'MORGANA - SONHOS TÊM FIM'

SONHOS TÊM FIM

Com o nascimento de Antoine, conhecera o profundo significado da palavra Amor. O que sentia por meu Gio era completamente diferente, embora tão forte quanto o que viria a sentir por aquele rostinho rosado, as mãozinhas rechonchudas que se abriam e se fechavam, a boquinha entreaberta e seu hálito puro, refrescante. Deus! Então pude acreditar que Ele existia! Deus existia e me enviara um de seus anjos. A sensação de um contentamento que me arrebentava o peito misturava-se ao pavor de ser responsável por aquela vida inocente e indefesa pelo resto de minha vida. Um medo tão absurdo quanto avassalador de que algo o pudesse tirar de mim levara consigo as minhas forças. O ser que eu mais amava era por mim repelido e aquilo me enlouquecia, aos poucos, pois eu o queria mais que tudo na vida e vê-lo nos braços sempre acolhedores do pai, fazia-me sentir miseravelmente egoísta e inútil.

- É uma doença, meu amor. - Giovanni deitara-se ao meu lado, abraçando-me com força, doando-me a sua. Encurvara-me contra seu peito, vertendo lágrimas amargas, amaldiçoando-me por amar meu bebê e não ter a coragem de me aproximar dele. - O cérebro tem segredos que o Homem ainda desconhece...- Prosseguia, acariciando meus cabelos, logo após ter banhado Antoine e cantado para ele dormir pacificamente em seu bercinho, bem ali, em nosso quarto. Falava baixinho ao meu ouvido, receoso em acordá-lo e também porque sabia que eu amava seu jeito manso, sua voz rouca, seu braço sob o meu travesseiro e o outro sobre o meu próprio braço, quase impedindo-me de respirar. Ainda assim, suspirava aliviada, protegida com sua perna sobre a minha, ambos deitados em nossa cama. - Existem muitas ligações entre suas células e, por algum motivo, muitas delas deixam de exercer suas funções temporariamente, dando a falsa impressão de que estamos prestes a enlouquecer.

- Falsa impressão? - Sussurrara contra o travesseiro, encolhendo meus ombros, puxando seu braço para que me cobrisse como o faria com minhas cobertas. - Não estou enlouquecendo?

- Não. - Replicara resoluto.

- Como tem certeza? - Voltara meus olhos a ele que, agora com a cabeça apoiada em seu cotovelo, fitava-me com seu rosto pacífico iluminado pela frágil chama bruxuleante da vela sobre o criado-mudo. - Quando me casei com vc, já era louca. Loucos não enlouquecem. Logo, vc não pode enlouquecer porque já era louca.

- Não brinque comigo...- Choraminguei, pois não era mais tão louca a ponto de berrar com ele e tacar-lhe algo que o machucasse.

- Não brinco. - Mais revoltada do que angustiada, virei meu corpo de modo que ficamos um de frente para o outro. Meus olhos dardejantes o fitavam com a gana de esbofetear-lhe as faces, porém...faltavam-me as forças. - Vc é linda...

- Ora, bolas! - Enterrei meu rosto no travesseiro e minha voz saíra abafada quando esbravejei. - Isso é hora para me dizer uma coisa dessas, Giovanni Salviatti??? Estou morrendo. Meu filho precisa de mim e sou um fracasso como mãe e vc me diz que sou linda! LINDA, GIOVANNI??? LINDA???

- Vc disse meu nome completo. Isso não é bom...

- Não brinque comigo! - Olhara para ele de soslaio. - Estou doente. - Murmurei num tom de aviso, agarrando-me à gola de sua camisa larga com um decote em "V" que expunha seu tórax. Deus! Ele ainda arrancava suspiros de mim, o que me transformava num monstro. Um monstro materno devasso. Um monstro materno que não ligava para o próprio filho, porém desejava ardentemente seu pai. - O que está acontecendo comigo??? - Chorei como uma criança em seu colo, grudada ao seu corpo, fitando com ternura e receio nosso Antoine protegido por um véu branquinho cheirando à lavanda. - Me ajuda, amor. - Implorei desorientada. - Não posso continuar assim. Eu amo meu filho. Daria minha vida por ele. O que me faz ter esses pensamentos ruins? Por que não consigo cuidar dele como vc o faz? - Tomando meu rosto em suas mãos, deslizando suas mãos até a minha nuca, afagara, com o polegar, o lóbulo de minha orelha. Levei minha bochecha à sua mão. Aquele gesto me trazia tanto conforto...

