'THELMA AND LOUISE - VOLUME II' - livro Giulia - Quando a Luz se apaga

Assim que abrira a porta do quarto, ela sorriu. Um sorriso triste, cheio de recordações alegres. Olhou para as paredes quentes, em tons amarelados que produziam uma atmosfera acolhedora e sensual. Bem razoável para um casal jovem e apaixonado, ela pensara. Havia um sofá baixo e largo, comprido como um rio e forrado de tecido florido com almofadas em tons pastéis. Celeste rira ao pensar na reação do filho diante das flores coloridas conhecendo-lhe o temperamento machista. Seus olhos nostálgicos percorreram toda a extensão do quarto enquanto ela espalmava a mão sobre o lado esquerdo do peito. Seu coração agora batia acelerado. Pensara que o quarto parecia tão acolhedor. Aqui e ali, dispostos, com aparente casualidade, agrupamentos de cristais e vasos com plantas decorativas e uma fragrância inigualável, sobre os antigos móveis de madeira polida. - "Lavanda!", ela exultara por saber que Giulia herdara dela o gosto pelos pequenos e perenes arbustos. Era sua mãe, ora bolas. Nada mais justo do que passar à filha seus gostos e costumes. Uma linda filha! Uma filha dedicada desde o início até o fim. Ela a via agora sobre a cama e seus olhos encheram-se d'água. Cruzando o tapete peludo azul turquesa do tamanho de um lago, avistara a poltrona em couro cru onde certamente seu neto seria amamentado, no outro lado da ilha formada pela mesa de centro em madeira entalhada. Tudo estava impecavelmente arrumado, mas sem parecer organizado demais. Ocorrera-lhe que Giulia seria uma ótima mãe e esposa enquanto acariciava sua testa, a pele viçosa, os cabelos negros que se espalhavam pelo travesseiro branco, os olhos fechados, pesados. As órbitas inquietas.

