'THELMA AND LOUISE - VOLUME I' - livro Giulia - Quando a Luz se apaga

Fazia frio lá fora. Um inverno atípico com muita chuva, ventos cortantes e dias de baixa temperatura. Perfeito para Enzo e Celeste que, debaixo do edredom quentinho e fofo, assistiam aos seus filmes prediletos (pela enésima vez), todos devidamente enfileirados, desempoeirados e agrupados em ordem de gênero e preferência, embora, essa ordem fosse caoticamente revertida nos dias em que Giulia, num impulso de generosidade e gratidão, retirava-os do lugar a fim de limpá-los e, segundo sua própria lógica, reorganizá-los. Então, os romances adocicados de Celeste infiltravam-se entre os filmes de Ação e Catástrofes do tio. Ninguém pode viver sem amor, meu tio. Chega! Já tivemos muita ação nesta casa nos últimos meses. O senhor precisa de romance em sua vida. Ela murmurava, um tanto exaltada, enquanto movimentava os braços numa frenética troca de dvd's que se encaixavam nos espaços vazios deixados pelos outros que já se encontravam nos lugares dos primeiros, e os olhos que esquadrinhavam os títulos e sinopses em frações de segundos. Puxava exemplares de Comédia dramática e os Cult's de sua tia, transferindo-os para o lado oposto - o do tio - misturando-os aos de Espionagem, Western e Chancadas nacionais. Ai, pelo amor de Deus! Depois fica aí, chorando pelos cantos, com dor no coração e não sabe o porquê! Reclamava da tia e sua tendência a assistir às películas onde lágrimas eram vertidas em profusão.

Entre tantos títulos, perdia-se e agora, confusa, já não se lembrava da ordem que, a princípio, pretendia seguir. ANIMAÇÃO! Isso! Inclinava o tronco um pouco para trás e percorria com os olhos semicerrados o término de sua obra. Todos nós aqui estamos precisando de animação! Concluía, satisfeita a faxina, certa de que seus tios a admirariam pela criatividade e pelo vasto conhecimento que possuía como uma boa cinéfila. "Thelma e Louise", resmungara de olhos fitos na capa do dvd que lhe chamara a atenção. Como são bonitas! Hummm...estranho. Sentira uma repentina repulsa pelo objeto. Relances de olhares sombrios e frases ditas num tom muito baixo. Deixara cair o volume de suas mãos. Agachara-se com cuidado, apoiando uma mão na estante, enquanto a outra trazia consigo o dvd bizarro. Já de pé, semicerrara os olhos, perscrutando-lhe os detalhes. Decidira não usar de suas faculdades. Estava com medo. Alisara a barriga, acalmando Sunshine que dera uma cambalhota em sua piscina particular. Giulia dera um suspiro de contentamento. Será que são lésbicas??? - Hesitara com um sorriso saliente no rosto. - Pode ser! Dera um riso histérico, imaginando-as nuas entre beijos e carícias. Tá aí uma coisa que eu nunca vi. Dissera-o intrigada. Passara uns três minutos a observar a capa bem como a contra-capa com uma expressão insólita em suas faces ruborizadas. Será pornografia do tio e ele se esqueceu de esconder??? Não! Não quero ler sinopse alguma. Vou esconder! Chega! Chega de deixar a tia nervosa. Decidira a questão, misturando-o aos de Aventura. Aqui, ele não vai encontrar. Ainda não tá bom da cabeça. Safadinhos...

Sua risada ecoara pelo quarto mesmo depois de ter saído e fechado a porta, pelo lado de fora.

- Eles nunca vão achar um filme de pornografia entre os de Aventura! - Vangloriava-se enquanto, entusiasmadíssima, preparava-se com afinco para a festa de aniversário de um dos muitos amigos de Fernando. As argolas douradas pendiam das orelhas até os ombros e anéis adornavam cada um dos dedos que terminavam em longas e letais unhas vermelhas. Eram anéis igualmente dourados e grossos, todos com algum tipo de desenho cabalístico como estrelas, luas, serpentes e, é óbvio, borboletas. Ele odeia isso! Ela batia palmas, euforicamente abalada. Adorava deixar seu homem enraivecido. Sexo após uma briga era sempre revitalizante, segundo Giulia.

