'A CADEIRA, A LADEIRA E A MORTE' - do livro Giulia - Quando a Luz se apaga"

Nem mesmo a suspeita, guardada a sete chaves por Celeste, de que seu neto estaria a caminho o tirava daquela prisão que o impedia de demonstrar seus sentimentos, ao seu velho estilo, saltitando e cantarolando como um gnomo louco em meio às festas nas florestas encantadas em noites de solstícios. De certo, se pudesse se libertar dos grilhões que o mantinham presos àquele corpo, agora, devidamente aprumado naquela odiosa cadeira de rodas que haviam comprado para ele, com assentos confortabilíssimos e suas rodas de alumínio e pneus infláveis com design aerodinâmico e um sistema propulsor que o faria alcançar os cem quilômetros por hora, caso pudesse mover os músculos de seus braços, ele o faria. Apenas um pequeno movimento de seu dedinho já lhe traria uma esperança. Seus olhos eram duas bolinhas azuis inquietas, perturbadas, quando assim o desejava. Caso contrário, quando contrariado ou terrivelmente afastado da realidade, deixavam-nas vagar pelo infinito e perdia-se de volta ao Nada. Mamãe, me perdoa! Não chora por mim. Não suporto mais te ver assim. E Fernando? Onde está aquela criança que não vem me tomar a benção? Giulinha já voltou do colégio!? Me ajude a levantar, Celeste! Sozinho eu não consigo! E por Deus! Acordem. Não me olhem desse jeito. Não! Enzo ergueria os braços, cobrindo seu rosto de vergonha se acaso seu cérebro voltasse a obedecer às suas ordens e seus músculos voltassem a mostrar o homem viril que um dia fora. |O que querem que eu faça nesta cadeira de merda com rodas!? Dê a volta ao mundo em cento e oitenta dias!? ME TIREM DAQUI! NÃO. NÃO ME DEIXE NESTE QUARTO! Não quero dormir...Giulinha...vc disse que tem um segredo pra me contar. CADÊ GIULINHA, CELESTE!? VOLTE, MAMÃE. NÃO FECHE A PORTA...NÃO...não...feche...a...porta.

