'MORNIE UTÚLIË - do livro "Giulia - Quando a Luz se apaga"

Ela o observava a dormir ao seu lado, na cama de casal no quarto que ainda era o dele. Revira os momentos em que se deitara ali, sobre o mesmo colchão, sozinha, angustiada, esperando por seu retorno da faculdade em outro estado. Uma época em que ele sequer a olhava como uma menina. Para ele, eram grandes amigos e parceiros de futebol na quadra de esportes daquele bairro. Era tão insensível Fernando que chegara a confidenciar seus desejos sexuais a ela! Desejos por uma tal de Isabella com seios fartos e uma boca carnuda. É! Fora esta a expressão que a deixara petrificada. "Boca carnuda". Eu não tinha peitões, não é?, pensara, cruzando as pernas ao longo da cama, pés agitadíssimos. Não era gente pra vc. E como o mundo gira, meu bem. Graças a Deus! Elevava os olhos ao teto à procura do Crucificado e nada encontrara além de posters envelhecidos de seus cantores prediletos tão envelhecidos (ou mortos) quanto os próprios posters. Os ídolos dele eram os seus também. Aprendera a gostar de Hard Rock graças a ele e suas reuniões secretas onde rolava AC/DC, Led Zeppelin, Scorpions e Gun's Roses (E ela amava "Don't Cry" do Gun's Roses), Queen, dentre outros. As festas em seu quarto, entre amigos e amigas e sempre que ela, suplicante ao pé da porta, tentava convencê-lo de que já não seria mais criança e que poderia conversar como um deles de igual para igual, ouvia sua estridente e sarcástica gargalhada e o baque seco da porta de madeira envernizada ecoando em seus ouvidos. Quem diria, meu bem. Recostara-se à cabeceira da cama, abraçada aos joelhos, olhos triunfantes. Estou aqui dentro! Dentro do mesmo quarto de onde vc me expulsou por tantas vezes, palerma. Acariciava seus cabelos em desalinho e ouvia seu murmúrio pedindo por mais alguns minutos de descanso. Hoje, esse quarto é meu também. Percebeu que estamos vivendo uma vida de casados, amor? Perguntara em voz tão baixa que foi como um suspiro. Estava radiante de felicidade e aquilo lhe causava tanto medo. Examinava cada parte daquele corpo nu, ali, encolhido sobre as cobertas, suas costas viradas para ela, seu jeitinho de se enroscar ao travesseiro, apertando-o contra o abdômen. Agarre-me, homem. Deixe que eu seja seu travesseirinho de bebê. Dera uma súbita risada, mais alta do que pretendia, abafando-a com as mãos à boca, excitada em ver aquele corpo começar a despertar. Ai, ele se virou pra cá. Ahhh...não faça isso, baby! Pelos deuses...não posso. Não devo. Se acalma, mulher. Vc é um ser humano ou uma gata no cio? Sinceramente, não soubera responder. Não diante daquele pau ereto involuntariamente, pedindo para ser abocanhado e sugado até voltar a descansar. Ela ria baixinho de seus pensamentos devassos. Como eu cheguei a este ponto??? Profana! Já estudei sobre isso, falava tão baixo que parecia estar rezando. As ereções involuntárias ocorrem entre quatro a cinco vezes durante a noite e o pênis pode ficar ereto por até uma hora. Quatro a cinco ereções por uma hora??? Imaginem só??? Cinco horas de puro deleite e ele nem precisa acordar. Descanse, meu benzinho! Descanse que eu cuido do resto! Ria-se de rolar na cama. Céus! Irei para o inferno, certamente! Não posso. É praticamente um estupro. Não pense nisso. Ele precisa descansar. Ora, eles gostam destas surpresinhas. Podes crer! Mentira! Sai, devassa. Ser infernal que me corrompe. Humm...talvez...e digo...talvez vc tenha razão. QUATRO A CINCO EREÇÕES! Ele abrira aqueles olhos assustados. Ai, fecha esse olhos, Fernando! Não me olha assim, amor senão eu surto! Ele abanara a cabeça, sem nada entender das caras e bocas que ela fazia e voltara a dormir. Estava exaaaausto! NÃO FICA DE BARRIGA PRA CIMA, FERNANDO! - Ela berrara num frenesi.

