'A PROCURA' - DO livro Giulia- Quando a Luz se apaga

Fernando encarregara-se das buscas pessoalmente. Giulia nunca o vira tão desorientado e ao mesmo tempo tão compenetrado e seguro, embora notasse, em raros momentos, uma fadiga intensa que o levava a sentar-se em alguma cadeira ou sofá próximos a ele, para, logo em seguida, com uma mal disfarçada dor no peito, um tanto cambaleante, pegar as chaves do carro e voltar a circular pelas ruas daquele bairro que passara a ser o foco de um triste acontecimento.

Enzo, um dos homens mais conhecidos e populares e queridos por aquele povo encontrava-se desaparecido havia dois dias e fora visto, pela última vez trajando apenas uma cueca samba-canção de cor rosa, segundo o depoimento valioso - e único - de uma vizinha que, na opinião de Giulia, poderia tê-lo impedido.

- Por Deus! Como a senhora vê alguém com cueca pela rua e acha isso normal??? - Dirigia-se à mulher de meia-idade com um semblante frio e impassível que a fitava com um certo ar de desprezo. - Eu sei que a senhora é nova por aqui, mas não é burra. Sabe que poderia ter feito algo. Eu sei. Eu sinto. A senhora simplesmente deixou que ele fosse embora. - Aumentava o tom de voz a cada passo dado na direção dela. Inclinava-se sobre ela com a gana de espremer-lhe o pescoço. - Qual o propósito? Por que deixou que ele descesse essa rua, sorrindo e falando sozinho??? Eu não sei! Ainda não!

- Giulia...- Fernando a prendia pelo braço, num tom de aviso.

- Me larga! Ela sabe de mais coisa que a gente não sabe! Vc não vê??? Não consegue ver no olho dela???

- Giulia! - Ele estava a ponto de ultrapassar seus limites enquanto ela batia em seu braço, olhos esbugalhados, falava entre dentes. - Eu ainda não sei, mas, quando ele voltar...ahh, meu bem, e ele vai voltar, eu mesma virei aqui e hei de descobrir o que há por trás desse seu sorrisinho cínico. - Nando, conquanto sentisse que Giulia não estava totalmente sem razão, querendo afastá-la dos olhos curiosos que começavam a se aglomerar à sua roda, sem delicadeza ou paciência, arrastara-a pelo braço até o portão da casa lilás, dirigindo à mulher com os olhos negros e semicerrados, mão cravada no cabo da vassoura, um ligeiro aceno de desculpas. - EU MESMA VIREI AQUI PRA DESVENDAR SEU SEGREDO! TÁ ME OUVINDO??? - A SENHORA NÃO ME ENGANA! - Berrava por entre os arbustos do jardim de sua tia, na ponta dos pés, debatendo-se nos braços de Fernando que dispensara bastante força física para domar aquele ímpeto tão repentino quanto bizarro, em desmascarar uma desconhecida. Aos prantos, cabelos colados ao rosto pelo suor e lágrimas, praguejava e xingava palavrões que ele jamais ouvira de sua boca, mesmo quando ainda eram moleques, no campo de futebol. Ele achava aquilo tão estranho quanto tudo ao seu redor. Parecia estar em um pesadelo e, por Deus, largaria tudo e tomaria toda a cartela de calmantes receitada à sua mãe se o censo de responsabilidade e o amor que tinha pelos seus não fosse mais forte do que a vontade em se entregar. Um brilho de fúria lampejara nos olhos de Giulia. Sua expressão tornara-se exageradamente ofendida. - Eu poderia ter conseguido ver alguma coisa, Fernando! Ela esconde alguma coisa, FERNANDO! - Seus olhos decepcionados passaram dele para a vizinha que fechava numa sombria lentidão o portão recentemente pintado de branco. - NÃO ACABOU AQUI! NÃO ACABOU AQUI, SUA FALSA! CRETINA! - Apontava-lhe um dedo acusador enquanto vislumbrara um sorriso macabro a se formar no rosto esquálido e ovalado da mulher do outro lado da calçada. - Quando tudo acabar, eu mesma vou arrancar fio por fio daqueles cabelos de fogo.