- Isso vai passar, meu anjo. Vai passar.

- Vc promete? - Estatelei meus olhos confiantes. Depositei nele a minha vida e, mais uma vez, ele me salvara da Escuridão.

***

Corríamos descalços sobre o grama, meu filho e eu. Colhíamos os seixos próximos ao riacho onde lavava nossas roupas. Deitávamos exaustos apreciando as estrelas, dando nomes engraçados a cada uma delas. Ríamos juntos de Geovanni que, abanava a cabeça, dando de ombros, resignado, quando, em vão, desistia de nos ensinar os nomes corretos das constelações, sentado ao nosso lado. Braços apoiados nos joelhos e um sorriso de genuína satisfação em seu rosto afilado, sua boca rosada, fina, delicada da qual eu sentia saudades. Dedicava-me inteiramente à Antoine após ter sido curada por gotinhas mágicas mantidas em frascos transparentes, armazenadas cuidadosamente em uma pequena e charmosa estufa, toda em vidro transparente do chão ao teto, construída por ele, onde flores tão belas quanto exóticas espalhavam-se, lado a lado ou pendiam do teto por onde eu via o sol e seus raios revigorantes ou os pingos da chuva que escorriam como lágrimas sob meu olhar distante. Chegava a ter ciúmes daquele local onde os aromas misturavam-se, inebriando-me. Ele passava horas ali, sozinho, enquanto eu, exultante, exercia minhas funções de mãe, agora, sem o seu auxílio. Por vezes, eu o espiava por entre os arbustos, compenetrado, lendo livros grossos de capa dura, testando novas poções que trouxessem alívio aos que o procuravam à procura da cura às suas dores ou até mesmo para aumentarem sua fortuna. Giovanni me dissera, entre risos, que a Alquimia poderia transformar o chumbo em ouro. Eu nunca soube se ele falara a verdade ou se seria mais uma maneira de tirar o meu fôlego ou de sorrir diante de meus olhos crédulos e assustadiços. Lá estava ele, inocente, coração do tamanho do mundo e tantas contas por pagar. Ele conseguia o impossível: que eu o amasse mais, a cada dia, esforçando-se por trabalhar em excesso e trazer o pão ao nosso lar.

- Vc é rico, meu amor. Não precisa passar por isso...- Murmurei, com os olhos cheios d'água, ali, fitando-o às escondidas. - Volte para os seus. Não sofra mais...- Meu coração por pouco saíra pela boca quando seus braços se enroscaram em minha cintura e seu queixo pousou em meu ombro. Ele estava atrás de mim e, certamente...

- Ouvi. - Afirmara com seriedade em sua voz baixa. - Ouvi a besteira que acabou de pensar. Tire isso de sua cabeça oca. - Rira a contragosto. Funguei, enxugando minhas lágrimas com o dorso da mão. - Minha única família está aqui, nesta fazenda, naquela casa...- Voltara os olhos fascinados ao nosso filho que, correndo, gritava de alegria ao empinar um papagaio. - E naquele menininho ali.

- E em mim? - Sussurrei a pergunta contra seus lábios, alisando seu torso, deslizando minhas mãos até seus cabelos desalinhados e sem corte. Cravei meus dedos impacientes naqueles fios revoltados.

- Sempre em vc. - Ele soltou um leve gemido de dor e prazer. Sentira seu coração disparar e encantava-me, após tantos anos, ainda despertar os mesmos sentimentos nele e nutrir por ele o mesmo amor e desejo de quando o vira aos...aos...quando eu o vira pela primeira vez??? - Aos dezessete, amor. Foi quando vc retornou da casa de sua tia e me fascinou quando passou por mim sem sequer me dar uma olhadinha!

- Mentira...- Arquejei, perplexa.

- Sim...- Fizera uma careta de descontentamento. Eu ri. Ele beijou minha bochecha. Corei. - Vc somente se dispôs a falar comigo quando eu a encontrei perdida num bosque, rodopiando, cantarolando. Dizia ver as fadas.