- O quê, amor? - E lá vinha ele e aquela voz de travesseiro que a deixava louca.

- NADA! VOLTA A DORMIR E VIRA DE LADO! - Enfiara as mãos delicadas embaixo das cobertas. Queria rolar o corpo dele para o outro lado com o auxílio do lençol e então as ideias toscas sumiriam de sua mente suja. Longe dos olhos, longe do coração e...Ah! Não conseguiu. Vc é pesado, merda. Pesado, gostoso, potente, viril e meu noivo...ahh...- Um suspiro de alívio a fizera desviar a atenção do mastro erguido logo ali, ao seu alcance. Meu noivo. Foi tão bonito, amor. Eu nunca mais vou me esquecer daquela festa. Ah, não vou mesmo! Fitava o teto e as estrelinhas antes, de um verde luminescente, agora tão foscas e amareladas. Pobrezinhas. Do teto, seus olhos curiosos foram de encontro ao membro ali, ereto. Uma hora ??? Tem certeza??? Claro! Foi o que eu li. Estava lá, nos livros. Ah! Eu vou sair daqui. Não sou obrigada a ficar olhando isso e não fazer absolutamente nada! Fica, imbecil! O noivo é teu! A casa é tua! O QUARTO É SEU! Cala a boca! Fica quieta! Ai, ai, ai! Quem manda aqui sou eu! Não vou abusar do MEU NOIVO. E dava pancadas em seu peito. DO MEU HOMEM. DO MEU MACHO! Bradava, agora, heroicamente, sentindo a brisa dos campos verdejantes e o cheiro de sangue derramado em batalhas de seu povo celta, nórdico, viking, irlandês, escocês...QUALQUER UM, MEU BEM! Exceto ser nativa deste lugarzinho bizarro. Pensara sob a graça dos ventos enregelantes do ar-condicionado abençoado do quarto que agora era seu por direito! EU ESTOU NOIVA! Explodia de contentamento por dentro, temendo acordá-lo. E o pau que afrontava os céus, agora coberto por ela, com o lençol de branquíssimo, cheirando à lavanda, mais parecia uma assombração. Ai, meu Pai. Não me deixa pecar. Estava devidamente coberta por sua nova camisola de algodão e as borboletinhas coloridas. "Cetim não, tia. Eu não sou mulher de cetim. Eu te amo, minha tia. Mas...amo muito minhas borboletinhas. Não se zangue, ok? A senhora fica di-vi-na com cetim. Eu não! Eu sou mulher de algodão. Isso sim! Ademais, algodão é mais macio, tia."

Deixa ele descansar, tadinho. Precisa trabalhar. Culpa sua, seu pervertido. Me faz subir pela paredes com seu sexo selvaaagem. Rosnava baixinho. Ela agora dormia no quarto dele com a permissão e a benção de seus pais, dos pais dele...ou de seus tios? Ora, bolas! Tanto faz. Eram tudo para ela.

- Como vc é lindo. - Dissera embevecida, com a voz rouca, tocando com os lábios a brecha entre aquele pescoço másculo e o ombro delineado por músculos. - E só meu. Até quando? Acha que ele é desses que se satisfaz com uma só todas as noites? Diabos! Sai daqui! Não posso! Sou vc, sua burra. Se eu sair, vc morre. É. É verdade. Tem razão. Não saia. Mas, fique calada. Ele é meu. Sou fogosa e ele gosta disso. Não tem motivo algum pra procurar outra fora de casa. Ah, tá! Acredite nisso e durma em paz, meu bem. Ele, ainda sonolento e francamente destruído por tentar satisfazer a fome voraz da companheira, recentemente elevada ao nível de 'noiva' quando ouvira seus soluços e vira, de relance, seu corpo sacudindo violentamente. Os joelhos abraçados juntos aos seios, a cabeça enfiada entre os joelhos. Ele erguia o tronco ainda confuso, franzindo o cenho e logo abrindo um sorriso de compaixão. Uma cópia esculpida em carrara de Celeste. - Perdão, amor. - Suas palavras entrecortadas, seu corpo trêmulo. - Volta a dormir. Vc tem que acordar cedo.