Eram poucos os momentos de lucidez, conquanto, a melancolia e a tristeza profunda alastravam-se por seu espírito, outrora, cheia de lirismo e ideias brilhantes. Pensando de si para consigo, no escuro de seu quarto, sentindo-se um fardo, entregava-se aos braços da Morte que ria-se dele. Ainda não é a sua hora, meu bom homem, ela lhe dizia com aqueles dentes amarelados e um capuz preto a lhe cobrir parte do rosto enrugado, olhos amarelados e ovais. Mesmo encobertos, Enzo via os olhos da Morte. Percebia Enzo que a Morte era igualmente triste como ele. Apiedava-se dela por ter um ofício tão sacrificante e ingrato e, por isso, ser tão temida quando, talvez, apensa desejasse um amigo com quem conversar. E se eu quiser partir, ainda que não seja minha hora?, perguntava Enzo à Morte, ali, sentada ao seu lado, cajado em madeira rústica apoiado no piso em cerâmica. Estava recostada à parede junto à penteadeira. Dera uma olhadela no espelho e não vira seu reflexo. Comprimira os lábios ressequidos. Vc não tem reflexo assim como os vampiros??? Uau! Giulinha vai amar saber disso! Ele a vira ali, ombros curvados e uma expressão vaga, quase ausente. Ocorrera a Enzo que jamais haviam tentado conversar com ela. Apenas a evitavam a todo o custo. Apenas a temiam. E se eu não quiser partir na hora em que Ele - e então erguia os olhos desesperançados ao teto - desejar que eu parta? Se quiser ir antes? Irei para o inferno? Este lugar existe? Ela dava de ombros, muda, pois acostumara-se à solidão e ao exílio. Enzo, meu bom homem, ela assim o chamava. Já não é a primeira vez que me chama. Melhor não brincar com coisas sérias. Ela o advertia com sua voz grave, soturna. Lembra-se da última vez, ainda jovem, na faculdade? Ora! Ele encolhera os ombros numa afronta. Isso foi antes de ter encontrado...Esquecia-se do nome dela. Encontrado Celeste, Enzo. Atalhara a Morte. Antes de encontrar Celeste vc tentou e não conseguiu. Foi. Eu me lembro. E vc estava lá. Por que não me levou? Tudo tem sua hora, meu bom homem. Preciso te agradecer? Ele desviara os olhos absortos da porta e os levara a ela. Ela fez que não com um leve aceno de mão. Mãos finas, dedos longos, unhas compridas e curvas, embora limpas. Não tente de novo. Talvez, consiga atingir seu objetivo, ela aconselhara com a voz mansa, cansada, esgotada. Enzo, arquejara de pavor ao ouvir, ao longe, o estrondo de um trovão, anunciando a tempestade que chegava, célere. Agora, fitava a velha cadeira de balanço onde Celeste costumava amamentar Fernando, embalando-o até que ele pegasse no sono. Então, Enzo, peito estufado, olhos risonhos, ainda dono de seus movimentos e orgulhoso de seu filho, admirava-o com os olhos cintilantes repletos de um amor impossível de ser superado na Terra, tomando-o dos braços de Celeste que, sonolenta, entregava a ele o corpinho frágil, enrolado como um pacotinho precioso em uma manta de tricô, de um verde claríssimo com franjas brancas. O fruto daquele amor que dera sentido à sua vida, libertando-o de uma doença ingrata que o acompanhava, silenciosa e sorrateira, até encontrar-se com a atual. A Depressão e o Alzheimer comiam-no vivo. Lembrava-se agora com perfeição de como cantava baixinho, com sua voz de tenor, aconchegando o filho ao peito, osculando-lhe a cabecinha salpicada por fios ralos e claros. Tão claros quanto aqueles olhinhos que o fitavam como a esperar por algo e as mãozinhas gordinhas que se abriam e se fechavam na ânsia de tocar seu rosto onde se lia gratidão exalando por todos os poros. Nesses momentos de pura intimidade com o filho recém-nascido, Enzo sentia um pavor imenso, pois dava-se conta de que estaria eternamente ligado a um ser pelo qual seria responsável até o fim de seus dias na Terra. Era o amor mais forte que havia experimentado até então. Um amor absoluto, avassalador, assustador, inebriante, rejuvenescedor, contagiante, inesgotável que se restaurava dia após dia, num crescer constante e de uma preocupação sem fim. Preste atenção, ele o dissera sem palavra à Morte que parecia gostar de sua companhia e o compreendia em sua angústia. Diga a Ele que não hei de esperar que vc volte para me buscar se eu continuar a definhar desta forma. Isso não é vida. Veja! Não posso falar quando quero. Não posso fazer minhas necessidades sem que minha mulher me empurre nesta maldita cadeira de rodas e me limpe como se eu fosse um inválido. Pobrezinha. Está um farrapo por minha causa! HÁ VIDA DENTRO DE MIM. AINDA NÃO MORRI! Ora bolas...perdão. Cerrava os olhos úmidos, vendo a Morte quedar a cabeça, possivelmente, ocultando suas lágrimas. Vc chora? Ela fez que sim, cobrindo o rosto com o negro capuz e as mãos ossudas a segurar o cajado. Não trouxera a foice, ele pensara. Diga isso a Ele! E, por favor, se vc não se apressar em me levar, deixe que eu mesmo faço o trabalho sozinho. OUVIU!? Novamente? Ela o censurava, encolhendo-se, curvando-se sobre a banqueta de madeira. Parecia tão sensível! Não gostava de gritos, a Morte. Talvez, detestasse seu emprego. Darei um jeito! Tire uma folga, pois eu mesmo darei um jeito.