Havia tempo que não saía de casa. Havia tempo que implorava a ele que voltasse a casa mais cedo, pois necessitava de sua companhia, já que não havia mais ninguém com quem pudesse conversar. Ele a irritava ao extremo quando, sarcasticamente, sugeria que ela procurasse pelas amigas. Antes, num átimo, trancara a porta do quarto, impedindo que seus pais, lá no final do corredor, fossem incomodados por ruídos estranhos. - "DEMÔNIO!" - Ela o xingava, entre tapas e pontapés e uma das muitas crise de nervos provocadas pelo acúmulo de hormônios que pareciam intensificar - e muito - a impulsividade, o descontrole e as vozes que não cessavam! O sono inquieto, os pesadelos recorrentes, a barriga que lhe pesava a cada dia, um pouco mais. A falta de ar, os enjoos, os vômitos naturais e os provocados. - EU TE ODEIO! - Ameaçava-o com um cristal de quartzo cravado em seu punho cerrado, olhos em brasa, narinas infladas, rosto avermelhado e quente, braço prestes a arremessá-lo caso ele não parasse com os risos estridentemente debochados. - Vc sabe que não tenho amigas!" - Ela choramingava, sentada no chão, encostada à cama, lágrimas nos olhos, agora fixos no cristal encantado. Ele se compadecia dela, recriminando-se por ser tão cruel. Sentia-se impelido por alguma força que ele mesmo desconhecia, a fazê-la perder o controle e, nesses momentos, nenhum dos dois inconsequentes pensava na saúde de Sunshine que certamente demonstrava sua desaprovação, chutando o ventre da mãe, como se quisesse defendê-la do pai que voltara a beber às escondidas. Nando prometera que a levaria a passear. - "Vamos ao cinema! À praia, ao centro da cidade, mas, por favor, deixe-me ver gente, cor, luzes!" - Ela abria os braços e rodopiava, alucinada, inebriada, deprimida, cambaleante pela falta de equilíbrio. Ele a apoiava, beijando sua boca, assentindo com a cabeça e um olhar sombrio. Ela fingia não ter sentido o gosto de outra em sua boca. Sorria seu sorriso triste, abraçando-o, demoradamente, como se o quisessem tirar dela.

- Vc não vai com essa roupa! - Ele dissera num tom solene enquanto procurava as chaves do carro. - E nem com essa unhas de piranha! Pode passar acetona.

- Não fala assim comigo. - Ela o advertira com a voz em falsete. Seu corpo todo começara a tremer. Sentia-se feia e uma só palavra dele poderia acabar drasticamente com sua noite. Após um longo tempo enfurnada em casa, cuidando dos tios, sairia à rua e veria as cores da cidade. - O que tem minha roupa? É vestido de grávida! Olha! Tá largo! - Esticava, com os dedinhos delicados, a barra do vestido de uma ponta a outra. Fizera uma reverência, lembrando-se do tempo em que todos apostavam que ela seria uma famosa bailarina. De súbito, empalidecera. - As unhas...eu pintei pra vc. - Ele ouvira seu murmúrio rouco e triste.

- Pode tirar! - Gritara do batente da porta da sala de estar, alcançando o carro na garagem. - Com essas unhas, no meu carro vc não entra.

- Então vá com a sua amante, cretino! - Ela o via retroceder, furioso. Os olhos flamejavam. As chaves chacoalhavam na mão fechada em punho. - Se encostar um dedo em mim, eu te mato! - Ela já estava pronta a atacar, ostentando os anéis que, além de enfeitarem os dedos, serviam como arma para autodefesa. De punhos cerrados, ela o incitava, guarda alta protegendo o rosto, jogando os quadris de um lado para o outro. - VEM!

- Vc é ridícula. - Ela a puxara pelo braço, abafando um risinho irônico. Ele a amava, mas, cansara-se da vida enclausurada que vinha levando ao longo daqueles dias de total entrega à família. - Por hoje passa. - Avisara, sussurrando em seu ouvido. Ela se deixara levar, desorientada, completamente dominada pelo caos que ameaçava eclodir de suas entranhas. Queria parar de sentir tudo com tanta intensidade. Queria tanto! - Vê se não vai dançar como uma louca quando chegar lá! - Ele apontara aquele dedo acusador para ela e antes que ela pudesse reagir de uma maneira explosivamente normal, ele a agarrara pelo rabo-de-cavalo preso no alto da cabeça, de onde pendiam longas mechas que emolduravam seu rosto sem maquiagem, com uma luz típica das gestantes felizes, tascando-lhe um beijo violento, invadindo aquela boca, brilho sabor de menta, com sua língua lasciva e sedenta. Era louco por ela. Mas...e as outras? Quem daria conta das outras em sua ausência? - Vamos? - Ronronara em seu pescoço.

