LIBERTATEM - capítulo 01

Liberdade é conceito tão difuso, confuso, que pode ser abordado de variadas maneiras, sem que se fale, necessariamente, de sua fundamental condição.

Lembro-me de personagem interessante, no cartoon da Mafalda, criança muito pequena, que, significativamente, chamava-se Libertad. Sempre brincavam com a pequena liberdade.

O bairro da Liberdade, em Sampa, recheado de japoneses, nasceu da praça, que tem o mesmo nome, e para chegar ali, em priscas eras, o vivente tinha de passar pela cadeia pública e o Largo da Forca. Dizia-se que só atingia a liberdade, quem passasse pela cadeia e forca.

Em pleno governo militar, o jornal Movimento, num quinze de novembro, estampou em sua capa o estribilho do hino à proclamação da república, que diz: “Liberdade, Liberdade! Abre as asas sobre nós!” O DOPS mandou recolher tudo, imediatamente. Liberdade é subversão!

Nessa época, uma propaganda dizia: “Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser. Não usa quem não quer.”

Na zona rural de uma cidade próxima a Curitiba, fundaram um retiro espiritual (ao menos era o que pretendiam), e lhe deram o sugestivo nome: “ASHRAM LIBERDADE”. Fui visitá-lo, só por curiosidade, e logo na porteira de acesso encontrei dois carros patrulha, impedindo nossa passagem. Fomos informados de que uma diligência estava em andamento, para libertar pessoas mantidas, ali dentro, em cárcere privado. Voltei pra casa, refletindo a respeito.

Por essa época, ocupava parte do meu tempo na atividade musical, e essa dedicação só não era integral, porque outra parte eu passava na cadeia ou estudando. Explico melhor:

Eram tempos difíceis, em que os militares controlavam tudo com mão de ferro, e todos os artistas cabeludos, como eu, com os quais antipatizassem, viviam sendo detidos, à base de safanões ou coisa pior. Eu era habitué desses “eventos”. Quanto ao estudo, basta lembrar que ainda não existia internet ou computador pessoal, então tudo era feito à base de pesquisa em livros e datilografia, sem direito a choro ou mi mi mi. Frequentava bastante a biblioteca, e numa tarde chuvosa, em que já terminara meus compromissos estudantis, decidi prolongar leitura alternativa por lá mesmo, na esperança de não ter de enfrentar inundação certa. Peguei um romance obscuro sobre a conjuração mineira, e, mal abri o livro, caiu de dentro papel grosso, com brasão cinza, representando barras de uma prisão e dizeres: “LIBERDADE LIBERTATA”.

Examinei como pude a insólita figura, e estranhei que tivesse uma palavra em português e outra em (imaginei) latim errado. Pus o desenho no bolso e continuei a leitura durante mais de duas horas, até que o chuvaréu amainou, permitindo perambular pela rua sem ser levado pela enxurrada. No ponto de ônibus esperei o terceiro coletivo, mas ao tentar embarcar, o cobrador anunciou que o veículo seria recolhido por problemas mecânicos. A turma endoidou, começou um tumulto, e fui parar no chão. Resolvi sair andando e encarar os vinte quilômetros até em casa no pé dois. Chovia pra boné! Acho que até minha alma estava encharcada.

Alguns metros adiante, vi mulheres acotoveladas, tentando se abrigar do temporal. Eram damas da noite, e seus gigolôs as empurravam de volta à chuva. Era só pena que voava pra todo lado. Quando me aproximei, tentando atravessar o fuzuê, apareceram os meganha, dando bordoada. Entrei na dança e fui jogado num camburão, sem nenhuma suavidade.

Estávamos em cinco ali dentro. Molhados, suados, cheirosos, jogados de um lado ao outro pelo solavanco (proposital) do carro, a caminho do distrito. E um dos conviventes de ocasião, apesar do transtorno do momento, resolveu pungar meus bolsos na caradura. Reagi, mas o bicho era forte e grande. Todavia, eu não tinha nada, além de trocadinho para o ônibus, e acho que foi por isso que ele, ao ver o brasão (que achei na biblioteca), irritado, resolveu dizer pro sargento que eu era subversivo e pertencia a uma organização clandestina.

O homem me separou do resto e fomos à sala do delegado geral do departamento.

- Tá querendo o que comigo, sargento?

- Atividade subversiva, delegado.

- Algema o sujeito aí na cadeira e deixa o resto por minha conta.

Fiquei tanto tempo esquecido, que acabei dormindo. Fui acordado com um carinhoso safanão, e ainda tonto, vi meus documentos espalhados na mesa, junto com enorme folha de antecedentes criminais (eu já havia sido preso várias vezes, por ser cabeludo e artista). O olhar dele indicava, claramente, que me considerava um zero à esquerda. Esperei o pior.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 25/10/2019
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