- O que ela fez pra vc!? - Perguntara-lhe Fernando, perplexo, abraçando-a, acalmando-a e ao bebê que se mexia, inquieto lá dentro de seu mundo azul e tranquilo.

- Não sei. - Falara baixinho, esfregando as faces transtornadas nos botões da camisa dele. - Eu vi...vi...eu sei que eu vi...ah! Deixa pra lá. - Erguera os olhos súplices a ele e, agarrando-se à gola de sua camisa, implorou. - Não me deixa enlouquecer.

***

Fernando mantivera-se à frente de tudo, organizando equipes de busca. Fora então que, tardiamente, reconhecera o verdadeiro significado da palavra "amizade". Os poucos que se agregaram a ele, engajados em encontrar seu pai não pertenciam ao grupo dos que passavam as noites em claro ao seu lado, mergulhados em orgias e bebidas, muitas das vezes, financiadas por ele. Francamente decepcionado com suas atitudes no passado e fortemente emocionado com o que via ao seu redor, agradecia a todo instante aos que estavam ali, presentes, somente por ajudar sem nada receber em troca. Soubera que alguns deles haviam se afastado de seu convívio justamente por não concordarem com a vida desregrada que levara por muito tempo até que a paternidade o fizera valorizar o lar que sempre o acolhia e à mulher, com um jeitinho de menina que dele jamais desistira.

Os poucos, aos poucos, tornaram-se muitos. A cada momento, surgiam novos rostos, humildes, sinceros, dispostos e novos relatos sobre um homem que Fernando desconhecia por completo.

- Quando estava prestes a desistir de tudo, foi ele quem me deu um emprego como garçom no primeiro restaurante de vcs. - Confessara, orgulhoso, um velho amigo de Vincenzo. - Vc era ainda um menino. Não se lembra de mim. Foi ele quem me ensinou o que hoje eu sei. Com o salário que ele me pagava e as gorjetas que ele me oferecia, sempre além do que eu merecia, paguei a faculdade de minha filha, as despesas médicas com a minha já falecida esposa. Ele me devolveu a dignidade. Graças a ele, hoje ela tem um ótimo emprego, um bom marido e um filho, meu neto, a grande alegria da minha vida. Devo muito ao seu pai, Fernando. E se eu tiver que passar meus dias e noites atrás dele, ainda será pouco. Diga o que eu tenho que fazer. Estou pronto. - Fernando o ouvira atentamente, palavra por palavra, os olhos cheios d'água e a voz embargada em sua garganta. Sem dizer palavra, abraçara aquele estranho com um incômodo nó no pescoço e uma quase incontrolável vontade de chorar como uma criança, como muitas vezes o fizera no ombro do homem desaparecido. A cada história ouvida, sentira seu coração bater mais forte e ao mesmo tempo, mais fraco. Sentia saudades do pai. Queria o pai ali, com ele. O pai que escondera dele, de Giulia e, certamente, da própria Celeste, o bem que espalhava por onde passava. Quando mais jovem, ouvia seu pai a lhe dizer que o que uma mão faz a outra não deveria saber. Nunca dera muita atenção às palavras soltas do grande amigo que o ensinara muito mais do que gerenciar seus negócios com competência e respeito ao próximo. Arrependia-se, agora, amargamente, de não ter passado mais tempo ao seu lado, ouvindo-lhe os sábios conselhos, as piadas repetidas, os contos fantasiosos de sua infância.

A rua o chamava. Os falsos amigos o incitavam a viver a vida em plenitude enquanto seu pai lhe sussurrava que a grande magia da vida é o Amor e que somente em instantes de desespero é que se conhecem os verdadeiros amigos.