- Não preciso não. - um sussurro audacioso em seu ouvido. Ela ria entre lágrimas. Ela a puxava para si. Ela deslizava sobre a cama até ele, igualmente recostado à cabeceira. Uma mão alisava seus cabelos e a outra estava ao redor da cintura, infundindo confiança e leveza e sanidade àquele serzinho complicado ao qual ele aprendera a amar. - São as vozes?

- Uh-hum - Ela voltava o rosto congestionado a ele. E...meu Deus! Estava de volta ao paraíso! Perguntava-se como sobreviveria se ele não estivesse ali. Se ela não o tivesse visto, ainda aos seis anos passando em frente ao seu portão. Seus traços finos. Aquele olhar manso e o sorriso de quem confiava no futuro. Uau! Era tudo de que ela necessitava! Alguém que não vivesse no passado ou se preocupasse, em demasia, com o futuro. Alguém que aceitasse e vivesse o presente como um presente divino. E lá estava ele, bem ao seu lado, com o pau duro ou não, era ele. Ele era o homem de sua vida. Ficaram abraçados por um tempo inestimável. - Vc me ama? Digo...ama de verdade? - Ele assentira com a cabeça, aguardando por uma reação explosiva que certamente...

- FALA COM A BOCA! EU PRECISO OUVIR! VC SABE QUE...- Arquejos de dor e uma pitada de dramaticidade à cena. - Vc sabe que preciso ouvir as palavras. Vc sabe, amor...DIZ!

- Amo, porra! - Uma nova crise de choro. Ocorrera a ele que ela estava chorando mais do que o normal ultimamente. E o que seria normal nela? Chorava basicamente por tudo e por todos. Chorava ao ver uma propaganda da Coca-Cola e aquele urso branco, sozinho em seu mundo polar, ou quando ouvia, lá longe, o vendedor de picolés subindo a ladeira, sob o sol escaldante daquele local inóspito, empurrando o carrinho sem ter que o apoiasse. "Olha o picoléeee!", o velhinho cantarolava e então, ela implorava que Nando lhe comprasse os picolés, dois de cada sabor, ainda entre lágrimas, jurando voltar a trabalhar e pagar cada centavo gasto com ela. Sorria, entre lágrimas abundantes, ao ver o rosto minúsculo e enrugado do vendedor e seus olhinhos negros e brincalhões e nos lábios, um sorriso pregueado quando entregava-lhe as moedas do pote de ouro escondidas "over the rainbow". Estava totalmente descontrolada a menina havia alguns meses. E o sexo!? Um tormento delicioso para ele. Sim. Amava aquele furor lascivo com que era recebido ao voltar do trabalho quando implorava por um banho e ela o arrastava, literalmente, ao quarto. "Só depois de cumprir com seus deveres!", vociferava, entre dentes, olhos insanos, alheia à Celeste que levava as mãos ao rosto, escondendo um sorriso de perplexidade. - "Criamos um monstro".