- Shhh...dorme, querida. - Celeste aproximara-se da cama, pondo-se de joelhos ao lado dela. Sussurrava enquanto penteava com os dedos aqueles cabelos que, por tantas e tantas vezes, ela os trançou. Tombara a cabeça no lençol vertendo lágrimas sentidas. Ficara assim por um tempo sem ter coragem em prosseguir. Com um longo suspiro, erguera o rosto transfigurado pelo sofrimento, deslizando a mão trêmula, fina, leve e envelhecida pelo braço de Giulia que o deixara esticado ao longo do corpo. - Vc está tão linda, meu bem. Uma princesa. Uma princesa que guarda um príncipe aqui dentro. - Pousara a mão livre no ventre expandido da filha que dormia profundamente. - Eu precisei fazer isso, meu anjo. Vc não me ouviria se eu não tivesse feito isso. Vc me entende? Me perdoa? - Sua voz era tão doce, embargada pela emoção. - Perdoa sua tia. Eu não tenho pensado bem nos últimos tempos. - Desviara, num relance, os olhos aterrorizados do Crucificado, ali, logo acima da cabeceira da cama. - Ah! Eu achei bastante oportuna a viagem de Fernando. Vcs estavam se estranhando e eu não gostei nada disso. Não mesmo! Ele me pediu pra tomar conta de vc. Disse também que voltaria logo. Ele morre de saudades de vc, sua bobinha! - Encolhera os ombros e um lampejo de insanidade perpassara por seus olhos. - Eu disse que tomaria conta de tudo, mas...eu vou precisar me ausentar por um tempo, filha. E nada de ruim vai te acontecer. Eu prometo. - Celeste dera um risinho nervoso, voltando os olhos culposos à cartela de calmantes ao lado do criado-mudo. - Não se preocupe. Não vai fazer mal ao bebê. Eu jamais faria algo que o prejudicasse. - Abanara a cabeça num tom de reprovação. - Jamais. Ele é a minha vida. Ele é a parte de mim que seguirá adiante. Ele é todo feito de amor e o amor estará com ele em todos os dias de sua vida. - Cerrara os olhos, entreabrindo a boca, pois desejava respirar. Ofegava em pensar que não mais os veria. - NÃO QUERO! - Tomara, de chofre, a mão de Giulia entre as suas e beijava-lhe os nós dos dedos com sofreguidão. - Não quero, filha. Me perdoa, mas eu...eu...- Engolira em seco, desfazendo o nó na garganta. Enxugara o rosto devastado, afofara os cachos do cabelo e desenhara, a custo, um sorriso nas faces lívidas. - Meu bem, há momentos na vida em que é preciso ser forte. Vc sabe disso, não sabe? Sim. Eu sei que sabe. Não precisa responder. - Lançara um olhar furtivo ao copo com água. Arquejara, arrependida. - Eu precisei fazer isso, meu anjo. O médico disse que um comprimido não lhe faria mal. Vc precisava se acalmar e eu...- Hesitara vendo-a num sono pesado, profundo. - Eu precisava lhe falar e vc com esse seu jeito impulsivo e sempre querendo mudar o mundo...- Inclinara a cabeça, olhando para ela com indulgência. - Vc sempre foi assim. Ahh, minha querida! Vc sempre foi atirada, espevitada, falante e foi assim que nos conquistou. - Seus olhos brilhavam quando sua mente a levara ao passado. - Assim que eu pus meus olhos em vc naquela igreja, eu sabia que vc seria a minha filha. A filha que tomaram de mim. A filha morta quando nasceu. Era vc! Era vc...- Murmurava, enquanto retirava os fios da franja da testa umedecida de Giulia, quieta, silenciosa, inerte...dopada. - Eu te amo e sempre te amarei. Sei que pode me ouvir em algum lugar. Sei que vai me odiar por ter feito isso, mas, sei também, que me ama assim como eu te amo. Assim como vc ama meu filho e por ele, seria capaz de tudo. De tudo! Compreende??? De tudo!!! Deus...- Recuara, assustada em ver a marca de sua mão na pele sensível do antebraço de Giulia. - Perdão...perdão. Ah, meu anjo...perdão. Titia jamais te machucaria. - Beijava-lhe a pele fina pensando em quantas vezes o fizera desde que Giulia chegara à sua vida. - Como sou boba...- Queria parar de chorar e ser forte, no entanto, as lágrimas brotavam de seus olhos como gotinhas de uma bica com defeito. - Agora vou falar com meu neto. Não. Não seja ciumenta, bobinha. - Com a ponta dos dedos da mão esquerda, puxara o lençol de algodão que cobria o corpo de Giulia, maravilhando-se em vê-lo flutuar no ar, por segundos. Pensara em borboletas enquanto espalmava as mãos na pele rígida, distendida, reluzente que protegia o abrigo úmido, escuro e agora, apertado, de Sunshine. - Eu sei, meu querido. - Dissera-o de olhos fechados e um sorriso radiante em seu rosto iluminado. - Eu sei que está ficando difícil permanecer aí dentro. - Dera um riso que mais parecia um chiado. - Mas já já vc vai sair daí e encontrar um mundo lindo, colorido, cheio de pessoas boas e balões de festas e borboletas e fadas e um pai bobão que vai fazer todas as suas vontades. - Encostara o ouvido na barriga de Giulia para ouvi-lo melhor. - Preste atenção no que a vovó vai falar. Não chore...não. - Ela choramingou. - Não chore. Estou aqui. Estou aqui. Vc consegue me sentir, Sunshine? Consegue? Não vou sair daqui enquanto não me der um sinal. - Se Giulia pudesse abrir os olhos enxergaria traços de loucura no rosto deitado sobre seu ventre. - Vc mexeu! Bravo! Eu sabia que vc era tão inteligente quanto Fernando e Giulia. Mais do que os dois juntos! - Um outro chute preguiçoso e Celeste batia palmas, delirante. - Agora se aquiete, meu bem. Se aquiete...shhh! Eu sei, eu sei. Foi culpa da vovó. Mas vc é um ótimo menino e vai se acalmar. Sua mãe precisa de sua ajuda, vc me entende? Aguente mais um pouco. - Falara baixinho contra a pele da barriga. - Ainda não chegou sua hora. E, quando chegar, que os anjos te protejam, meu amor. Que as fadas e os elfos te defendam e que o Criador te guie pelos caminhos do Bem. E...- Sua voz saíra entrecortada por fortes soluços. - Quando falaram de mim pra vc, não os ouça. Não acredite no que te disserem, meu amor. Acredite em Deus e, se não quiser acreditar, faça o Bem ao próximo. - Dera de ombros. - Dá no mesmo. Oh-oh! Sua mãe tá acordando! Preciso ser breve. Agora me ouça. Vou tentar...- Ria entre lágrimas. - Não sei se vou conseguir, mas...- Tossira limpando a garganta. Fungando, aprumara-se, erguendo o tronco, deslizando as mãos afoitas pelos cabelos totalmente desalinhados. Pigarreou ruidosamente. Arriscara algumas notas musicais antes de iniciar o que, para ela, seria a sua maior e melhor atuação como cantora de músicas para ninar. - Está pronto? - Perguntara ao neto, sentada na beirada do colchão, mãos que alisavam o tecido do vestido, de costas para Giulia que, por vezes, exalava um gemido de dor, voltando à inconsciência. - Então tá...não vá rir de sua avó, hein!? - Apontava-lhe o indicador, num gesto de aviso.