- O senhor tá certo, pai. - Murmurava ao volante, olhos fixos na estrada, tendo dois companheiros de jornada no banco traseiro. - Onde o senhor estiver, eu o encontrarei. Me espera, pai. Me espera. - Os homens lá atrás, encolhidos no banco de couro, entreolhavam-se, em um silêncio reverencioso, olhos atentos às ruas por onde passavam e repassavam durante as noites escuras como o breu e frias como as extremidades do corpo de Fernando que, sem perceber, cantarolava a Oração de São Francisco, guiando o carro com um olhar concentrado, focado e uma pitada de pânico diante de cada corpo estirado no asfalto que surgia, num repente, cercado por uma mórbida multidão. Então, pisava fundo no freio, largava a porta do carro aberta e o motor ligado e, como um louco, empurrava os carniceiros de sua frente. O suor gotejava de sua testa franzida, punhos cerrados e um tremor que lhe percorria o corpo por inteiro. Seus olhos cerravam-se numa oração. - Graças a Deus! Não é meu pai. - Recuperava o autocontrole , elevando os olhos aos Céus, voltando a respirar com maior naturalidade. Por duas noites inteiras, percorreram a cidade. Delegava aos pequenos grupos formados por dois a três homens, a função de bater de porta em porta à cata de pistas, enquanto obrigava-se a procurá-lo em hospitais, pronto-socorros. Recorrera à ajuda do Corpo de Bombeiros e, na delegacia onde preenchera o Boletim de Ocorrência que fora expedido e repassado com extrema eficiência a outros órgãos responsáveis por "Desaparecidos", notara que até mesmo entre os policiais, seu pai era bem quisto.

- Um homem como poucos. - Declarara o delegado que contara sua própria história a Fernando que, mais uma vez, reprimira suas emoções. Negava-se a se descontrolar durante as investigações. Faria-o em casa. Choraria até que a última lágrima secasse, trancafiado no banheiro, chuveiro ligado, debaixo do forte jato d'água onde poderia urrar de dor e saudade sem ser ouvido por Giulia ou por sua mãe que, a cada volta dele ao lar, sem o grande amor da vida dela, apagava-se como uma vela bruxuleante sob os caprichos de um vento vigoroso e incessante. Pensara na mãe, deitada na mesma cama onde ele, por muitas vezes, se abrigara entre os pais com medo dos trovões, e seu coração doía. Uma dor palpável, tão forte que ele chegava a alisar, com a palma da mão, o próprio peito. Os olhos dela vidrados no teto do quarto, sua boca sem cor, o rosto tão liso e sem expressão que parecia um perfeito manequim de cera, as mãos cruzadas logo abaixo dos seios, tendo ao seu lado, sempre atenta e alerta, sua fiel escudeira. Giulia parecia tão fraca quanto sua mãe, no entanto, ela sorria para ele, confiante, conquanto calada. Não que não quisesse falar com ele. Desabafar, chorar em seu colo. Cuidar dele, tomar a dor dele para si. Apenas não conseguiria se expressar sem que uma torrente de sentimentos confusos mostrasse o inferno onde mergulhara desde que seu tio partira, sem deixar pistas. Ou havia deixado? Ela possuía um plano e se os esforços de Fernando não surtissem efeito, ela o colocaria em ação. Certamente, custaria-lhe algo, mas, estaria disposta a pagar qualquer preço pelo homem que lhe dera vida, alimento, paz, dias de intensa felicidade. Fernando levara um susto quando as mãos ásperas do delegado Alfredo tocara, de leva, seu punho contraído.