- Um jeito em quem, meu tio querido, amado, idolatrado. Salve! Salve! - E eis que surgia um raio de sol em meio ao quarto mergulhado na penumbra. Giulia, de soslaio, registrara a presença macabra logo ali, à sua direita. Arrepiara-se dos pés à cabeça. Lançara um olhar à cadeira de balanço onde, agora, sonhava em ninar seu filho, herdeiro dos Tomazzini. Seus dias eram de pura luz, em contraste aos de seu tio. E, por isso, independente de sua vontade, sem temer aqueles olhos que, outrora, riam-se para ela e, agora, a encaravam com desgosto e uma forte pitada de desprezo, ela o levava a passear pelas ruas daquele vilarejo. E quando, através de sua extrema sensibilidade, percebia-o em desespero diante dos antigos amigos que aproximavam-se, comovidos, com aquela expressão de que estavam diante de algum moribundo, Giulia, a louca, a antiga noiva do demônio, redimida, conduzida e elevada à santidade por ter sido acolhida como membro real da real família Tomazzini, girava nos calcanhares, levando seu tio consigo, empurrando a cadeira com os olhos flamejantes e as narinas infladas, pés ligeiros, mãos hábeis que se desviavam das árvores, dos carros nas calçadas, dos carros no asfalto. PUTA QUE PARIU! Revirava os olhos quando os ouvia.

" - Esperem! Esperem! Queremos falar com ele!" - Era a voz de Tobias, o antigo companheiro de sinuca que se gabava, sempre que os encontrava, de estar em plena forma, 'dando no couro' como nos velhos tempos. Velhos tempos de quem, idiota! Não percebe como meu tio está??? Seu estúpido! Cala essa boca antes que eu arrebente essa dentadura nova que não lhe cabe na boca, velho imundo!

- Giulinha! Pare! Deixe-me abraçá-lo! - Retrucava Gertrudes, a um passo de tocar nas costas de Giulia. Era tão louca que não merecia sequer xingamentos. Bastava encontrá-la em alguma esquina daquele lugarzinho onde habitavam e ela, Gertrudes, logo abria os braços a ele e, entre lágrimas, fitava Enzo, ali, parado, sentado em sua cadeira de rodas, com cara de paisagem. De certo ela espera que o senhor se levante e ande! ALÔ!! AQUI NÃO HÁ ESPAÇO PARA MILAGRES, MEU BEM! SUMA DA NOSSA FRENTE ANTES QUE EU...AH! SÓ SUMA DA NOSSA FRENTE! De cenho transfigurado, Giulia, dando-lhe as costas, aos berros de que seu tio estaria surtando, ignorava as súplicas dos alcoviteiros e, sob as bençãos do pai torto e aliviado, a quem tanto amava e de quem captava, através das mãos, o que ele sentia em sua alma, ajeitava-se, na parte posterior do veículo, com os pés nos espaços entre as rodas esmerilhadas, preparadas e adaptadas para grandes aventuras e os braços que envolviam o corpo do tio num abraço, tal qual o de um polvo e seus tentáculos. Ele não a via ali, logo atrás de si, mas a sentia enroscando-se a ele, encostando seu rosto ao dele, murmurando em seu ouvido que ela jamais o abandonaria e que sabia que ele estaria prestes a retornar.