Então, reunindo todas as suas forças e um imenso amor que jamais teria fim, enchera de ar o diafragma, segurando-o por segundos. Exalara o ar, franzindo as sobrancelhas e, umedecendo com a língua os lábios ressecados. - Eu costumava cantar esta música para o seu pai e depois, para sua mãe. - Explicara com serenidade em sua voz e seriedade nos olhos. Buscara forças nos lugares secretos onde a magia vicejava. Nas remotas e verdejantes colinas da Irlanda, nas charnecas varridas pelo ventos de Donnelaith, nas profundezas das cavernas ao longo das costas rochosas e barulhentas da Escócia, as velhas árvores curvadas e retorcidas pelo tempo e pelo vento das florestas encantadas de Fangorn, e num repente, seu coração se acalmara e então pudera entoar sua doce canção, seu presente àquele que traria Luz às Trevas. E, sem se interromper, cantara até o final.

- Eu tenho tanto pra te falar, mas com palavras não sei dizer. Como é grande o meu amor por você. E não há nada pra comparar, para poder lhe explicar...como é grande o meu amor por você. - Baixara a cabeça, levando a mão ao peito que parecia querer explodir. Molhava o fino tecido do vestido florido com suas lágrimas abundantes. Por um segundo, em sua mente, vislumbrara a vida sem eles. Engasgara-se com o choro, elevando os olhos aturdidos aos Céus. - "Falem comigo. Falem comigo!" - Sem respostas, erguera-se da cama e dera um longo beijo na bochecha de Giulia, proferindo palavras de encantamento. Fizera o mesmo ao neto e, voltando-se à porta, deslizara os pés descalços no piso frio até se recostar à cômoda, próxima à saída. Não queria partir. Saberia que aquela imagem deveria ficar gravada em sua memória para o resto de sua vida. Cerrara os punhos para logo em seguida, abrir as mãos dormentes. Girava lentamente o pescoço para trás, vendo-os ali, sobre a cama enorme entalhada na madeira. Lembrara-se do dia em que a mesma cama causara um alegre burburinho naquela casa. A casa. A Casa Lilás. Não choraria. Não. Deveria ser forte. Havia muito a ser feito. Eles seriam felizes juntos. Sim! Seriam! - Nunca se esqueça, nem um segundo. Que eu tenho o amor maior do mundo. Como é grande...- Um arquejo de dor e uma pausa. - O meu amor por vocês. - A porta se fechava, a luz se apagava. Ela chegara a ouvir um gemido baixo, longo, desesperado. Siga adiante. O acordo deve ser cumprido, lembra? - Sim. Lembro. Vincenzo conta com isso. - Vincenzo conta comigo. - Repetira, flutuando através do corredor, sorrindo aos quadros pendurados e agora entortados por seus dedos longos, ágeis e furiosos. - Eu vou cumprir a minha parte. Cumpra a sua! - Ameaçara-o.

- Cumprirei.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 10/11/2019
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