- Aceita um café, uma água, refrigerante? - Fernando recusara a gentileza com um rápido e rude movimento de cabeça. Pelos olhos astutos e experientes do policial perpassara um lampejo de tristeza. Possuía anos no trato com pessoas aflitas, desesperançadas, enraivecidas, transtornadas, revoltadas.Via nos olhos do menino assustado à sua frente, alguém que estava prestes a desistir da luta. Talvez, por isso, continuara a falar. - Meu filho tinha acabado de nascer quando eu estava prestes a me formar em Direito. Não poderia arcar com as despesas. Tinha decidido trancar a faculdade e procurar um emprego e largar o sonho que acalentei durante toda a minha vida. Fazer parte da Polícia Civil estava no meu sangue. Mas, meu filho deveria vir primeiro. Era uma questão de prioridade. Então, já decidido, entrei no pequeno bar da Rua Sete. - Fernando assentira com a cabeça e um sorriso nostálgico no rosto absolutamente transformado. Barba por fazer, olheiras profundas e um ar de desilusão misturado a uma esperança persistente. - Acho que foi o primeiro bar que ele construiu. - Outra vez, Fernando assentira com um lento movimento de cabeça. Não poderia falar, pois, se falasse, de certo, começaria a chorar diante de alguns poucos plantonistas que ouviam o relato do chefe. Isso nunca! Vou chorar em casa. Sou forte. Arquejara, contendo as lágrimas na garganta. - Era simples e acolhedor. E, quando ele, repentinamente surgiu à minha frente, puxou uma cadeira e se sentou de frente para mim, eu sentia que havia algo de especial naqueles olhos que riam. Cruzou as mãos sob o queixo e apoiou os cotovelos na mesa de madeira. Ainda me lembro do jeito como ele me olhou. - O delegado cerrara os olhos e esboçara um sorriso triste. - Ele me disse, num tom solene, quase cômico, que um homem de verdade jamais deveria desistir de seus sonhos, por mais impossíveis que pudessem parecer. Eu não o conhecia, Fernando, e ele parecia ler meus pensamentos. Eu estava prestes a largar tudo. - Nesse ponto do relato, o delegado Alfredo se emocionara e, fingindo ter um cisco nos olhos, piscara-os por diversas vezes, secando-os discretamente com um lenço de papel. Tossira, limpando a garganta e, somente então, prosseguira, com a voz rouca, olhos baixos que encaravam a caneta entre seus dedos. - Vc acreditaria se eu te dissesse que ele preencheu um cheque em branco e me deu, sem ao menos saber o meu nome? - Fernando mordera os lábios e deixara duas únicas lágrimas escorrerem por seu semblante endurecido. - Ele não permitiu que eu abandonasse tudo. Pagou os últimos meses da faculdade e, com relutância, aceitara minhas condições. Tornamo-nos grandes amigos a partir daquele momento e a nossa amizade se fortaleceu quando eu, enfim, pude, com o meu trabalho dentro da Polícia Civil, começar a pagar, em parcelas módicas, o que ele me emprestou sem nada pedir em troca. - Seria cômico se não fosse trágico, ver dois homens fortes, belos, distanciados pela idade, esforçando-se por não demonstrarem as fortes emoções que os faziam arquejar. Tosses e pigarros foram divididos entre os dois, cada um, num canto da mesa de metal, com gavetas tão cinzas quanto as paredes daquele Departamento. - Fernando. - O delegado, enfim, recomposto, dissera num tom resoluto. - Eu mesmo vou me dedicar a este caso. Pode confiar. Nós iremos encontrá-lo...- O homem pareceu ler os pensamentos nos olhos desolados daquele filho calado, corpo tragicamente encolhido. - Vivo. - Completara, olhos fixos nos de Nando. - Vamos encontrá-lo vivo e em boas condições de saúde. Agora...- Tocara, de leve, na mão de Fernando, cujos dedos tamborilavam nervosamente sobre a mesa. - Eu preciso te pedir que vá a um último lugar e não vai ser ser fácil.

