'O HOMEM-BORBOLETA' - do livro Giulia - Quando a Luz se apaga

Foram dias sombrios aqueles. Dias e noites em profundo silêncio e uma vontade de dormir para sempre. Não pode. Ele precisa de vc. Seu filho precisa de vc. Eu sei. Vc já falou isso. Não vou me matar. Só quero dormir. Me deixa em paz. Quero dormir e não acordar. Só quero acordar...- E então debulhava-se em lágrimas, debaixo das cobertas, na cama do quarto de hóspedes da Casa Lilás. - Quando tudo passar. Quando tudo passar, eu volto a acordar. Só isso...E se não passar? E se ele continuar a beber??? Ele bebe por tua causa! Não fale isso, idiota! Ele bebe porque é viciado. Porque fez merda. Porque acabou com o nosso sonho. Nosso sonho??? - Ela rira a contragosto. - Meu sonho. Eram os meus sonhos. Só meus e de mais ninguém. Esse filho é meu. Só meu. Ai, cacete! Deixe de ser estúpida. Ele é o pai e e está sofrendo. Fale com ele. Deixe ele entrar. Deixe ele entrar quando bater naquela porta, chorando feito um bezerro desmamado. Deixa ele entrar, mulher! CALA A BOCA! SUMA DAQUI!, gritava em seus pensamentos com as vozes que não se calavam. Me deixa dormir...eu imploro. Ok! Já falei demais. Vc é quem decide, meu bem. VAI!

Então, ela ouvia o doce som do silêncio e o constante e calmante ruído das hélices do ventilador em ação. Cerrava os olhos, exausta, sem ânimo. A imagem dele com outra não lhe saía da cabeça. A verdade de ter sido covardemente traída diante de todos os amigos dele fora um golpe forte demais. Forte demais até para ela que sempre perdoara seus deslizes.

Por debaixo das pálpebras, seus olhos moviam-se com extrema rapidez. Inquietava-se sobre o colchão sem achar posição confortável já que sua forma física havia sofrido algumas mudanças. Dormir de bruços? Nem pensar. Só quero dormir. Por favor...me deixem em paz, sussurrara entre a vigília e o sono. Ouvira um ronco vindo de seu estômago vazio. Havia dias que não se alimentava. Apenas água, o que deixava a todos naquela casa alarmados, desesperados, desanimados. Não sentia fome, embora soubesse que deveria alimentar seu filho que parecia estar dormindo, em solidariedade à tristeza profunda em que a mãe mergulhara e da qual não conseguia sair sem ajuda.

- Mas eles te ajudam. - A voz era como um cântico trazido pela brisa fresca das noites de primavera. Giulia, de súbito, abrira os olhos, ainda com o rosto afundado no travesseiro que cheirava à lavanda. Não tá frio e não tô com medo, ela sopesava mentalmente, imobilizada debaixo da coberta. Logo, não é coisa ruim. - Não. Não sou 'coisa ruim'.

- Então quem é? - Perguntara encolhida, pernas flexionadas e a mãos que protegiam a barriga arredondada. Os olhos cerrados denunciavam o medo em ver algum ser sinistro, dantesco, viscoso, rastejante. - Não se atreva a tocar no meu filho. - Tossia enquanto o ameaçava, já disposta a abrir os olhos e encarar o dono daquela voz melodiosa. - Vc não sabe ler??? A placa na porta diz...

- "Não perturbe". Eu li. - Foi quando ela o vira sentado ao lado da cama, numa banquetinha primorosa com quatro pés em aço pintado de branco, estofada com motivos florais. Não havia encosto, portanto, o visitante mantinha-se com as costas eretas, alto, esguio, altivo sem ser soberbo. - Mas, perdoe-me. - Ele sorrira e seus dentes brancos e perfeitamente alinhados foram vistos por ela. Não havia traços de falsidade, malícia ou lascívia. Um sorriso puro e franco. - Precisava falar com vc.

- Comigo??? - De imediato, lá estava Giulia, costas apoiadas na cabeceira da cama, pernas cruzadas, pois já havia desistido de abraçar os joelhos havia tempo. - Por que comigo? E por que essas luzes??? Deus! - Esfregara os olhos como quem quer acordar de vez. Piscara por diversas vezes antes de pronunciar francamente surpresa. - O que são essas luzes aí dentro??? Por que tem cores diferentes??? Amei a verde e a lilás!!! Minha tia! Ela precisa ver isso! - Aumentara o tom de voz, pousara um pé no chão e seguiria em direção à porta fechada se ele, com um toque suave e enérgico, não a impedisse. Seus dedos davam-lhe pequenos choques. - Vc é diferente. - Sua voz baixa, seus olhos amedrontados. - Quem é vc? - Murmurara, de volta à cama, levando a barra do cobertor à metade do rosto, deixando de fora somente os olhos vívidos, com lampejos de terror.

