'NÃO QUERO DORMIR' - do livro "Giulia-Quando a Luz se apaga"

Abrira os olhos num repente. E aquilo estava se tornando um hábito. Um hábito desgastante aquele despertar assustado, exasperado como se algo o empurrasse de volta ao mundo dos vivos com força e brutalidade. Um despertar que o enfraquecia. Agora, ao som das gotas de uma chuva suave que caía sobre o alpendre da varanda daquele quarto, deitado, mãos unidas atrás da cabeça, examinava repetidamente os nós da madeira do dossel da cama que comprara no dia do vigésimo quinto aniversário de casamento. E como ela ainda era bonita, garbosa, elegante a tal cama. De cima de suas cabeças, pendia, preso por argolas douradas, um véu branco, finíssimo, sempre limpo e cheirando à lavanda. Ela amava aquele cheirinho de lavanda desde que se conheceram. E como não gostar? Remetia-o a um mundo onde fadas pequeninas e brilhantes e inquietas reinavam pacificamente e onde nada de ruim poderia acontecer. Nenhuma doença poderia existir. Ninguém no reino das fadas com aroma de lavanda poderia vir a se esquecer de algo ou de alguém. Na verdade, naquele reino, era estritamente proibido pronunciar ou sequer lembrar-se da palavra "ESQUECER". Ele sorria, de olhos fitos no véu acima de suas cabeças. Seu corpo relaxado, estendido sobre o colchão macio, encostava-se ao dela e ele sorria ao teto por isso. Estar ao seu lado há tanto tempo e ainda sentir por ela aquele amor...aquela paixão! De certo que não era uma paixão avassaladora como nos tempos de juventude. Era algo muito mais sólido, conquanto brando e calmo e morno como as chamas de uma fogueira. Chamas que ardiam preguiçosamente. Não eram como labaredas que consumiam as achas crepitantes. Eram chamas que aqueciam. Isso. Chamas amenas que os aqueciam. Um calor gostoso de se sentir. Um calor seguro e profundo que os mantinha vivos e unidos a cada instante de companheirismo, lealdade, amizade, confidências e beijos...muitos beijos. Olhe só! Eles ainda se beijavam na boca após quarenta longos anos de convívio. Esse era um fato deveras intrigante. Eles ainda uniam seus lábios com fervor, embora suas línguas já não fossem tão afoitas como nos primeiros anos. Não por minha causa, pensara ele, rosto esfogueado, enquanto ria baixinho para não acordá-la. Ela estava ali, ao seu lado, sob os lençóis de algodão com a mesma fragrância do mundo das fadas. Ela era uma fada. É isso. Como não havia pensado nisso antes? Casei-me como uma fada e só agora me dou conta disso! Que bobalhão! Sim. Um bobalhão sortudo sou eu. Olhara pela janela aberta bem à sua frente. Vira o vento que soprava para o norte (ou seria para o sul?) as gotas da chuva sob a luz alaranjada do poste. Pensara que deveria ocorrer o mesmo com a neve. Ah! Como ele desejara ver a neve e senti-la em seu rosto desde tenra idade. Aquelas pequeninas partículas de gelo com desenhos microscópicos espetaculares! Ele as via, agora em sua mente febril. As mãos unidas em torno de uma grande bola de neve, afofada e arredondada com esmero e vruuum! Um daqueles fortes e longínquos arremessos, dignos de um lançador de baseball em final de campeonato. Deleitava-se ao imaginar o filho com o rosto branco, perplexo e Giulia logo ao seu lado, apontando para Nando, curvando-se de tanto rir, caindo de joelhos sobre a neve fofaj, rolando, com seu corpinho ainda magro e indefinido, de um lado para o outro, de tanta felicidade. - "Panaca! Vc é um panaca!", ele a ouvia com perfeição em sua imaginação. Amava os filhos. Filhos sim! Nando é biológico e Giulia...Bem, Giulia abrigara-se em seu coração, cavando com suas próprias mãozinhas, um caminho até lá e de lá nunca mais saíra.