***

Chegara de madrugada ao Instituto Médico Legal, acompanhado por um amigo de infância que o amparava com a mão em seu ombro. Não conseguiria cruzar aquelas portas sozinho. Não mesmo. Não conseguiria entrar naquela sala aterradoramente fria, soturna, silenciosa, cheirando a formol e a outros agentes químicos que não soubera, com um olfato apurado, decifrar. Jamais havia lidado com a morte e estava longe de querer pertencer ao mundo da mãe de seu filho que via e sentia a presença dos mortos com uma certa tranquilidade. Naquele momento, diante de quatro corpos cobertos por um fino lençol verde, ele pensara em Giulia e a julgara mais forte, mais apta a estar ali do que ele. - Não. Eu sou forte. Meu pai me ensinou a ser forte. - Falara baixinho para si mesmo. O amigo, ao seu lado, o ouvira sentindo a mesma dor que a dele. Havia passado pela mesma experiência, anos atrás, quando tivera de reconhecer o corpo esfaqueado de sua mãe, assassinada por um amante cruelmente ciumento. Fernando, usando seu lado racional, de imediato, afastara a hipótese de ter que ver os restos mortais dos que exalavam um cheiro de carne em decomposição, talvez, esquecidos por seus entes queridos. Talvez, sequer os tivessem. Um era alto demais para ser seu pai. Outro, baixo demais. O terceiro, gordo demais. Fixara-se tormentosamente, em um corpo estirado sobre a cama de metal, fria, fosca, solitária, com as laterais mais profundas por onde secreções escorriam como esgoto a céu aberto.

Aproximara-se lentamente do homem com uma leve protuberância no abdômen, a mesma altura do pai, as mãos sobre o peito estufado. Chegara a segurar o pano verde com as pontas dos dedos na barra do tecido. Suas mãos tremiam e se congelaram como se estivesse, em meio à subida ao Everest e, sem aviso, uma forte nevasca o atingisse. Ofegante, lançara ao amigo um olhar desamparado.

- Eu não vou conseguir. - Confessara, num suspiro. Baixara os olhos, cheios de vergonha e pavor. Matheus, o amigo forte de corpo e alma, afastara-o com um dos braços enquanto o outro, levantara, de súbito, a coberta. Fernando girava o pescoço na direção oposta, com os olhos apertados de medo. Os ossos estalaram com o violento e incontrolável giro da cabeça para a sua direita. Soltara um grito a contragosto, olhos fechados, músculos do ombro esquerdo retesados. - É ele? - Nunca em sua vida, tivera tanta dificuldade em pronunciar duas palavras. Nunca sentira tanta angústia em aguardar por uma resposta.

- Não. - Matheus dera um riso de satisfação e, a custo, contivera os soluços que movimentavam seu diafragma de forma descompassada. - Não é ele. - Abraçaram-se demoradamente e, enfim, Fernando pudera chorar nos braços do amigo. Chorou de felicidade por não ter encontrado seu pai morto. Chorou pela morte da mãe do amigo que não soubera consolar, pois estava curtindo seu momento " Livin' la vida loca". Chorou pelos que haviam partido e ainda deixavam algo deles ali, preso, naquela sala fúnebre.

Partiram a passos largos, aliviados, quase sorridentes.

- Me perdoa por tudo, cara. Sua mãe...

- Esquece. Já passou. Vamos atrás do seu pai, aquele maluco que me faz falta. - Fernando ouvira o som de sua própria risada e sentira falta dela naqueles dias terríveis. - Ele tá vivo. Eu sei. Eu sinto. - Fernando fez que sim enquanto girava a chave na ignição do carro. Varreria as ruas da cidade até cumprir seu objetivo, sua meta. Encontraria seu pai, vivo, são e salvo.

****

Celeste vivia horas de extrema angústia e horror. Desistira de seu autocontrole quando, por muitas vezes, vira seu filho voltar a casa sem nenhum motivo que lhe desse esperanças de rever o homem de sua vida.