- Não. Não sou um daqueles. - Ele respondera ao que ela perguntara mentalmente. - E não pretendo te fazer mal. Pelo contrário. Estou aqui numa boa. - Ela abafara um riso que escapava em chiados. - Ué! Não é assim que se fala hoje em dia???

- Vc é engraçado! - Dissera ela entre risos, agora com a metade do corpo descoberto. Vestia um camisolão de algodão, branco, mangas longas e largas e a bainha que chegava aos pés. Amava aquele camisolão que a remetia aos séculos passados! Sentia-se como Cathy, perdida entre as brumas das charnecas onde os ventos uivavam. - Fala engraçado. Seu jeito de sentar é engraçado. E a sua roupa??? - Apontava, às gargalhadas, o indicador para o homem com sua calça jeans surrada, pés descalços, camisa social em algodão com estampas de borboletas. As pernas que se entrelaçavam, elegantemente. As mãos, pousadas sobre o topo do joelho. - Gostei de vc! - Afirmara. - Também gosta de borboletas?

- Amo! - Confessara, inclinando-se para ela. - Gostaria de ser uma! - Ela sentira uma pontada no peito. Algo nele lembrava o amigo morto. Talvez a fala mansa ou o sorriso doce ou, quem sabe, os gestos delicados e as mãos que pareciam querer voar a cada fala? - Mas, voltemos ao que me trouxe aqui, meu bem.

- Ah, sim! - Giulia recuara um pouco, pois estava prestes a abraçá-lo de tão encantada. - Pode falar...

- Ora! Pare de olhar para as luzes e foque em meus olhos, querida! - Ele a fazia sorrir, rir, gargalhar com a entonação dramática dada a cada frase dita. E os braços que cismavam em se mover num ballet sinuoso e hipnótico!? Vc é tão lindo, Giulia pensara. - Já me disseram isso, amor, mas, agora, vamos direto ao ponto. - Ele piscara. - O que pretende fazer com essa coisinha aí dentro? Sabe que ele precisa se alimentar não é? - Ela assentia com a cabeça, acuada como um bichinho indefeso. De seus olhos, lágrimas escorriam pelas faces lívidas. - Eu sei, criança. Eu sei. - Havia ternura na voz da borboleta gigante. - Vou te contar um segredo. - Ele arrastara a cadeira para perto de Giulia. Tão perto que ela chegara a sentir a fragrância de Sândalo e Cedro. - Já tive o mesmo probleminha que o seu.

- E vc se curou??? - A boca entreaberta, os olhos exaustos aguardavam por uma resposta. - Vc...- Ela hesitara quando o tocara na mão pousada sobre os lençóis. - Vc não...- Sua voz embargara, entrecortada por fortes soluços. - Não conseguiu se curar. - Gemera de dor.

- Não. Não consegui. - Respondera com pesar. - E é por isso que estou aqui, meu anjo. - Giulia o fitava e notara que o tom de sua voz e as luzes haviam mudado. A voz era mais grave e contida e as luzes, um pouco menos ofuscantes. - Não vou permitir que cometa o mesmo erro que o meu. Vc conhece o Outro Lado! - Giulia fez que sim. - Pois então! Aprume-se! Vá ao médico, tome remédios, chás, poções mágicas. - Ele fora interrompido pela risada histérica de Giulia que, aos poucos, transformava-se num sorriso generoso. - Faça o que tiver que fazer, mas não se entregue. Não se entregue, meu anjo. Eles estão por todos os cantos. - Falara baixinho, ao pé do ouvido de Giulia.

- Eu sei...- Ela balbuciara, olhos que fitavam tudo à sua roda. - Eu os vejo e ouço. Querem que eu morra.

- E vc vai permitir que eles vençam??? - Dissera-o enquanto erguia-se imponente, deslumbrante, resplandecente. - NUNCA! Por William Wallace e pela Escócia! FREEDOM!

Giulia uivava de rir, batendo palmas, dando vivas.

- Eu também amo William Wallace, a Escócia, os Celtas, os irlandeses, os vikings...ah! - Uma pausa para tomar fôlego e continuara, entusiasmadíssima, já de joelhos sobre o colchão. - E os italianos também! Como sabe de tudo isso??? A gente se conheceu quando...?