O fato que ele a amava e não sentia falta da vida que costumava levar antes de viver ao seu lado. Com seu bom humor costumeiro, encarava com naturalidade, os amigos que o alertavam sobre os perigos do casamento ou as investidas cada vez mais abusadas das colegas de trabalho ou das fulaninhas de sua rua que jamais se recuperariam do trauma vivenciado na noite em que o viram de joelhos por ela. Logo por ela, "A noite do demônio!". Nos primeiros meses em que fora recebida como um real membro da família, agora com o status de 'esposa', Giulia vira-se alvo de sua atenção, de seus carinhos, a despeito das estranhas oscilações que passara a sofrer em seu constante estado de humor inconstante. Fernando a compreendia perfeitamente. Homem bom aquele! Bom e gostoso por demais! Ele a satisfazia em todos os sentidos, embora ela ainda soubesse que havia aquela raiva, dos tempos de Carlos "O Santo", oriundas do dia em que fora visitar os pais e de lá, voltara esquecida de algo que ...esquecera-se de se lembrar do que havia esquecido. Nossa! Pareço meu tio, às vezes. A gente tem que conversar sobre isso, amor. Essa raiva que eu vejo nos teus olhos não combinam com vc! Vc me ouve??? Não. Não é hora de dormir. Ai, meu Deus! Eu não vou aguentar dormir sem falar o que sinto. Sem expor meus sentimentos...não. FERNANDO, TIRA O TRAVESSEIRO DO OUVIDO! E ele, ao contrário do que se esperava, acostumara-se àquele jeito desnorteado, falante, faminto, dramático que ela vinha apresentando nos últimos tempos. Ria sem querer brigar. Era o seu jeito. Sempre fora assim, avesso à brigas. Se ela quisesse falar até enroscar as cordas vocais, que falasse. Ele estaria ali, para ouvi-la, conquanto seus pensamentos estivessem nos livros de cálculos da empresa ou na nova secretária contratada graças à sua habilidade em datilografar e ao belo par de seios que o convidavam à loucuras sempre que ela se apoiava à mesa dele, esfregando o decote pra lá de invasivo em seu rosto e, com a voz aveludada, perguntava-lhe sobre a vidinha de casado. Um perigo essa nova secretária. Sorte a dele não ter pensado... - Quem é ela!? Diz! Quem - é - e - la???

- Quem??? O quê???

- Seu crápula! Não ouse me trair!

- Vc para de ler a porra dos meus pensamentos!

- Então pensou mesmo???

- No quê??? Nos peitos da secretária??? Pensei e daí??? EU NÃO CONTROLO MEUS PENSAMENTOS! NÃO FAÇO PARTE DO CLÃ DOS BRUXOS COMO VC, MINHA MÃE E CARLOS 'O SANTO'!!!! - Giulia calava-se de imediato quando ouvia seus gritos descontrolados. O que era raro. Raríssimo. Duas coisas o faziam sair do sério: falta de grana, falta de sexo ou Carlos, o filho da puta que levou a mulher dele no colo, em frente aos alcoviteiros daquela vila, manchando, irrefutavelmente, sua fama de "Demolidor de Corações". É. São três coisas, eu sei. Dois fatos e um humano, à léguas de distância. Giulia, aninhada na poltrona de couro, rosto devastado, a pele lívida, erguera os olhos para ele, com lágrimas escorrendo e deixando manchas no rosto branco. - Desculpa. - Ele sempre cedia aos seus encantos. Ele a beijara e ela começara a beijá-lo. Por instantes, os dois perdiam-se um no outro, aos beijos, como dois gatos longos e graciosos lambendo-se. - Fui estúpido. Já passou.

- Eu não me lembro de nada, amor. Eu juro. Nada aconteceu. Eu juro. - Ele a levantara da poltrona, sem parar de beijá-la. Os dois estavam ronronando, já sorrindo um para o outro. - Sou sua. Seja meu. Não me traia. Eu não saberia viver sem vc.

- Não preciso de outra além de vc. Vc me completa. - Havia sinceridade e seriedade nos olhos dele quando a fitaram, deitada sobre a cama. Nada mais importava a ele além de tê-la ao seu lado. Não somente por amar seu jeito de ser ou por ter em sua mulher, sua melhor amiga. Não por reconhecer nela, a companheira e a filha devotadíssima à sua própria mãe. Não. Ele a queria ao seu lado por tudo isso e por algo que nenhum outro ser no mundo possuiria. - Preciso de vc...- Segredara-lhe e Giulia vira o desespero em seus olhos de gude.

Ela era a única pessoa capaz de mergulhar, sem medo, na Escuridão onde seu pai afundava-se, rapidamente e, voltar de lá, com eles em seus braços. A única.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 29/09/2019
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