- Vc precisa trazer seu pai de volta! Vc precisa! - Ordenava com os olhos absolutamente distantes dos olhos doces com os quais sempre lhe fitaram. Por mais que Fernando tentasse evitar a crença no sobrenatural, tudo naquele quarto havia mudado para pior. O cheiro de morte, o mesmo que sentira no necrotério, as luzes que tremeluziam constantemente somente naquele aposento. O ar pesado e quase irrespirável. - Volte lá agora e traga seu pai de volta, Fernando! - Ela se erguia na cama e, de joelhos sobre o colchão, dedos enfurnados no cabelo era a visão da loucura em pessoa. - VOLTA AGORA! - Berrava Celeste em meio a um surto violento, sentindo que suas forças se esgotavam. Então, tombava de volta ao travesseiro, inerte, catatônica.

- Mãe...- Ele dissera amedrontado, aproximando-se dela com um receio que jamais pensara em sentir ao lado da mulher mais serena que já havia conhecido em sua vida. - Eu tô tentando. - Falara baixo. - Eu juro, mãe. Me perdoa. Me perdoa. Eu tô tentando. - Seus olhos encheram-se d'água sem ver reação alguma naquele corpo vazio. Fora então que Giulia, extremamente comovida e cheia de dor, pusera-se ao lado dele, apoiando-o pelo braço. Sentia que a qualquer momento, ele próprio desabaria e ela, estaria ali, ao dele, sem deixar que o Mal o tocasse com suas mãos sujas e unhas afiadas. - Mãe, fala comigo. - Murmurava, aflito, recostado à cabeceira da mulher com as feições distorcidas e respiração ofegante. Giulia, num ligeiro aceno de cabeça e um aperto de mão, mostrara-lhe que aquele não seria o melhor momento para conversar com a sua mãe. Os olhos de Giulia escondiam segredos inconfessáveis. - O que tá havendo aqui?

- Depois, amor. Depois - Ela o empurrara para fora do quarto e, quando abrira a porta, antes mesmo dele cruzar o batente, pondo o pé no corredor, ouvira, novamente aquela que deveria ser sua mãe. A voz endurecida. Não uma. Eram duas vozes que se mesclavam uma a outra, Uma em um tom muito parecido com o dela, angustiante e cheio de súplica e a segunda, em um outro tom, acima do dela, terrivelmente aterrorizante por ser grave, quase gutural. Ele voltara os olhos arregalados à fonte daquele som tão inesperado quanto sombrio.

- Trate de trazê-lo de volta ou eu mesmo acabo com vc. - Ele a vira falar entre dentes, olhos diabólicos. Ela inclinara a cabeça com um leve sorriso. As rugas se formando em volta dos olhos estranhamente escuros num riso mudo. - Não volte aqui sem ele, menino.

- TIA! - Exclamara Giulia, num tom autoritário conquanto vacilante, tocando-lhe na testa empapuçada de suor, pusera-se a agir de acordo com sua intuição. - ACORDA! - Tomava, num gesto intempestivo, sob os olhares incrédulos de Fernando que, agora, recostado ao guarda-roupas, deixava-se deslizar até o chão, Giulia, com uma das mãos sobre o ventre e a outra, cravada no crucifixo dado por sua mãe, murmurava fervorosamente, olhos compassivos assaz vorazes sobre o que via além de sua tia. - Crux Sacra sit mihi Lux. Non Draco Sit Mihi Dux! - Repetira por três vezes consecutivas, a voz rouca, ininterrupta, como num mantra. - "Isso é loucura.", pensara Nando, encolhido no canto do quarto, exausto, mãos que seguravam a cabeça que parecia explodir. - Vade retro Satana. Nunquam Suade Mihi Vana! - "De onde ela tirou essas frases? E que voz essa, meu Deus?! Eu vou enlouquecer. Não me deixa enlouquecer...". Fernando poderia jurar ter visto sombras ao redor das duas e até mesmo os cabelos de Giulia esvoaçando ao sabor de uma lufada de ar quente e extremamente aconchegante com um odor delicioso de algo doce que tentara descobrir, mergulhando naquele mundo insano dentro do quarto que, agora voltava a se acalmar. - Volta, tia. - Giulia dissera baixinho ao seu ouvido. - Seu filho tá aqui. Ele precisa de sua força e eu também.