- Quando eu era uma Drag Queen famoséeeerrima e divava nos palcos da Broadway??? - Ele erguera as sobrancelhas e lançara-lhe um olhar dramaticamente ousado. - Não, meu bem. Certamente que não. - Trocaram olhares e risos, mãos que se entrelaçavam como grandes amigos de infância. - Preciso ir. Não disponho de tanto tempo assim.

- Não! Não vá! Eu não quero ficar sozinha. Eles...eles vão voltar e as vozes não param e meu filho precisa comer e eu fui traída pelo canalha que agora só quer beber e...

- AAAAAII! - Gritara. - NÃO DÁ PARA AGUENTAR! - Giulia esparramava-se entre as almofadas, rolando de um lado ao outro da cama, dando tapas na coxa, socando o travesseiro, rindo-se absolutamente descontrolada. E, agora, chamara a atenção da tia que, de plantão durante seu exílio, no quarto ao lado, havia caído no sono a despeito de se embriagar com litros e litros de café, pois deveria manter-se ativa, por Giulia, por Enzo e pelo filho, totalmente em desalinho. Ocorrera-lhe que o café possuía um gosto agradavelmente estranho. - Como vc reclama, meu amooorr! Controle-se! Vamos...inspire e expire. Pare de rir...- Ele a sacolejava mansamente, com as mãos em seus braços e aqueles olhos verdes com estrelinhas douradas que a fitavam com saudades da época em que ainda era vivo. - Menina! - Pronunciara num tom dramático. - Acorde! - Giulia agora apoiava as mãos em seus ombros, de joelhos, próxima a ele. Os cabelos emaranhados, o corpo desnutrido, as feições repletas de desesperança causavam uma profunda dor ao visitante alegre. - Não brinque com o perigo. Não invoque forças que desconhece. Não tente se lembrar do que foi apagado. Não deixe de viver sua vida enquanto tem apoio. Seus tios te amam! Teu homem te ama, diaba! - Outro riso histérico de Giulia que jogara a cabeça para trás e somente não caíra porque ele a segurou firme em seus braços finos, mãos trêmulas. - Dê uma chance à felicidade. Muitos não têm o que vc possui. - Ela baixara a cabeça, chorando como uma criança perdida. Ele a erguera com o indicador em seu queixo fazendo-a olhar para dentro de seus olhos. - Muitos sofrem desta doença e morrem sozinhos, sem amparo, na escuridão, no vazio. Outros, escolhem o caminho errado e pulam do penhasco como gaivotas, pensando em encontrar a paz e quando abrem os olhos...pluft! As Sombras, as gargalhadas terríveis e constantes, o cheiro podre de corpos em decomposição, os castigos, as humilhações, as violações de seu corpo...

- Para. Por favor...- Ela suplicara, enxugando o rosto com o dorso da mão. Sentava-se na beirada da cama, pés descalços, mãos unidas sobre as coxas cobertas por sua longa camisola estilo "Morro dos Ventos Uivantes". - Eu conheço o Outro Lado.

- Mas parece que se esqueceu e quer dar uma voltinha por lá, dondoca! Portanto! - Ela o fitara, apertando os lábios para não voltar a rir desabaladamente. Ele era absolutamente encantador e estonteantemente lindo com aqueles cabelos loiros, compridos, escorridos, primorosamente presos por um elástico, num rabo-de-cavalo, e as sobrancelhas grossas, alinhadas, bem penteadas, a boca rubra e fina e a pele acetinada. - Ei! Olhe para mim! Foca nos meus olhos, querida. Eu sei. Eu sei que sou lindo. Já fui mais. Já fui menos...- Dera de ombros. - Mas, agora sou radiante. Portanto! - Assustara-se com seu próprio tom de voz. - Perdão. Por vezes, me exalto. São tantos com problemas nos dias de hoje...- Divagara.

- Ei! Foca em mim. Olha nos meus olhos! - Eles riram em uníssono. Abraçaram-se e naquele abraço Giulia percorrera os caminhos tortuosos pelos quais ele havia passado. A queda de uma ponte, o corpo destroçado, a saída do corpo, a dor, a desorientação, o medo, a fome, o frio, a solidão, a noite escura como o breu, as Sombras...- NÃO SE ATREVA A IR EMBORA!

- FOR GOD SAKE! Não grite nos meus ouvidos!

- Não vá...