- Com ou sem emoção??? Um aperto para 'sim'. Dois, para 'não'. - Ele ouvia seus risinhos histéricos e com um único e ligeiro e levíssimo aperto em sua mão delicada, respondia-lhe à pergunta. - Boa escolha! Com muiiita emoção! - Ele, adivinhando os próximos passos da criança que o guiava e que se esquecia de que carregava uma outra criança em seu ventre, preparava-se para o grande evento do dia. Enzo, outra criança ainda mais inconsequente do que a que o guiava, estava pronto para uma descida vertiginosa ladeira abaixo, sem direito à paradas. - PRONTO??? Ela gritara dentro de seu ouvido. "Céus, ainda não estou surdo". Ele gargalhava por dentro, inspirando a doce fragrância de Lavanda de Giulia, bem ali, ao seu lado, grudada a ele. Uma extensão da cadeira de rodas que agora soltava faíscas de suas rodas aerodinâmicas, atingindo a mega velocidade de vinte quilômetros por hora. SAI DA FREEENNTE! Berrava a quem ousasse cruzar seu caminho. Giulia, nesses instantes, era absolutamente insuportável. Seu tio estava se divertindo e o defenderia até do próprio Lúcifer, caso ele surgisse entre as labaredas do inferno, em meio à ladeira. Não se atrevam a tirar isso dele. Saiam, seus vermes. Por que nos olham como se fossemos loucos??? Vou te meter a porrada! Fitava com os olhos em chamas, Isabella 'seios fartos' que os vira passar, totalmente perplexa. Seu pescoço dera um giro de noventa graus na vã tentativa de entender o que se passava. Dera de ombros. Giulia já havia conquistado tudo o que lhe pertencia por direito. Restava-lhe apenas investir em outro homem tão atraente, bonito e rico quanto Fernando. "Impossível", pensara num desconsolo.

E lá iam os dois. Ele, olhos arregalados, sorriso estampado no rosto e por dentro, bradava: "CARPE DIEM!CARPE DIEM!". Ela, agora, quase que caía sobre ele de tão debruçada em seu corpo numa tentativa de protegê-lo de uma impossível queda. Comigo aqui, meu bem! IM-POS-SÍ-VEL! Eu tenho tudo sob controle! Vinte, vinte e cinco quilômetros por hora em ladeira aberta, absolutamente liberada por seus berros de alarme. Cabelos esvoaçantes, olhos que brilhavam de contentamento. Relances de seu tio aos berros "Carpe Diem! Carpe Diem! ABRAM ESPAÇO OU EU OS ATROPELO! Ela fazia um esforço enorme para não chorar. Apertava suas mãos contra as dele, tão agarradas ao apoio de braços da cadeira que fora difícil arrancá-lo dali quando tudo findara. É. A farra chegara ao fim quando, ao lado da máquina super possante, vermelha com rodas prateadas, um carro negro surgira do nada, seguindo-os, alardeando sua presença irritante através da buzina e dos gritos furiosos vindos da janela aberta do condutor. - Tio, por hoje acabou. - Ela segredara aos ouvidos dele. Como se precisasse. Enzo lembrava-se, agora, dos defeitos do filho e, um deles, era o de não ter paciência para com aqueles que não cumpriam suas ordens, seus subalternos. Pobre Giulia, lamentara, franzindo as sobrancelhas quando o vira sair do carro, portas abertas, motor ligado, olhos que cuspiam fogo. Por muito pouco, erguera-se da cadeira e o impedira de chegar até ela, segurando-o pelos braços como o fazia quando ainda era um pai presente, evitando que ele, o filho despejasse toda sua raiva e uma pitada de ciúmes - e um forte remorso em não querer cuidar do próprio pai - sobre ela que nada mais fizera além de chorar, ali, diante de todos os que ainda a conheciam como a 'A noiva do Demônio'. Desnecessário, meu filho. Desnecessário. Enzo baixara a cabeça e, de seus olhos, lágrimas discretas brotaram quando ele fora gentilmente acomodado no banco do carona, ainda ouvindo o filho a berrar com a mocinha encolhida no banco traseiro. Giulia poderia jurar que vira seu tio girar o pescoço em sua direção e lançar-lhe uma piscadela de cumplicidade.

No banco traseiro, Giulia uivava de rir, eletrizada pelo que vira. Eu vi! Tenho certeza que vi! Tio, faz de novo! Eu vi! Seus risos transformaram-se em um sorriso pálido quando seus olhos cruzaram com os de Fernando, coléricos, que a fitavam pelo retrovisor.

- Em casa, a gente conversa. - Ele a ameaçara, metendo o pé no acelerador, lançando fumaça branca através dos canos de escapamento. - Irresponsável. - Ele murmurava, entre dentes. Vá pro inferno, ela pensara enquanto apreciava as modas através do vidro do carro em movimento. Meu tio gostou. Isso é tudo o que importa.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 05/10/2019
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