TRANSVIVÊNCIA DISTINTA

Jorge nascera rico e herdara fortuna e negócios do pai aos vinte e dois anos de idade, após a morte deste. Porém, na prática, tais negócios caminhavam por conta própria ou pelas mãos de administradores, que mal conhecia. Eventualmente, analisava relatórios, participava de reuniões e dava pitacos sobre opções que lhe davam a conhecer, pois se achava inteligentíssimo, esperto, antenado, mas, via de regra, suas opiniões caíam no esquecimento, mal se retirava do ambiente profissional. Vivia tomado por outro tipo de compromissos, como noitadas, passeios, viagens e outros afazeres desgastantes. Dormia até o início da tarde (para se refazer) e lagarteava ao sol ou se esticava num sofá, durante o resto do dia, bebericando algo alcoólico e se servindo de lanches que provocariam indigestão em um ogro.

Estava ele, num belo dia de sol, em praia paradisíaca e erma, longe de tudo e todos, menos dos fiéis escudeiros de farra, tomando seus gorós habituais e saboreando substanciosa moqueca, quando uma espinha de peixe se alojou em sua garganta, de tal modo que o coitado não conseguia respirar. Debatia-se, pedindo ajuda, mas os que lhe faziam companhia, tão prontos a lhe arranjar diversão, demonstraram completo despreparo para a situação, e do desespero ele passou à apatia dos que já não sentem mais o corpo obedecer à sua vontade.

Foi nesse instante, aparentemente derradeiro, que algo inusitado ocorreu.

Caiu e se levantou, rapidamente. Percebeu não se sentir mais asfixiado, mas levou alguns segundos para entender que estava tudo diferente. Olhou em volta e, com o coração querendo sair pela boca, enxergou a si mesmo, ou seja, seu corpo, deitado, largado. Tentava pôr o cérebro a funcionar e tomou novo susto. Sentiu uma mão pousar no ombro e gritou, antes de perguntar de quem era e o que estava acontecendo.

- Calma Jorge! Pense em mim como um amigo que pode evitar que você jogue sua vida fora. Venha, que tenho algo a lhe mostrar.

Era um sujeito estranho, encorpado, sorridente e vestido com um macacão azul.

O homem puxou-lhe pela mão e o levou, flutuando, como se fosse uma pena.

Apatetado, deixou-se levar pelo desconhecido até um hospital horroroso, imundo, lotado de gente feia e caindo aos pedaços. Tudo e todos estavam paralisados, como se o tempo em todo aquele lugar não mais funcionasse da maneira como ele entendia.

- Que raio de lugar é este?

- Acho que você é suficientemente esperto para entender que é um hospital

- Já estive em alguns hospitais, mas nunca num pardieiro como este.

- Você sempre teve o privilégio de ver a vida acontecer de longe, sentado confortavelmente, sem contato direto com a roda viva e insalubre do cotidiano.

- Também não é pra tanto!

- Acha que estou exagerando?

- Acho!

- Então não vai ficar preocupado em sentir o outro lado da moeda, certo?

- Como assim?

Percorreram longo corredor e entraram em quarto lotado de doentes, jogados em camas escangalhadas e colchonetes no chão. Quase não dava para transitar e todos demonstravam dor, desespero. A única exceção era um rapaz, de olhar parado, deitado em canto escondido, junto a um pedaço mofado da parede. Parecia ausente de tudo que o rodeava.

- Este é Décio. Tem idade próxima da sua e está morrendo de câncer.

- Parece bem judiado, mesmo.

- A doença toma seu corpo, porque ele perdeu o ânimo e deseja a morte.

- Que pateta! Por que isso?

- Sente-se só, desiludido e sem condições de prover o sustento da família.

- Que baixo astral! E por que estamos falando desse cara?

- Porque ele é a chave pra você continuar vivo.

- Que você quer dizer com isso?

- Que você está no bico do corvo. Se vacilar, vai para não mais voltar.

- Você é a morte?

- Não seja bobo! Sou apenas alguém que pode ajudá-lo a escapar do pior.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 23/11/2019
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