- Giulia, se afasta. - Fernando, num pulo, a tomara nos braços com pavor de que sua própria mãe a ferisse. E essa ideia estapafúrdia lhe causava tanta dor quanto a dor em seu peito retumbante. - Ela vai te...- Cambaleara, com a mão no peito, as feições pálidas, a boca entreaberta, olhos aturdidos.

- Deus do Céu, Fernando! Ela não vai me machucar. - Avançara sobre ele, impedindo-o de voltar ao chão. - Se acalma, por favor, meu amor. - Quando encostara a mão espalmada no peito dele, ela ouvira todos os seus pensamentos tortuosos. Toda dor e desolação que o assaltavam durante todos os dias, o dia inteiro. Ouvira relances de sua conversa com o médico e isso, ela fizera questão de afastar de sua mente desmembrada em várias partes. Estava completamente em desalinho a bailarina com os cabelos desgrenhados, as faces afogueadas quando o pusera sentado na poltrona de couro branco, ao lado do abajur de pé, drasticamente curvado em sua direção. Ela o via, agora, com detalhes, sob a luz tênue da lâmpada num tom de verde claro, com anjinhos de bronze que, unidos, seguravam sua cúpula. - Vc precisa descansar, Fernando. - Suas palavras soaram como um cântico de amor e ternura. Fernando sentira um alívio quase imediato ao ver aquele rosto límpido, plácido, lindo, perfeito e com uma luz que vinha de dentro. Os cabelos que lhe caíam como cascata até a altura dos seios, a barriga afrontando-o como a lhe pedir por um beijo. As mãos dela sobre o espaldar do sofá, sua boca bem próxima a dele. - Fique aqui, quietinho. Tá bom? - Ele assentia com a cabeça e lhe sorria com aquele jeito só dele que a encantava. Ela sentira-o de volta. Seus corações batiam em uníssono e, então, ele tivera a certeza de que a mulher à sua frente teria seu amor pela eternidade. - Shhh...sua mãe tá acordando...fique quieto. Quietinho. Inspire e expire. Inspire e expire. Lembra? - Arregalava os olhos vívidos. - Vc fazia isso comigo quando eu precisei de vc. - Tascara-lhe um beijo na bochecha. Isso o fizera rir. - Agora é a minha vez de cuidar de vc, rapazinho. - Lançara um olhar preocupado à tia que murmurava algo, voltando aos olhos dele. Os olhos azuis onde mergulharia mais tarde e para sempre. - Me espera...

- Giulia, Giulia. - Celeste lamentando, agora clamava por sua ajuda e Fernando, ali, sentado no sofá, paralisado por uma sensação inóspita, voltara a ouvir a voz de sua mãe. A verdadeira voz da mulher suave conquanto em completo desequilíbrio. Erguera-se, com dificuldade, do assento, estacando diante do olhar de reprovação de Giulia que lhe dizia. -"Agora não!" - Voltara a sentar-se desolado, mãos na nuca e a cabeça enterrada entre os joelhos. - Ele saiu de cueca, Giulia. Deve estar com frio, fome. Deus! E se fizeram mal a ele?

- Tia. - Giulia agora sentira a segurança em deixar que Celeste repousasse a cabeça em seu ombro. As Sombras haviam cedido espaço. - Ele tem a pulseira de identificação. Eu tenho certeza de que o acolheram em algum lugar e agora estão cuidando dele.

- Vc não tem essa certeza.- Celeste afastava-se de Giulia, a voz com laivos de rancor, os olhos cerrados e nas faces, traços de um profundo desgosto. Ela mesma ajeitava os travesseiros entre a cabeceira e suas costas doloridas quando o dissera de forma seca. - Não minta pra mim. Vc não fez o que te pedi. Não pode ter certeza.

