possuía o bom homem. Alto o homem.

- Boa sorte, menina. Lá está o seu amor. - Ela seguira a direção do indicador do homem negro e seu dedo fino e longo. Voltara-se para à esquerda e o vira, de costas. Era o último da fila. Era ele! Era ele sim! Havia muitos passando diante de seus olhos, mas...era ele sim! Meu Carlos! Abraçaria o bom homem, mas, ele, de súbito, desaparecera como se nunca houvesse estado ali, ao seu lado. Sentira somente a brisa fresca de sua presença benéfica. Obrigada. O senhor me ouve? Obrigada. Sussurrara aliviada. Quase.

- CARLOS! AQUI! - Corria enquanto berrava como louca pelo salão. O piso encerado, deslizante. A música ainda tocava, incitando-a à paixão, ao desvario, à impulsividade. Desviava-se de uns, esbarrava em outros. - Me deixa passar! Carlos! Não vai! - Acelerava o passo, enxugando os olhos ainda úmidos com o dorso da mão.

Ele a ouvira, embora ainda a procurasse com os olhos cheios de esperança e aflição. Voltara-se para trás e arquejara de espanto. Era ela! Ela estava ali por ele! De onde ela havia surgido? Como soubera de sua viagem se nem ao amigo contara? Era ela. Abanara a cabeça, embevecido. Mia Giulia!

- Não pense em me deixar aqui!

- Nunca! - Sorria como uma criança. Ela estancara a alguns metros diante dele e como ele havia previsto, ela o fitara com os olhos travessos e ele adivinhara sua intenção. Abria e fechava as mãos como se quisesse aquecê-las prestes a trabalhar os músculos na barra de exercícios. Ela ouvia a canção que vinha do alto-falante. A canção que contava partes da história dos dois. Relance do primeiro encontro. Relance do primeiro contato através das cartas. Relance do primeiro beijo seguido de carícias mais íntimas. Relance dos dias em que corriam atrás dos filhos nos pastos verdejantes e dos vinhedos onde fizeram amor sob o ameno sol da Toscana. Ele acenara para ela com as mãos que se abriam e se fechavam, num gesto discreto. Vem. Eu te seguro, amor. Não me deixa cair. Nunca. Vem matar minha saudade. VOU! Me segura no três, Carlos! NÃO ME DEIXA CAIIIIIR!

E então ela saltara como que catapultada por um trampolim, braços esticados ao longo do corpo, corpo ligeiramente curvado para trás. Ele largara a mochila, chutara a mala ao seu lado, procurando por espaço e apoiara as duas pernas semiflexionadas no chão para recebê-la em seus braços já em posição para erguê-la. E aquele sorriso patético no rosto. Ele havia voltado. Um pouso perfeito! As mãos dele fixas em sua cintura. As mãos dela, mãos de borboletas que giravam e giravam seguras pelos braços fortes dele que, sem o menor pudor, fazia suas vontades. Em meio ao salão, entulhado de passageiros, voos atrasados, chamadas que se repetiam, crianças que choravam exaustas pela espera, ela era a única a voar e a sorrir de olhos fechados, pois confiava nele que a fitava de baixo para cima, abobalhado, entusiasmado como no primeiro dia em que fizera a mesmíssima coisa na festa do amigo, quando a vira pela primeira vez. Tombaram, tontos, sobre o piso encerado, liso, duro e frio. Permaneceram deitados algum tempo e olharam um para o outro e, depois caíram a rir, um alimentando o riso do outro, alheios a tudo.

- Foi demais! - Ela exclamara, exaltada, ainda recuperando seu fôlego. Erguiam-se lentamente, olhavam-se, agora, ruborizados, envergonhados, no entanto, plenamente satisfeitos, completos. - Ainda bem que te encontrei. Vc não pode ir. - Disparou, ensandecida, equilibrando-se no antebraço dele. - Não pode me deixar. Fica comigo.

- Com vc e o Nando? - Perguntara com um sorriso amargo.

- Por que não? - Ela gemeu, desesperada. Tocava-lhe o rosto, os cabelos, os olhos faiscando, súplices. - Não posso ficar sem vc! - Gritara, impaciente. - Não vou deixar vc partir. Carlos! Sair do país sem me dizer nada!? Me largar!? Como pôde fazer isso!?