- MENTIRA! - Afirmara, rindo de jogar a cabeça para trás. - Isso é patético!!! - Exaltada, dera um tapa em minhas coxas. - Fadas??? Elas existem? - Comprimira meus olhos, fitando-o com astúcia.

- Segundo vc, sim. - Em seu olhar, vislumbrei um lampejo de culpa e remorso. - Mas...faz tanto tempo. - Elevou os olhos preocupados ao céu e concluiu com rapidez. - Melhor esquecer!

- Sim. Melhor esquecer...

Tolice. Eu não poderia me esquecer do que não me recordava. Não me lembrava do dia em que o conhecera. Não me lembrava de nada e a ausência de lembranças do meu passado me inquietava a ponto de misturar a realidade à fantasia. Mas...isso seria o meu segredo. Meu Giovanni não conheceria meus pesadelos onde um monstro costumava abusar de mim em frente ao altar do Crucificado. Eram sonhos...pesadelos. E, o que tínhamos era real, nosso...somente nosso. Nada poderia nos afastar um do outro. Nada. Nada poderia tocar em meu filho sem sentir o peso de minha ira. Nada. Nem monstros, nem chicotes em minhas costas abertas em feridas. Nem os olhos raivosos da mulher ao lado do homem que empunhava o chicote. Nada...- NADA!

- Morgana, retorna! - Ordenara-me com autoridade. Retornei, confusa. - Não gosto quando se ausenta, amor. Fica aqui...comigo. - Eu estava dentro de seu abraço e de lá não sairia se soubesse...

- Giovanni.

- Morgana. - Ele me imitara.

- Preciso arrumar um trabalho! Ganhar algum dinheiro...te ajudar de alguma forma. - Ele percebera o meu desespero e, pela primeira vez, não conseguira ler meus pensamentos. - Vc trabalha tanto! Tem que sustentar a mim e ao nosso filho. Cuidar da fazenda, dar aulas àqueles diabretes, aos pais deles e ainda tem forças para ensinar Antoine a ler e a escrever. Eu não vou. Eu não posso. Eu não vou suportar te ver sofrer tanto assim!

- Eu não sofro!

- Sofre sim! Volte para os seus! Não precisa passar por constrangimentos, humilhações, privações...miséria.

- Cale-se!

- As coisas vão piorar! - Gritei, levando minhas mãos trêmulas ao rosto. Vc vai me abandonar...vai me largar! - Não é justo que eu...que vc...

- Morgana? - Seus olhos me vasculharam intimamente e então, ele sorriu e eu vira as lágrimas discretas que escorriam pelas faces onde um sorriso fascinantemente estúpido me fizera arfar de emoção. - Não me diga...

- Sim. - Desabei a chorar, enterrando meu rosto envergonhado contra sua camisa. - Estou grávida...de novo.

- Louvado seja Deus! - Ele exclamou, às gargalhadas.

- Vc é louco???

- Sim. Por vc.

***

Giordana viera ao mundo em um dia chuvoso e, porque a parteira adoecera justo naquele dia, Giovanni, embevecido e um tanto atrapalhado, recebera a filha em seus braços firmes, dando-lhe as boas vindas. Eu estava exausta após horas de sofrimento, contrações e xingamentos contra ele que ora apertava minhas mãos demonstrando-me seu apoio ora verificava a dilatação de meu útero. Nosso Antoine não saíra de minha cabeceira apesar de meus protestos. "Eu vou te proteger, mamãe.", dizia ele enquanto secava o suor de minha testa e as lágrimas de meus olhos com uma toalha que eu bordara para o seu enxoval. Pensei, olhando nos olhos dos dois homens de minha vida ser a mulher mais feliz e sortuda do mundo. Jamais fora tão amada. Mesmo tendo esquecido parte de minha história, eu sabia que jamais havia sido tão feliz ou amada como naqueles dias benditos. Uma última e forte contração, um xingamento seguido de um raivoso arremesso de um copo com água sobre meu pobre Giovanni que desviara há tempo de não ser atingido e lá estava a minha pequenina!