- Eu tenho, mãe. - Fernando adiantara-se, repelindo, com todas as forças um medo que julgava infundado. Era sua mãe, ora bolas! A mesma de antes, enfrentando uma grave crise. Apenas isso. Dissera a si mesmo quando voltara a se sentar ao lado dela no colchão, mãos que afagavam seus cabelos úmidos, ralos, fracos sob o olhar cúmplice e de uma doce aprovação de Giulia. Celeste estava cercada por carinho e, aos poucos, recobrara a sanidade. - Eu percorri as ruas. Fui a todos os lugares e não encontrei nada que me convencesse de que o pai não está vivo e bem, mãe.

- Mas também não pode afirmar o contrário. - Lançava-lhe Celeste um olhar decepcionado. Ele engolira em seco, desfazendo o nó na garganta. Suspirou profundamente, assentindo com a cabeça, em silêncio - Perdão, meu filho. - Celeste levara as mãos ao rosto, coberto de vergonha. Voltara a ver o rapaz de boa índole que jamais a decepcionara. Reconhecia seus esforços, mas, deveria culpar alguém. Aquele sentimento de culpa que a consumia, em segredo, deveria ser compartilhado com alguém. Alguém, além dela deveria sofrer. Enzo pedira para que ela cumprisse o acordo e ela, convencida de que nada de ruim poderia separá-los, acomodara-se a ponto de não perceber o óbvio! Enzo queria pôr um fim ao seu sofrimento e ao que causava à família. - Eu não sei o que está acontecendo comigo. Sei que disse algo pra vc. Algo de ruim. Meu coração dói. - Beijava-lhe o rosto entre suas mãos gélidas, suadas, puxando-o para si.

- Me perdoa, mãe. - Ele implorava, junto ao peito dela, em seu abraço materno. Chorou de soluçar, escondido debaixo da asa protetora de Celeste que se mantivera forte, firme, distante daquela figura medonha de minutos atrás. Sorrira ao filho com brandura. Ele entusiasmara-se, com as mãos dela entre as dele. - Eu vou voltar hoje mesmo e...

- Ah! Mas não vai mesmo! - Protestara Giulia, erguendo-se da cama, desfazendo o vínculo amoroso entre os três. - Vc vai descansar hoje. queridinho! - Num piscar de olhos, lá estava ela. Havia dado uma lenta volta inteira no entorno da cama, a suspender a barriga, como se temesse que Sunshine pudesse escapar por entre suas pernas a qualquer instante, indo ao encontro dele do lado oposto do quarto. Aquele jeito dela, preocupado, compenetrado enternecia o coração de Fernando que dera um risinho de encantamento ao fitar aqueles olhos que, agora, o dissecavam de cima a baixo, cheios de indignação. - Vc vai ficar em casa hoje, meu bem! Vai se alimentar, tomar um bom banho e se deitar porque saco vazio não para em pé. - Dissera com tanta irreverência que, milagrosamente arrancara uma risadinha de Celeste. - A senhora não concorda, tia. - Dera-lhe uma piscadela, seguida de um semicerrar de olhos conspiratório. Celeste entendera suas intenções e seus olhos brilharam, fulgurantes. - Enquanto vc dorme, meu amor, eu cuido de tudo. - Afagara os cabelos dele, sentada em seu colo. - Tudo mesmo. - Beijara-lhe a boca até estalar. - Agora levanta! Já já! Vamos ao banho.

- E minha mãe? - A voz dele tão fraca e doce. Fernando parecia um cordeirinho inocente prestes a ser imolado. - Quem fica com ela?

- São Bento! San Juan Diego e os anjos e santos excomungados - Celeste uivara de tanto rir, sob os olhares desconfiados do casal que a deixara sozinha, tranquila, com o coração bombando de alegria. - Tia... - Antes de sair com Fernando e encostar a porta, Giulia erguera uma das sobrancelhas e com um sorrisinho matreiro no rosto, avisara. - Volto daqui a pouco. Vamos ao plano B! - Celeste recostara a cabeça no travesseiro e sorria ao teto.

- Agora, ele volta pra casa...

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 02/11/2019
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