- De que adiantaria!? Nada mudaria! Vc gosta dele! Olha só! Tá aqui e ainda pensa nele. Não pensou...não cogitou em um só minuto em deixar ele e vir comigo! - Aumentara o tom de voz, inclinando-se sobre ela. Ele a via mudar as feições com a lua muda de fases. - Vc nunca me amou! Não como o ama. E talvez nem seja amor.

- É amor! Não fale besteiras! É amor. E eu também te amo!

- Chega! - Ele implorou, afastando-se de seus toques. Temia voltar aos seus braços e ser o tolo que sempre fora. - Vc precisa crescer, Giulia! Não brinca com meus sentimentos. Sou um homem. Conheço a vida. Vc não me ama. Porra! Não me ama. É um fato! - Talvez quisesse convencer a si mesmo quando gritara, chamando a atenção de todos à sua volta.

- MENTIRA! - Agarrara-se ao colarinho da blusa dele, pisando em seus pés somente para alcançar a sua boca. Ela costumava fazer isso para ficar mais alta. E ele sempre a achava encantadoramente boba a cada gesto como aquele. - Eu te amo. - Falara baixinho. - Amo. Amo vc e amo o Nando. O que eu posso fazer? Não mando no meu coração.

- Vem comigo. - Ele gemera em seu ouvido. - Larga tudo e vem comigo. A gente vai ser feliz. Te prometo. - Ele apertava suas mãos entre as suas, beijava os nós dos seus dedos. Ela o queria ali, naquele instante.

- Não posso. Não posso deixar o Nando, meus tios. São a minha vida. Vc não entende? Sem eles, eu não existo.

- Tá vendo!? Não é amor! É acomodação. Eles são sua muleta. - Decretara, afrontado. - São sua zona de conforto, querida! E isso, um dia tem fim.

- Canalha! Vá pro inferno! - Recuara como um bicho enjaulado para, logo em seguida, girar nos calcanhares e avançar sobre ele com os olhos alucinados. - Vc tá certo. Tá sim. Mas, eu te amo. Não me deixa, por favor. Por Deus. As Sombras vão retornar...- Sua voz embargada, seus olhos cheios de lágrimas, seu queixo trêmulo. Suas bocas tão próximas, seu hálito quente, suas mãos em sua cintura. As mãos dela em volta de seu pescoço. O ardor que os consumia, um beijo apaixonado, demorado que terminara aos poucos, com os lábios que se separavam, lentos, quentes, sôfregos. - Fica comigo...- Ela lhe implorou antes de ouvir o som de palmas logo atrás de si. Palmas vagarosas e fortes. Bem cadenciadas. Dava para contar de um a cinco entre uma palma e outra. Giulia afastara-se dele instintivamente quando vira o olhar espantado, os olhos culposos de Carlos. Ela não via a origem das palmas até que voltara o corpo para trás com a destreza de uma bailarina, quase num rodopio.

- Ora, ora, ora, se não é minha boa e velha amiga, Giulinha?

- Camila, eu não sabia...- Apressara-se em dizer, sentindo o sarcasmo escorrendo entre as palavras da amiga. - Se soubesse, jamais viria atrás..

- Novamente? - Camila completara a frase e havia um sorriso pairando em seu rosto com traços finos, elegantes e imponentes. - Vc o procura sempre, não é meu bem? Ele é praticamente seu estepe.

- Camila, modere o tom. - Ele a repreendera com aqueles olhos incisivos e quase cruéis. Giulia abanara a cabeça numa negativa. Concordara com a atitude revoltada da amiga. Afastava-se do casal, recuando de costas, evitando, a custo, derramar as lágrimas que subiam por sua garganta. Sua voz embargara. Suas feições se contraíram. Era tarde demais. Deixe que ela seja feliz. Ela pensara com sensatez. Ele precisa de alguém que ame somente a ele. Recuara mais dois passos, vendo-os cada vez mais distantes. - Espera, Giulia. - Ele seguira em sua direção.

- Fique onde está! Não se aproxima! Seja feliz, Carlos. Camila. - voltara os olhos apreensivos à amiga. - Perdão. Perdão por tudo. E vc, Carlos.- Voltara a encará-lo e então vira a mágoa em seus olhos. Ela o abandonaria novamente. Ela o abandonara em outra vida. Ela o fizera sofrer em outra vida e agora, sequer lutaria por seu amor. Poderia seguir com ele. Ele a queria. Camila não lhe importava. Vem comigo. Ainda há tempo. Não posso. Isso é cruel. Vc não é isso. É melhor do que eu.