A neve! Planejara a viagem dos sonhos! Durante anos de trabalho, planejara e reservara, todos os meses, uma certa quantia que se multiplicara graças à astúcia e aos conhecimentos do filho, seu grande orgulho. Ai, que menino inteligente. Que menino bom para lidar com dinheiro esse meu filho! Estava tudo certo. Passagens compradas, hotel reservado. Roteiro de viagem analisado e reavaliado pelo filho. Definitivamente Nova York seria o destino do casal que comemoraria as Bodas de Rubi (ou Esmeralda. E por que havia duas pedras para essa data comemorativa?). Enfim, comemorariam as bodas no Rockefeller Center, na famosa pista de gelo, cercados pelas luzes brancas, piscantes ao som de "My Way" do velho Sinatra. Hummm...acho que não. Sinatra não. Muito nostálgico, triste. Ela vai chorar. É. Revirava os olhos úmidos. - "Acho que eu também." - Concluíra mentalmente, de olhos semicerrados. Qual a melhor música? Deixe-me pensar..- Levava a mão ao queixo e seus olhos reluziam. Forçava-se a se lembrar da canção que costumavam dançar enquanto jovens, nas festas da faculdade. A predileta de sua deusa dos cabelos da cor do trigo. Nossa! Abrira os olhos, virados à esquerda. - Claro! Como pude me esquecer!? "Dancing Queen"! Ela adora aquela banda o...o...ah...é...o...Isso! ABBA! Isso, amor. Patinaremos ao som de "Dancing Queen". Hesitara um tanto ansioso. Ouvira sua amada resmungar. Ele estava se remexendo como uma minhoca fora da terra, puxando para si o lençol que também a cobria. - "Dancing Queen" - Sussurrara como a invocar algum ser sobrenatural. Retorcia o nariz e um canto da boca. Humm... um pouco rápida demais, considerando que não sabemos patinar. Dava de ombros. A gente aprende quando estivermos sobre a pista de gelo e as luzes e a neve! A NEVE! - Erguia os braços como se estivesse no topo de uma montanha-russa, segundos antes da queda vertiginosa. Tão deliciosamente tolo. Inclinava seu tronco, braços erguidos, de um lado para o outro, imaginando-se sobre o gelo, ao lado dela, cabelos esvoaçantes, o vento frio e cortante em seus rostos avermelhados, praticamente torrados e sorridentes. - "New York, New York! I wanna wake up in a city that doesn't sleep.". Cantarolava, dando pequenos solavancos nas costas de Celeste, ainda sonolenta, sorrindo para o travesseiro fofo e branquíssimo. Tudo era tão limpo naquele quarto. Tudo voltara a ser limpo após o retorno de Enzo do mundo dos Esquecidos. Ahhh...que maravilha ele ter retornado. Fique tranquila, meu amor. Não volto mais pra lá. Afirmara com os olhos apreensivos. Estava tão escuro aquele quarto. Como poderia prometer algo sobre o qual não possuía controle? Enzo, querido. Não faça promessas que não poderão ser cumpridas. Ele ouvira um sussurro vindo do canto esquerdo do quarto. Os pelos de seus braços arrepiaram-se de imediato. Dera de ombros, mais uma vez. Tão querido e tão impotente diante daquela maldita doença.

- Preciso cuidar dessas janelas! - Exclamara, agora socando o travesseiro a fim de ajeitar-se sobre ele. Estava perplexo com seu próprio desleixo. Fixava os olhos nas janelas de madeira em estilo colonial que haviam perdido o brilho do verniz. Estão foscas. Ele constatara, intrigado, como se cuidar das janelas e de todos os aposentos da casa não fosse tarefa que coubesse somente a ele desde sempre. Esquecera-se de passar uma camada de verniz na madeira das janelas e portas. Absurdo. Sempre tão organizado, metódico, com aquelas mãos grandes e hábeis. Mãos de marceneiro que a enchiam de orgulho. - "Não há nada que vc não saiba fazer, meu bem!", Celeste gritava cá embaixo, enquanto ele acenava a ela com uma das mãos livre e a outra cravada no cabo de um martelo, do alto de uma escada, pregos no canto da boca, e aqueles olhos brilhantes, bochechas rosadas sob a luz do sol, em um céu azulzinho de uma manhã de sábado. Era ele quem consertava o que havia quebrado, queimado, torcido, rompido, explodido dentro e fora daquela casa. Era ele quem rolava no chão com as crianças, mesmo que estivesse exausto por mais um dia de trabalho. Elas eram arremessadas sobre eles por mãos invisíveis, como que atraídas por um potente ímã escondido entre o esterno e a camisa social, um tanto esgarçada. Época das vacas magras. Uma época feliz aquela. Ela pressentia sua chegada e apressava-se em chamar Fernando, pois Giulia aguardava-o, saltitante, já no portão. Aquela menina tinha antenas no lugar dos ouvidos. Parecia sentir o cheiro do tio querido à léguas de distância. E Nando, retardatário, nutria por ela uma raiva capaz de reduzi-la a pó, caso ele não a temesse. Temia aqueles olhos que se voltavam para ele, ameaçadores como a lhe dizer "Quem vc pensa que é, queridinho? Fique onde está e eu o deixarei beijá-lo. Depois de mim, é claro." E ela ainda não contava nove anos de idade! Era um primor de menina. E ele, aos treze, odiava-se por se deixar intimidar por uma pirralha.