O mesmo rostinho rosado de Antoine, olhinhos cerrados, a boca em forma de coração, a respiração ritmada acalmava minha alma que temia passar pelo que passara com meu primeiro filho. No entanto, com Giordana tudo fora diferente. Ela me inspirava força, saúde, vontade de viver assim que eu a acolhera em meus braços, amamentando-a. Minhas faces afogueadas e meu sorriso de júbilo faziam Giovanni arfar, sossegado. Beijara sua boca quando ele se sentou ao meu lado e a tomou, carinhosamente de meus braços, osculando-lhe a testa.

- Perdão por tudo. - Murmurei. - A dor me deixa um pouquinho descontrolada...- Expliquei, contorcendo a boca.

- Um pouquinho? - Ele sorria enquanto cortava o cordão umbilical de nossa filha e eu dera graças ao Criador por ter me casada com um médico. Um bom médico que merecia muito mais do que eu poderia lhe dar. Mais do que aquela vida sofrida que o obrigava a lutar e lutar dias e noites, sem parar, para nos alimentar. E agora, éramos três seres sob sua responsabilidade. O que eu poderia fazer para lhe convencer a largar tudo e voltar à casa dos pais e ser feliz? - Nada!! - Gritara por entre minhas pernas ainda abertas, observando meu útero agora limpo. - Cale-se ou eu juro por Deus que ponho outro filho aí dentro. - Ele ouvira minha gargalhada histérica enquanto a camisola branquinha, cheirando à lavanda, deslizava por meus braços, cobrindo meu corpo banhado, meus cabelos úmidos desembaraçados, pacientemente, por ele que me fitava em silêncio. Estava tão exausta que não ousara pensar em estapear aquela face que ainda me provocava desejos libidinosos. Céus! Eu sou um monstro!, pensara. Um monstro que acabou de parir e já pensava em se deitar com este homem! Ele pousou a escova sobre o criado-mudo, deslizou a mão em minha nuca, acariciou meu lóbulo esquerdo e me fez sorrir. Eu jamais me esqueceria daquele carinho, do jeito como ele sempre repetia aquele gesto quando preferia o silêncio a ter de falar o que não deveria ser dito. - Mocinha, escute-me pela última vez. - Dissera-o cobrindo-me até o pescoço com a manta de lã. Deitada em nossa cama, meus olhos atentos e apaixonados o aguardavam, ansiosos. - Não tente me expulsar de sua vida. Não vou retornar à casa dos meus pais porque a minha família está aqui e, daqui não sairei, a não ser que me levem à força. - Cochichou com sua voz rouca e os olhos franzindo um pouco. Seu tom era brincalhão, mas, por instantes, aquelas palavras tiveram um gosto de fel. Uma profecia, um presságio, um aviso...uma maldição. - Descanse. Te amo. - Ele beijou o topo de minha cabeça, levando minha pequenina em seus braços e quando ele fechara a porta, deixando-me a sós no quarto onde somente a luz vacilante de uma vela lançava uma tênue claridade às paredes, sentindo a escuridão a circundar-me quase que por completo, pudera chorar de emoção, pavor, amor e saudades.

"Invoque-me."

Cerrara meus olhos pesados, embora meu corpo fragilizado, imobilizara-se quando uma corrente elétrica o percorrera dos pés à cabeça. A voz suave, quente trazia-me conforto e uma estranha sensação familiar.

- Invoque-me e não os deixe passar pelo que virá. - Sussurrou ele com a mesma voz grave, vibrante e desconsolada.

- Deixe-me em paz...- Resmunguei antes de adormecer com os olhos úmidos e um aperto no peito.

***

Antoine tornara-se seu protetor. Aos dez anos, ele não a deixava a sós por um só segundo como se algo o incomodasse. Meu pobre Antoine! Era tão forte, corajoso, impetuoso. Tão impulsivo quanto eu e Giordana, a cada dia, assemelhava-se ao pai com um temperamento reservado, embora seus risos ecoassem pelos cômodos da casa, reverberando pelos bosques onde encontrava-se com as fadas e os seres encantados.