- Com licença. - Camila pigarreara enquanto se colocava entre os dois. Seus olhos nervosos e piscantes ora fitavam Giulia ora fitavam Carlos. Mordiscava o canto da boca e Giulia reconhecera aquele velho hábito. Ela estava tremendamente abalada, mas jamais o confessaria. - Vcs pretendem demorar muito nesse papinho transcendental? Porque, pra mim, já deu. Vc vem comigo ou fica com ela...meu bem? - Ela o fitara somente uma vez por segundos e os deixara a sós. Assim era Camila. Prática, fria, segura. Ao menos, era o que tentava passar aos outros, lá no fundo, era uma criança amedrontada, repudiada pela própria família e que se agarrava a um homem que se satisfazia em fazê-la sofrer. Ela o amava. Um amor possessivo, doentio, submisso. Mas, o amava. Faria de tudo por ele. De tudo. - Te espero na fila, meu bem. - Salpicara uma bitoca no lado esquerdo do rosto contraído dele. - Ci vediamo presto, Giulia. - Despedia-se da amiga com os olhos cheios d'água. - "Não precisava ser assim."

***

- Adeus. - Sua voz fria, distante. Seus olhos negros, inexpressivos. - Dê um abraço no Fernando e em seus tios por mim. Jamais me esquecerei deles. - Ela jurava ter visto seus olhos marejarem.

- Até um dia. - Ele a vira desabar diante de seus olhos úmidos e sequer pudera abracá-la como era de sua vontade. Ela fugira, sem rumo, sem dinheiro, sem memória, sem paz ou amor. Ouvira sua voz pela última vez quando imobilizara-se diante de algum portão que daria em algum lugar. Ti amo per sempre. Eu também, meu amor. Ela o respondera, telepaticamente, pela última vez. Sono tua, Vincenzo. Per sempre.

***

Permanecera ali até que os últimos passageiros deixassem o aeroporto e os tripulantes e funcionários seguissem com suas vidas e suas próprias tragédias. Deitara-se sobre um banco retangular azul. Estava com frio, fome, sede, dor e uma imensa vontade de dormir para sempre. Não havia se alimentado ou parado para descansar o dia inteiro. Esquecia-se de quem era. O que estaria fazendo ali? Quem seria aquele vulto que caminhava lentamente em sua direção? Que jeito de andar cativante. Pensara, enternecida. Mas estava tão fraca. Que luz que ele emanava! Tô com tanta fome. Quero ir pra casa, mãe. Onde estão meus pais? Onde eu moro? Mãe, vem me buscar. Mãe, mãezinha. Chorava como criança com a cabeça sobre os braços cruzados, cabelos que cobriam-lhe o pescoço e as costas, encolhida como um feto. Uma mão estendida em sua direção e apenas o silêncio. Relance do tênis de marca. Sua visão apurava-se à medida em que, lentamente, erguia a cabeça dolorida. A calça jeans que realçavam-lhe as coxas grossas e delineadas por músculos, o tórax que se exibia sob a camisa de malha branca, a correntinha de ouro com pingente de coração que se abria ao meio, e os olhos preocupados e fundamentalmente magoados. Olhos da cor do céu. Ela pensara, sem forças para se levantar do banco.

- Seus olhos são liiindos...

- Vem. - Sua voz era firme, mas, por mais que tentasse, jamais seria severa. Ele a sustentara em seus braços e a levara consigo. Ela se apoiara nele, enlaçando-o pelo pescoço. Era madrugada. Fria e escura, sem estrelas. Ela aspirava a loção pós-barba dele e a paz voltara a si. Queria pedir perdão, mas acabara por dormir em seus braços. Ele a deitara no banco traseiro do carro e ainda sorrira quando a vira se encolher como uma criança. Otário. Pensara de si próprio. Desde quando vc se tornou isso. Cadê o garanhão? O pegador? Ela te respeitava mais quando levava um chifre! Porra de mulher diaba! Ajeitara o retrovisor e antes de levar a chave à ignição, ouvira a resposta ao seus pensamentos.

- É meu. - Ela murmurara, deitada lá atrás. - Vc é meu. Eu sou sua. Agora, já não estou dividida. Sou uma só. Um coração por inteiro. - Sua voz era fraca, porém, determinada. - Perdão, amor. Sempre foi vc e sempre será. - Bocejara, sonolenta. - Meu pequeno Antoine...

Dormira em paz.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 15/09/2019
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