Era Enzo que a beijava com gosto de café assim Celeste abria aqueles olhos meigos, ternos e sorria, abanando a cabeça numa reprovação repleta de satisfação, pois lá estava aquela bandeja de prata sobre o colchão a esperar por ela com sua xícara de café amargo, cinco gotas de adoçante e duas bolachas Cream Cracker. E isso é comida de gente!? Vc precisa comer pão, Celeste. E ele empunhava o pão como quem erguia o Santo Graal, olhos arrebatados e um tanto dramáticos. Ela o admirava. Amava aquele jeito dele de tornar um ato tão insignificante em uma obra de Shakespeare. Ninguém vive de bolachas! Vc já ouviu dizer que a primeira refeição do dia deve ser a mais completa?? Ouviu?? Vc ouviu, meu bem?? Ora bolas! Não me venha com estas revistas de mulheres, amor! Elas não sabem de nada. São revistas para mulheres escritas por mulheres que pensam como mulheres. Pergunte a um homem se ele se preocupa com celulites ou uma gordurinha aqui ou acolá! Patavinas! Inclinava-se perigosamente sobre ela, olhos de gude, lascivos e inocentes. Como pode!? Um olhar lascivo ser ao mesmo tempo inocente? Pois os dele eram assim mesmo. - "Seu corpo é perfeito!" - Dizia ele, num sussurro quase erótico. Ele adorava aquele rubor nas bochechas dela e aquele sorriso maliciosamente inocente somente dela, guardado somente para ele. - "Tome um café da manhã como um rei. Almoce como um príncipe e jante como um mendigo". - Então ele a contemplava a deslizar, delicadamente, a faca de prata com filetes de manteiga no biscoito e abocanhá-lo com a leveza dos anjos. Deus...deve ser assim que os anjos comem, pensava ele, todas as vezes em que a via se alimentar.

Celeste era um encanto. De uma docilidade a toda prova. Céus e Terra poderiam ruir aos seus pés sem que ela se abalasse durante as refeições onde fitava o prato sobre a mesa, parecendo conversar com cada grão de feijão ou folha de alface, para, logo em seguida, lançar a ele e às crianças, aquele sorriso que possuía o dom de iluminar os cômodos da casa, do jardim e avançar à calçada, irradiando-se ladeira abaixo.

- Não consegue dormir? - Ele ouvia aquela voz suave e levemente arrastada e um tanto incomodada.

- Eu te acordei, meu bem? - Debruçava-se sobre ela e se acaso não a houvesse acordado antes, agora ele a despertara de vez. Melhor assim. Olhe para mim, meu raio de sol. Ah, Celeste! Como vc consegue manter essa beleza dos tempos de...

- Seu bobo! - Ela virara o corpo para ele e agora, ambos entreolhavam-se, corpos estendidos e colados sob as cobertas, rostos sobre os travesseiros, tão próximos que um poderia ouvir o pensamento do outro. Bem. Na verdade, somente ela o ouvia. Ele a adivinhava e quase sempre, acertava em cheio. O amor entre almas gêmeas tem esse poder. Dizem que até as feições dos casais que se amam verdadeiramente e convivem durante anos a fio se igualam, com o tempo. Ao final, parecem irmãos de tão idênticos. De onde Celeste tirara essa conclusão? - Esta agitação toooda é por causa da festa? - Perguntara com um brilho especial nos olhos que reluziam sob a luz tênue que vazava pela abertura da janela fosca. Ai, preciso dar uma demão de verniz nas janelas da casa. Pensara ele, com os olhos que iam da janela até Celeste, voltavam às janelas para, finalmente, pousarem, plácidos, sobre o rosto dela. - Não precisa, bobinho.

