TRANSVIVÊNCIA DISTINTA - capítulo 03

Décio (ex Jorge) fitava a mulher, que demonstrava conhecê-lo, sem saber como agir e o que dizer. Fingir amnésia era a única alternativa para tentar entrar na nova realidade e esperar que lhe dissessem algo de seu passado e presente.

Ela, embasbacada, olhava-o dos pés à cabeça, não acreditando no que via.

- Esse jeito de falar, seus modos, está tudo tão diferente! Mas não há como não ser você. Será que estou ficando louca?

- Nada disso! Acordei agora, sinto-me bem melhor, mas não lembro de nada.

- O que importa é você estar aqui comigo e nossa filha. Rezei tanto pelos dois, que acho que houve um milagre, embora Sara ainda esteja muito mal.

Enquanto falava, a mulher o abraçava e beijava, demonstrando carinho ao qual ele não estava acostumado. Só recebera carícias de garotas indiferentes, sem envolvimento afetivo. Olhava e pensava em como teria sido a vida de Décio até ali, e como poderia assumi-la. Estava, era óbvio, diante de sua esposa e filha, e mesmo não sendo puritano, não achava correto imiscuir-se na intimidade do outro. Além disso, havia a criança doente, e não sabia como agir.

- Eu preciso que compreenda. A doença mexeu muito comigo, então vou ter de reaprender o que esqueci, reorganizar pensamentos, saber tudo de você e de nossa filha, principalmente. Espero que me ajude, como se eu fosse um completo desconhecido. Acha que pode?

- Conte comigo, meu amor!

- E quanto à menina? Quero dizer, nossa menina. Como está?

- Parece que a febre baixou, mas o médico não está muito otimista.

- Olhe! Vou levar esta jarra com água ao senhor que tem sede e já volto.

- Faça isso, mas venha logo que me sinto meio atordoada e perdida.

Enquanto levava a água, tentava chamar o sujeito que o pusera ali, mas só conseguia ouvir, mentalmente, a frase:- Daqui pra frente é por sua conta. Ao servir o doente, outro lhe pediu o mesmo e um terceiro chamou. Viu que todos estavam com sede e talvez com fome também. Sentiu-se indignado e foi até a secretaria, com a intenção de alertar os responsáveis sobre o problema, mas encontrou um médico no corredor, que ao vê-lo demonstrou surpresa.

- Espere um pouco! Você é o paciente Décio Taoli?

- Creio que sim. Por que?

- Simplesmente, porque estava totalmente combalido. Não tinha senão horas de vida.

- Milagres acontecem, doutor!

- Não neste hospital! Não no meu turno! Vamos até seu leito!

Após verificação detalhada, o médico não sabia o que dizer. Nesse momento, Décio teve o pressentimento (aviso do esquisitão?) de que ocorrera a melhora repentina de sua filha.

- Se o senhor está espantado com minha melhora, vamos até o quarto de minha filha, que verá que o milagre é duplo.

- Ainda não tenho resposta para o seu caso, mas sua filha tinha menos chance que você e não posso levar a sério o que diz.

Foram até onde estava a pequena, encontrando-a sorridente, sentada na cama e abraçada à mãe, que chorava copiosamente. Ao vê-lo, pediu um abraço e se agarrou ao seu pescoço. O médico ficou extático. Depois disse que precisava examinar os dois, para verificar o que ocorrera. Vários exames foram feitos, e o resultado foi assombroso. Estavam completamente sadios, ambos. Não restava em seus corpos, nem o mais leve vestígio da recente doença. Não estavam nem mesmo debilitados, e demonstravam vitalidade, tônus, característicos de quem vivia de modo, absolutamente, saudável. Doutor Rubens espalhou os exames sobre sua mesa, largou o corpo na cadeira e perdeu-se num olhar distante e introspectivo. Acordou desse transe com a chegada de um colega que estava a par de tudo que ocorrera.

- Que pretende fazer agora?

- De imediato, tenho de dar alta aos dois, mas não me conformo.

- Aceite os mistérios da vida como um aviso de que sabemos muito pouco ainda. Temos de fazer o que podemos, mas reconhecer nossa limitação.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 25/11/2019
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