- Preciso. E vc, trate de dar uma chance àquela coisinha fofa que te ama ou eu mesmo terei de vir aqui para consolá-lo! Ai, meu Pai! - Fizera o sinal da Cruz. - Me perdoa porque eu pequei. - Revirava os olhos exageradamente. - Mas, ele é um pedaço de bom caminho. - Giulia, enrubescida, fez que sim. Suspirava, lembrando-se dele e da noite da festa no inferno. - Ora bolinhas! Esqueça. Bobagem. Já foi! Pronto! Sumiu! Corta essa! Nem vem que não tem! Dá um tempo! Chega pra lá! Bota pra quebrar! Para de palhaçada! Comigo não, violão! Nem pensar! Deixa disso! Ai, ai, ai! Rapadura é doce mas não é mole não! Chega! Enough! Basta! The End! Abra suas asas! Solte suas feras! Caia na gandaia! Let it be! - Giulia voltara à crise de risos, enfiando o rosto no travesseiro, abafando o som das próprias gargalhadas estridentes. - Deixa de ser boba, mulher! - Advertira num tom divertido enquanto a via a se contorcer de tanto rir. Sentiria saudades dela. - Pega o que é teu por direito! Viva la vida! Carpe Diem! Carpe Noctem! Carpe Omnium! Carpe o que vc quiser, meu bem! Mas trate de tirar aquele homem ma-ra-vi-lho-so da vida de cachaceiro porque...- Ele chegara a pensar se ela poderia rir tanto no estado em que se encontrava. Às favas! - Se vc não tirar aquele deus grego dos bares e não o trouxer para esta casa, eu mesmo voltarei e assombrarei seus dias, suas noites, baterei na janela como Cathy atrás de Heathcliff, aquele insensível! - Soltara o ar pela boca, elevando os olhos culposos aos Céus.

- Por Deus! Vc também gosta da história deles! - Ela voltara-se a ele como se alguém a tivesse puxado para trás, arrancando-a do travesseiro, girando-a no ar. Seus cabelos cobriam-lhe as faces agora rosadas quando dera-se conta de que ele havia sumido. - NÃO! FICA! POR FAVOR! - Ela implorava, olhos súplices que se moviam a todo instante, vasculhando o quarto, aguardando por seu retorno. - Fica...- Pedira em uma prece. Ouvira, ao longe, a voz aguda, afinada, sentida. Quase a réplica de Kate Bush.

- Ooh, let me have it. Let me grab your soul away. Ooh, let me have it...- Ela cerrara os olhos e duas lágrimas furtivas escorriam por seu rosto inexpressivo. A voz se fundia ao zumbido do ventilador de teto e, como poeira ao vento, sumia, aos poucos. - Heathcliff, it's me, i'm Cathy. I've come home...volte pra casa, Cathy. Pra casa...- Até findar.

- Qual o seu nome? Vc nem disse seu nome. - Giulia, de volta às cobertas, choramingava. - Vc é a minha borboleta. É. - Rira baixinho. - Minha linda borboleta colorida. - Entristecera-se num repente. Uma lufada de ar quente tocara seus cabelos derramados, esparramados, como as asas de um corvo, sobre o travesseiro branco de plumas. - Afastem-se de mim. Agora não estou só. Vcs não podem me tocar. Meu filho me protege. Meu Raio de Sol. Sunshine vai viver! Eu vou viver! EU...VOU...VIVER! - Seu berro ecoara pela casa e então ela voltara os olhos ansiosos à porta que se abria violentamente. Não é vc, constatara, amuada. Imaginara a "Drag divina" reluzindo em suas roupas majestosas, convidando-a dançar e a cantar "I Will Survive!", de Gloria Gaynor.

Era sua tia, incansável, infalível, inexorável e arfante, atravessando o batente da porta, mãos trêmulas que apoiavam a bandeja de prata com um suculento e fumegante prato de sopa de feijão à sua espera.

- Até que enfim! - Celeste bufava, elétrica, cafeinada, eletrizante, olhos acesos, narinas que captavam um cheiro de Cedro e resquícios de...

- Sândalo. - Giulia sorria satisfeita, salivando, olhos fixos no caldo marrom chocolate. - Ele tem cheiro de Sândalo, tia.

- Uh-hum...- Ela assentia com a cabeça e aquele jeito de mover o pescoço quando estava curiosa demais ou extremamente irritada, a ponto de explodir. Felizmente, estava curiosa. - Vamos lá! Conte-me tudo sobre essa borboletinha que me dopou enquanto eu tentava me manter acordada.

- Não me diga! - Giulia estava perplexa e faminta. Os olhos inquietos que aguardavam a chegada da colher à sua boca.