- O quê?

- As janelas estão perfeitas. Gastar tempo e dinheiro com isso. Ora, vamos! - "Lá vem ela com esta mania de ler pensamentos. Ai, Senhor. Obrigado por eu ter sido sempre fiel a ela." - Ainda bem! - Exclamara, exaltada, erguendo uma das sobrancelhas, olhos fitos sobre ele. - Ai de vc se não tivesse sido, meu bem! Além do mais, precisamos guardar nossas energias para a festa. A festa é o que nos interessa agora, meu amor! Nossa festa! - Batia palmas, eletrizada. - Nossa festa de bodas de Esmeralda! - "Não era de Rubi?" - Esmeralda! Da cor de seus olhos!

- São azuis...meus olhos.

- NÃO IMPORTA! - Dissera-o num rompante, ainda sonolenta. - Azul, verde, vermelho! Amo todas as cores. - Sua voz abrandava-se, erguendo o tronco apoiado pelo braço esticado, mão sobre o colchão. Sua camisola de seda em um tom pastel lhe caía muito bem. Seu corpo ainda permanecia esguio e seu braço era tão delicado que mais parecia um biscuit. - Ai, meu bem! Essa festa vai ser um estouro! Dera uma ligeira balançada de cabeça e seus cabelos curtos e sedosos agitavam-se, emoldurando aquele rosto maduro, com pouquíssimas rugas. Rugas que lhe conferiam um toque a mais de graça e sabedoria. - Está tudo sob controle, querido! - Sorria, enlevada. Ele apoiava a cabeça sobre o cotovelo, ajeitando-se de modo a apreciar a visão de sua deusa diáfana com as mãos finas que se moviam para lá e para cá a cada frase dita sobre os detalhes da festa. Ah! Que orgulho de Fernando! - Ele organizou tudo. Tudo mesmo...- Uma vaga tristeza perpassara por seus olhos fitos no teto. Lembrava-se agora da noite em que seu filho fora atingido pelos golpes do demônio que haveria de prestar-lhe contas, cedo ou tarde. - E te digo mais! Fez tudo sozinho, o pobrezinho. - Parecia ter murchado, por instantes.

- Sozinho!? - Erguera uma sobrancelha questionadora enquanto retirava com a ponta do indicador uma mecha atrevida dos olhos de Afrodite. Não me pergunte, Enzo. Não se atreva a perm. Não me pergunta. Vc se lembra. Vc estava lá! Não me pergunte, Enzo! VC PERGUNTOU!! - E a Giulia? VC PERGUNTOU!! - Ai! Celeste sentira uma pontada em seu coração. Esbofetearia aquele rosto arredondado à sua frente se não estivesse tão lerda. - Ela sempre o ajudou a organizar nossas festas. - Dissera-o com um olhar confuso e aquela voz desanimada. - Onde ela estava, Jesus? Por que não fizeram juntos? - Ele estava totalmente desorientado.

- Ela estava doente. Doentíssima. Gripe. Isso. Uma gripe fortíssima. Violenta. - Sua voz saíra seca, áspera. Seu corpo se retesara. Apressara-se em responder e mudar de assunto. Não aguentaria...não suportaria a ideia de que o mal estaria retornando.

- Gripe!? Ela nunca foi disso! - Ele insistira, absolutamente alheio a...a alguma coisa que acabava de se esquecer.

- Enzo! - Gritara. Por pouco, ele não respondera: "Presente!" - Preste a atenção! Fernando quer saber quais as músicas de sua preferência! - Ele a conhecia. Aquelas narinas infladas, o olhar levemente contrariado, o queixo que o afrontava. O que eu fiz? Celeste não tá bem. Pensara, num desconsolo. Precisamos ir ao médico. - Diga! - Exclamara ela, impaciente. - Diga logo, homem! - Apiedava-se dele que, afinal, estava isento de culpa. Amava-o tanto...tanto! Finja que ele não falou nada. Finja que não o ouviu. Está me ouvindo? Ignore-o, meu bem. Ele está bem. Nunca esteve melhor. - Enzo! - Estalava os dedos acima de sua cabeça.

