LIBERTATEM - capítulo 03
Aquela papagaiada de mudança de dona Adélia, minha vizinha, não pude engolir.
Lembrei que o padre da paróquia, que ficava a duas quadras de casa, era amigo da senhora, e fui até lá. A igreja estava vazia, mas o sacristão limpava o altar.
- Oi seu Rafael! O padre Gino está aí?
- Hoje de manhã, bem cedo, ele saiu com dois homens, dizendo que tinha um assunto sério a resolver, e que não sabia quando voltaria. Pediu para chamar o padre substituto.
- Por acaso, esses dois homens eram grandes e estavam de terno preto?
- Como é que você sabe?
O cheiro da carniça estava ficando forte. Eu tinha de entender o que acontecia.
Olhando, absorto, para um nicho lateral, vi símbolo parecido ao desenho da biblioteca, e logo acima, duas letras “L”, em dourado. Como assim? Na igreja?
Tentei ligar uma coisa à outra, mas nada. Refletia, quando senti picada na nuca, e só vi que tinha adormecido, ao despertar, zonzo, diante do delegado, na mesma delegacia.
- Devo entender que você está procurando encrenca?
- Doutor! Fujo de encrenca como o diabo da cruz, mas só dou de cara com problema. Computador, telefone, vizinha e até padre? Quero viver minha vida, mas tudo desaba em volta.
- E quanto àquela bobagem da LIBERDADE LIBERTATA? Desistiu de saber?
- Pra ser sincero, não! Só que não consegui nem uma vírgula de informação a respeito.
- Nem na igreja?
Ele sabia do que eu tinha visto no nicho, na parede. Como?
- Olhe doutor! Nem sei o que lhe dizer, porque me sinto perdido nisso tudo.
- Então não se ache, e, de uma vez por todas, esqueça essa porcaria, pro seu bem.
- Posso ir agora?
- Nada disso! Desta vez são duzentos e sessenta memorandos. Pode começar.
Terminei quase à meia noite, e acabei cochilando ali mesmo, na mesa. Fui acordado pelo delegado às seis da manhã, com um tapa bem dado, daqueles que estalam no ouvido.
- Bom dia, elemento! Resolveu pernoitar aqui, é?
- Nem notei, doutor. O cansaço foi muito.
- Recomponha-se e vá pra casa. Não quero vê-lo aqui por um bom tempo.
- Só uma dúvida, delegado. Como vim parar aqui desta vez? Vim desmaiado?
- Você questiona demais. Isso é perigoso. Fique quietinho no seu canto, e sobreviva.
Não foi conselho, mas aviso, apesar da sutileza.
Passei pela igreja, e soube que padre Gino fora transferido de paróquia, repentinamente. O nicho, onde vi o desenho, tinha placa: EM REFORMA, e o novo padre não me recebeu.
Estava de saco cheio com tanto mistério, encenação, cana e trabalho cansativo pacas.
Fui pra casa e me joguei no colchão, mas não tinha sono. Só não saí pra caminhar porque as pernas amoleceram. Comi um sandubinha e, na última mordida, mal ficava de olho aberto. Cambaleei até o quarto, e quando ia mergulhar na cama, a campainha.
Quase caindo de sono fui atender, e ao abrir a porta, um susto razoável.
- Oi Natan! Vim conversar um pouquinho, tá?
Linda morena, quase mulata, cabelos crespos e olhos verdes, baixinha e sensual.
- Por acaso nos conhecemos? Porque não me lembro de já tê-la visto antes.
- Não! Chamo-me Thráfsma! Vim conversar.
Conversar? Difícil de engolir o papo da lindona. Cheirava a armação.
- Você é uma graça, mas escolheu a hora errada. Estou morrendo de sono.
- Isso se ajeita. Venha cá!
Fez-me sentar, pôs minha cabeça em seu colo e apertou minha nuca com suavidade. Ao invés de sono, passei a me sentir disposto e alerta. Gostoso sentir aquela massagem, mas ao invés de algo sensual, veio uma vontade de me movimentar, muito.
- O que você fez comigo, menina?
- Energizei alguns pontos nervosos. Perdeu o sono?
- Sem dúvida! Qual sua profissão?
- Temos muito que conversar, para que possa entender quem sou e o que quero.