- Uhum...- Ela arquejara como nos tempos em que sonhava acordada com ele e seus beijos inocentes. - Eu tô feia? - Fitara-o com os olhos cheios d'água, mordiscando o lábio inferior. Não me diga que estou! Por favor, não estraga tudo. Não estraga tudo. Não estraga tudo. - Diz! - Exclamara impaciente ante aqueles olhos que a devastavam em seu vestido largo e curto, coxas e seios fartos à mostra.

- Não. - Ele respondera secamente ao volante. - Pra quê esse decote? Sem necessidade.

- Vc sempre gostou dele. Por que não posso agora? - Retrucara, desdenhosa, para o vidro da janela do carona, apreciando os carros e seus faróis como os olhos de dragões. Os pingos da chuva jogados de um lado para o o outro, pela fúria do limpador de para-brisa. Ocorrera-lhe que aquele barulhinho tinha o poder de acalmá-la. Como o do ventilador. É. Isso me acalma como o barulho do ventilador. Divagava, aérea, olhos distantes. - Vc não vai me deixar sozinha, né? - Quando ela o encarou era a figura do desespero.

- Nunca. - Ele elevara os cantos da boca, ajeitando o retrovisor. - Adelante! - Ela batia palmas, radiante, dando pulinhos na cadeira.

- Hoje a noite é nossa, amor! - Ela afirmara, recostando-se ao assento, inspirando e expirando, acariciando o ventre, acalmando a criança que parecia inquieta. - Vai dar tudo, Sunshine. Tudo certo.

***

- Por que brigam tanto? - Enzo, com a boca cheia de pipoca, entre os lençóis, perguntara à Celeste. - Parecem malucos. - Celeste quase não entendera a última frase.

- São jovens. - Ela se aninhara em seus braços, roubando da tigela de porcelana, os piruás. Ele nunca deixara de achar graça naquele jeitinho dela de catar os piruás, como quem estivesse acostumada de destinada ao pior da vida. Aos restos. Ela não vira os olhos dele cheios de lágrimas de reconhecimento e extremos de amor. Ela estava preocupada com os piruás. - Jovens e bobos! Eu, heim! Em vez de aproveitarem a vida! Perdem tanto tempo brigando...

- Concordo! - Outra porção de pipoca entupia a boca de Enzo quando ele apontara com o queixo o filme escolhido para assistirem juntinhos. - Isso! - Ele fizera um ruído com a boca, assentindo com a cabeça quando ela, sorrindo, erguera o dvd com a foto de duas belas mulheres em sua capa. - "Thelma and Louise", sem legendas. Preciso exercitar meu inglês.

- Desde quando vc aprendeu inglês, meu bem? - Sua voz era suave e firme, de olhos fixos na TV.

- Não aprendi??? - Arregalava os olhos e uma pitada de horror fez seu coração acelerar. De novo não. Eu não vou voltar. - Pois então, ponha na versão dublada. Melhor assim.

- Boa escolha. Versão dublada. - Apertara o botão do play no controle remoto. O filme fora iniciado. As luzes dos abajures, apagadas. Uma penumbra agradável espalhara-se pelo quarto e seus rosto eram tão somente iluminados pelo clarão prateado que atravessava a grande tela do aparelho de última geração em eletroeletrônicos. Um mimo do filho, o orgulho do pai. - Por que vc gosta tanto de assistir a este filme em especial? Já é a quarta vez, amor. - Ela suspirou antes de fitar aqueles olhos vagos.

- Já prestou atenção aos detalhes? - Celeste cerrara os olhos e sua cabeça parecia tremer como em um terremoto. Seus batimentos cardíacos oscilavam. A voz sombria dele em seu ouvido. A mão gelada sobre a dela. - Ao final? Já prestou atenção ao final?

- Uhum...- Assentira com a cabeça, corpo estirado sobre a cama, mãos que se cruzavam sobre o esterno, pernas esticadas, inspirava e expirava pela boca. - Um final lírico. - Sua voz era tão baixa quanto triste.

- "A vida imita a arte muito mais do que a Arte imita a vida", já dizia Oscar Wilde. - Dissera-o num tom solene. - Concorda? - Ela evitara seus olhos. Sentira-os, de relance, sobre ela. - Não volte atrás quando chegar a hora.

- "Só sei que nada sei". Platão. - Ela balbuciara.

- Sócrates! Dessa eu lembro! - Ele exultara, aos gritos. Ambos caíram na gargalhada que morria aos poucos, em um sorriso desesperançado. - Não volte atrás, por favor. - Enzo arquejara de dor, procurando pela mão dela debaixo das cobertas. Ela, imobilizada de pavor, enfurnara seus dedos entre os dele e suas mãos se uniram com força, coragem e determinação. Uma determinação sombria. - Aonde vc for, eu vou.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 13/10/2019
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