- Já sou adestrado, amor. - Ele respondera com uma suave repreensão em sua voz mansa. Sorria, tão entregue, tão puro e indefeso. - Alguma coisa te incomoda? - Pousara as mãos em seu rosto. - Nunca tivemos segredo, lembra? - Ela jogara seu corpo contra o colchão, afundando a cabeça no travesseiro. Estava exausta. Enzo a enlaçara por trás, puxando-a pela cintura, para junto de si. Seus corpos se aconchegavam-se. Aquele truque sempre funcionava. Ela sempre cedia aqueles gracejos e beijinhos em seu pescoço e aquelas frases picantes e absolutamente fora de propósito! Hummm...ela as adorava! - Cuidado para não acordar o tigre. - Ele a ameaçava, murmurando sedutoramente. Ele ouvia sua sonora gargalhada ecoar por entre as paredes, enrubescida, cabelos em desalinho. Estavam tão próximos que mais pareciam um só corpo. Celeste agarrara suas mãos entre as dele de modo que ela as visse diante de seu rosto. Apertara seus dedos até que ele gemesse de dor e ela, então, soltara um risinho travesso. - Seu coração, amor? Tem tomado os remédios? - Ele perguntara com extremos de ternura. Ela beijava-lhe os nós das mãos que, após o beijo, permaneceram grudadas em seu peito. Sentia o hálito dele em seu pescoço e a vida lhe sorria. Sentira o pulsar daquele peito que se movimentava num ritmo cadenciado, calmo, enquanto o dela voltara a se precipitar. Como pode ser tão bom comigo? Enzo, meu amor. Sua doença é tão terrível e vc ainda se preocupa comigo. É por isso que te amo e sempre vou te amar. - Por que não responde? - Ela arquejara de temor e logo tratara de mudar de assunto.

- Nat King Cole, Frank Sinatra, Roberto Carlos...- Contava-os nos dedos de uma mão, enquanto a outra não o largava em hipótese alguma.

- Não se esqueça de Glenn Miller! - Então ele a assustara, num impulso de jovialidade. Desfizeram o elo. Ele logo saltara da cama, animadíssimo, pés no tapete felpudo, pondo-se a dançar uma música inaudível. Em sua mente, ouvia a orquestra e seus trompetes com seus graves e agudos, com extrema nitidez. Cerrava os olhos e remexia os ombros desajeitados que se alinhavam aos quadris desengonçados, enquanto Celeste, lá da cama, levava a mão à boca, sufocando um suspiro, enxugando uma lágrima. Trajava seu pijama de listras verticais em branco e azul claro. - "Quase um presidiário", viera-lhe à memória o dia em que ele comprara aquele pijama. Meu bem! O sonho de um homem nunca deve ser desprezado. Ele dissera a ela, num tom solene, ainda no início do casamento, quando as vacas eram magérrimas. O meu sempre foi o de ter um desses pijamas. São tão leves e tão quentinhos. Abria os braços ao estilo 'Gene Kelly' e girava nos calcanhares, ainda jovem, cabelos negros, lisos cujas mechas lhe caíam sobre os olhos de um azul enigmático e um sorriso que, por mais que tentasse ostentar aquele ar fatal de Clark Gable, expressavam a mais pura inocência e ternura. Ela realmente o amava. Ai, como ela o amava. E, agora, lá estavam aqueles olhos salientes sobre os dela. - Moonlight Serenade. - Piscava-lhe demoradamente com a voz de tenor. - E...depois...- Uma pausa dramática. - "Cuando calienta el sol".