- Digo sim, meu bem! Uma borboleta muito abusada essa. - Giulia abrira a boca desmesuradamente. Deixa que eu pego a colher, tia. Pelo amor de Deus! Tô com fome. - Ah! Que linda! - Celeste dera risinhos sinfônicos que se espalhavam pelo ar. Giulia estava prestes a tomar-lhe à força a colher de sua mão. - Abre a boca para o aviãozinho entrar...- Cantarolou.

- Ai, tia! - Giulia revirava os olhos, enrubescida, lembrando-se dos tempos de sua infância feliz naquela casa, diante da mesma mulher. Ou...quase a mesma. - Já não tenho idade pra...

- ABRA A BOCA! - Giulia obedecera, de imediato. Aqueles olhos severos custavam a aparecer e quando surgiam, o melhor a ser feito era obedecer. - Muito bem! Tá gostosa? Fui eu que fiz! Fiz com tanto amor! - Arquejara de cansaço e impaciência. - Ai, que vc nunca se decidia a comer...- A cabeça de Giulia balançava com rapidez enquanto a sopa descia, quente, turbilhonada, angustiada, pelo esôfago, numa viagem fantástica até o estômago. - A última colherada pra-ras-par-o-prá-tô! Vamos lá! Olha o aviãozinho! - Giulia se apiedava da tia visivelmente exaurida. Sorriria se não estivesse entalada com a colher em sua boca. Engolira a última fração do caldo com dificuldade. Pensara em enfiar o dedo na goela assim que ela saísse do quarto e pôr tudo para fora...

- Deus! Comi demais. - Gemia, mãos na barriga, sentia-se inflada. - Está de parabéns! - Batia palmas, numa bizarra euforia. - Comeu tudo! - Estava um caco, Celeste. As sensações, os sentimentos colidiam-se dentro de seu peito cansado. Contivera as lágrimas ante a criança que, em breve, cuidaria de outra criança. E se ela não estivesse ali para ajudá-la? E se seu filho não retornasse ao mundo dos sóbrios? E se Giulia ficasse sozinha num mundo cruel, soturno, triste? - Ei! - Exclamara Giulia, deslizando o corpo pesado até a cabeceira, afofando os travesseiros, aliviando suas costas doloridas. - Olha pra mim! Foca nos meus olhos! - Celeste abrira um sorriso. Um daqueles que sempre iluminaram os dias trevosos de Giulia. - Trate de tirar esses pensamentos da cabeça, tia. Isso atrai coisa ruim. É! - Respondera à expressão curiosa estampada no rosto perplexo da tia. - Eu aprendi com meu amigo que a gente precisa viver o Agora porque, o Amanhã, talvez não exista. - Celeste secara o rosto úmido de lágrimas, deslizando as mãos que se cruzaram, abaixo do queixo, em prece.

- Bendito seja esse rapaz! - Sua voz era grave.

- O Homem Borboleta. - Ela acrescentara, bocejando.

- Bendito seja o "Homem Borboleta". - Celeste falara baixinho, enquanto cobria o corpo da filha que guardava seu maior tesouro dentro de si.

- A senhora precisava ver as luzes dentro...- Outro bocejo. - Dele. Não vou morrer, tia. - Celeste assentira com a cabeça, ajeitando-lhe os travesseiros, alisando a fronha. Num repente, Giulia alcançara aquela mão santa, beijando-lhe o dorso, roçando-o em seu próprio rosto. - E vou dar um jeito no seu filho imbecil...- Dissera em uma voz entaramelada, mesclada a suspiros e bocejos. Cerrara os olhos pesados de sono.

- Faça isso, filha. - Celeste sussurrara ao ouvido dela, já adormecida. Afagava a barriga, exultando em sentir os pezinhos de seu neto que pareciam saber exatamente onde sua mão estaria. - Faça isso, meu amor. Eu te imploro. Salve meu filho. - Lançara-lhe um olhar devastado. - Sunshine...- Agora, conversava com o neto, mãos espalmadas sobre o ventre de Giulia, olhos cerrados, sorriso no rosto cheio de luz. - Eu nunca pensei que amaria alguém como eu amo vc, querido. Ouça o que a vovó tem a dizer. - Uma longa inspiração e uma expiração suave, lenta. - Que nenhum mal te atinja. Que somente a Luz te cerque. Que a Paz esteja contigo. Abençoado seja. - O bebê dera uma cambalhota, imerso no líquido agora cheio de vida. - Te amo pra sempre...Sunshine. Somos eternos e, um dia, eu te encontrarei.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 19/10/2019
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