- Trini Lopez, meu beeem! - Seus olhos abriram-se desmesuradamente. - Hummm...vc não vale naada! - Os olhos que giravam em suas órbitas, as faces acerejadas, um sorriso matreiro. - Vc sabe o que isso significa para mim. Vc sabe! - Declarara com a voz abafada pelo lençol. Escondia-se dele debaixo dos lençóis, envergonhada...diria, entusiasmada. - Seu devasso...- Ela o ouvia a ronronar como um gato selvagem ao seu ouvido. Estava mais para um tigre. Um tigre velho, lento, um tanto cansado, mas, ainda assim, um tigre. - Teach me tiger! I would kiss you...wa wa wa waaah. - Ela cantava baixinho, insinuando-se. Sou Marilyn Monroe em sua versão caquética, pensara, abafando uma risada com as mãos sobre a boca. Ele apalpava suas coxas sobre as cobertas, numa subida vagarosa e gentil, como ele sempre o fora. Gentil até demais. Ai, Enzo. Acho que deveríamos ser um pouco mais agressivos, como diria Giulia. Ai, aquela menina tem um fogo! Cruzes! Fernando precisa se casar logo! - ENZO! Não se atreva, seu pequeno bastardo! - Dera um gritinho eufórico. Ela sentira suas mãos tão fortes e tão perspicazes. Seu tigrão está aqui, de volta, com tudo, meu bem! Carpe Diem! Carpe Omnium!

- Roaaarr! - Ele rugira, ardorosamente. Risos e mais risos debaixo dos lençóis que pareciam flutuar sobre seus corpos. Brincavam de se amar. Amavam-se, numa grande brincadeira. - "Aproveitem o dia". - Uma voz sussurrava aos amantes. - "Aproveitem enquanto há tempo".

A chuva lá fora parecia querer invadir o quarto através das janelas escancaradas e foscas e abençoar aquela união duradoura e feliz. Poderia durar mais quarenta anos, não é mesmo? Poderia. Sim...poderia. Mas, nem tudo é perfeito.

***

- Preciso te pedir uma coisa. - Ele falara com o olhar apreensivo, apavorado mesmo. A voz era muito baixa, quase um sussurro. Fora o bastante para que o pobre coração de Celeste voltasse a falsear. O que ele teria para dizer de tão terrível após o amor que fizeram e que a preenchera de felicidade?

- Não-vou-ou-vir. - Replicara, tampando os ouvidos e cerrando os olhos numa atitude infantil. Dera as costas para ele. Antes mesmo dele falar, ela ouvira seus pensamentos sombrios. Diabos, Enzo! Por que estragar este momento único, maravilhoso!? Por quê? - La, la, la, la, la, la, laaaaá - Ensaiava uma ária atingindo seu "dó" mais agudo. Quase perfeito!

O que o horror não é capaz de fazer, não é mesmo?

- Me ouça. - Ele implorava, murmurando como se as paredes não pudessem ouvir o que tinha a lhe dizer. - E por favor, pare de cantar! Vai acordar as crianças. - Ainda mantinha a voz grave, baixa e sombria. Sua boca próxima demais do ouvido dela. - Pois bem, continue então. Vou te pedir assim mesmo. - Ele o dissera, antes, porém, apertara o cadarço de seu pijama de listras verticais. O velho garotão continua a dar no couro. Orgulhava-se de ainda ser um homem para a mocinha com a margarida nos cabelos da cor do sol. Recompunha-se, deslizando o corpo em sua direção. - É importante, Celeste. - Choramingou, encostando seu peito às costas dela. - Me ouça.

- Não se atreva, Enzo.- Ela o empurrava com o traseiro para longe de si. - Uuuii - Embora ansiasse por seu abraço forte, acolhedor que a protegeria de todo o mal. Mas, o mal viria da boca do homem que a fizera ver estrelas havia pouco. - Não encosta em mim. - Sua voz era frágil, lamuriosa. Ela mergulhara em um profundo silêncio. Irritava-se. Não encontrava posição que lhe conferisse conforto naquela cama envolta pelo véu e pelo aroma de lavanda. Erguera o corpo, recostando-se à cabeceira, abraçando os joelhos. Parecia uma menininha ressentida. Olhar fixo no Crucificado preso à parede. Estava escuro e gelado o quarto e o único facho de luz partia do antiquíssimo poste. Uma luz tremeluzente que lembravam velas bruxuleantes, prestes a serem consumidas pelo fogo...para sempre. Entretanto, ela ainda assim o encarava. Ela sabia que o Cristo estaria ali, logo ali, à sua frente, braços abertos, olhos sofridos, observando-os, imobilizado. Em seus olhos havia um misto de desespero e ameaça. Uma raiva velada pelo filho do Criador. - "Tome-o de mim e eu irei com ele."

- Amor, não quero voltar pra lá. - Ahh...não. Era exatamente nisso que ela estava pensando. Ele tocara naquele assunto. O assunto intocável. Juraram não tocar mais naquele assunto e ele voltara a tocar naquele maldito assunto! Enzo, seu tolo. Ele a ouvira soluçar ao seu lado e, agora, a envolvia em seus braços como o pai abraça a uma criança assustada. - Ouça-me então, meu amor. Não fale nada. - A voz dele deixara de expressar a alegria anterior. Aquela leveza de sempre. As palavras saíam pesadas de seus lábios tensos. Seus olhos já não sorriam. Eram dois grandes vales tempestuosos, desesperançados. - Quero que me prometa...

- NÃAAOO...- Um apelo cheio de dor. Um gemido longo e dolorido e ela tombava a cabeça sobre o ombro dele. Seus braços agarravam-no pela cintura como a impedi-lo de fugir dali. Não vai. Não vai sair. Nunca. Vc é meu! Só meu. - Não fala mais. Eu te imploro. - Ele chegara a sorrir quando sentira a umidade em seu peito. As lágrimas dela umedeciam seu pijama de listras verticais: a realização do primeiro de muitos sonhos.

- Não vou voltar pra lá. Não vou dormir novamente. Não quero. Não é justo. Quero viver e não vegetar. Vc precisa fazer o que me prometeu. - Havia medo naquela voz. Ela não ousou erguer os olhos e encarar os dele. Ele não era homem de temores. Seu homem era forte, alegre, radiante, destemido. Não vou te olhar e isso não está acontecendo. É tudo um sonho, não é? Sim. É. Volte a dormir. É tudo um sonho. Ele está sonhando, querida. Tão tolinho. Durma, meu bem. Durma. E ele? - Celeste, fale comigo. Preciso de sua ajuda. Sem vc, não vou conseguir. - Sua voz agora exprimia o medo da solidão, da Escuridão que parecia observá-lo de algum canto obscuro daquele quarto.

- Enzo, meu amor. - Sua voz era tão melíflua. Quase uma canção. Ela lhe falava, de olhos cravados no Crucificado. Agora, ela O afrontava. - "Faça alguma coisa por ele. Há tantos homens maus por aí. Leve-os e deixe meu Enzo aqui, comigo. Diga isso ao Seu Pai, o Criador. Enzo é meu".

- Celeste...- Ele a comprimia entre seus braços ainda fortes. Ela se curvava, moldando-se ao seu corpo. Juntos, enrodilhados, formavam um semi-círculo perfeito, paralisados pelo horror. Suas pernas entrelaçadas, o rosto dele pousado sobre o dela, as mãos unidas com tanta força! Onde fora parar a euforia de momentos atrás? E o tigre? E Marylin 'Sedutora' Monroe? Todos haviam fugido do grande monstro de barbas brancas que se arrastavam pelo chão como grilhões que rangia sobre o assoalho. O velho 'Alzheimer' aguardava uma brecha, lá fora, sob a chuva, junto ao portão com ponteiros dourados. Ele queria voltar e tomar o que lhe pertencia. - Celeste, cumpra sua palavra...

- Sim...amor. Cumprirei. - Ele não a vira. Não percebera uma expressão de insanidade naquele rosto angelical. - Durma, por favor. - Diga a ele para dormir. É um sonho. Diga a ele que é um sonho. Vamos! Eu direi. Agora durma. Durma e sonhe com a festa, os doces, as danças, as luzes piscantes, seus filhos juntos e felizes, uma vida longa, a velhice ao lado dele. Isso! Velhinhos em nossa varanda, olhando a chuva cair! Isso. Sim. Durma e sonhe com isso, minha linda. Mas, depois...É. É. Eu sei. Depois. Depois da festa a gente pensa nisso. Sim, meu bem. Veja. É só tocar nele e ele ...pluft...dormiu. Ahh...vc é tão...tão...vc é homem ou mulher?Eu sou um sonho, Celeste. Durma. Durma com os anjos.

Três, dois, um...pluft!

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 20/09/2019
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