- "Antoine, não a deixe sozinha naquele bosque!" - Exasperava-me, obrigando-o a segui-la, sem sequer suspeitar o motivo de meu receio em deixá-la vagar por entre as árvores tão velhas quanto retorcidas da floresta nos fundos de nossa casa. Havia algo ali, em meio à mata, sempre à espreita. Agora eu conseguia sentir com maior intensidade. Meus sentidos se apuraram, meus temores vieram à tona. Eu os queira à minha volta conquanto soubesse que deveriam ser livres, destemidos como o pai lhes havia ensinado.

Aos seis, Giordana já havia aprendido a ler e a escrever, graças ao meu Giovanni que se desdobrava por nos manter saudáveis e, a cada retorno ao lar, eu o via mais desorientado, mais aflito. Não. Aquele não era o meu Giovanni. Havia temor em seus olhos e, antes de nos recolhermos passara a trancar as portas à chave sem antes rastrear possíveis pistas de invasores com o candeeiro em frente aos seus olhos atentos em uma das mãos e na outra, livre, carregava um mosquete. Apesar de não conversarmos sobre seus novos hábitos sombrios, eu os adivinhava e preferia o silêncio, trancando-me no quarto das crianças até que elas adormecessem. Então eu o conduzia de volta ao interior de nosso lar, fixando meus olhos nos dele durante alguns minutos de silêncio. Um silêncio que falava mais do que mil palavras.

- Corremos perigo? - Eu perguntei quando nos deitamos e o sentia bem pertinho de mim, seu corpo colado ao meu, sua respiração ofegante em minha nuca. - Vc precisa me contar, amor. Preciso estar preparada. - Talvez ele soubesse que, por mais que ele me contasse, eu jamais estaria preparada para o que estava prestes a chegar às nossas vidas tão pacífica e feliz. Ele sabia demais. - Por que fica calado?

- Precisamos nos mudar, Morgana. - Anunciara baixinho como se temesse que nos ouvissem. - Amanhã mesmo vou procurar um outro pedaço de terra onde começaremos do nada.

- Vc me assusta...

- Não se assuste. - Ele, de súbito, virou o corpo e o posicionou sobre o meu, apoiando-se nos cotovelos sobre o colchão. Seus olhos incisivos e severos me encaravam, perscrutando meus pensamentos. - Nada vai nos separar...eu juro. - Havia mais do que temor em suas feições contraídas. Havia a certeza de que algo...- Ninguém vai tocar em um fio de seu cabelo

- Nem dos nossos filho??? - Ele assentira, nervosamente, com a cabeça. - Promete?

- Eu prometo.

"Não faça promessas que não pode cumprir, Giovanni Salviatti"

Não dera atenção à voz sarcástica que invadira, abruptamente, meus pensamentos. Volte ao inferno! Deixe-nos em paz!, implorei mentalmente, cerrando meus olhos e uma outra dor, agora lancinante, atingira meu peito. Vi sangue, ouvi gritos e gemidos. Chorei baixinho deixando que ele me envolvesse em seu abraço, em seus beijos. Nossos corpos se procuravam, se ansiavam, se protegiam. Ele me tocou como nunca o havia feito antes. Não com os olhos cheios de lágrimas e uma tristeza tão grande em seu coração que chegava ao meu, destroçando-me. Nós nos amamos com paixão, com fervor, com devassidão e ternura. Adormecemos abraçados e, quando os primeiros raios de sol tocaram em meu rosto, eu o procurei e não o encontrei ao meu lado. Ergui meu tronco lentamente, recostando-me à cabeceira da cama. Havia inclinado a cabeça e juntado as mãos, como em oração, com os dedos encostados nos lábios. Apurei os ouvidos. Meu coração batia descompassadamente quando pousei meus pés nos chão, caminhando, cambaleante até a porta. Ela se abrira violentamente e sem aviso, chocando-se contra meu corpo ainda fraco. Caí e, do chão, eu o vira. Estava com aquela expressão de horror em seu rosto sempre plácido. Não queria me levantar. Não queria ouvir sua voz, mas ela saíra de sua garganta embargada, entrecortada por soluços. Afundei minha cabeça entre os joelhos quando enfim conseguira escutar seu grito.

- Antoine! - Alertara-me, devastado.

- NÃO! - Tampara meus ouvidos na esperança de que eu ainda estivesse dormindo, sonhando, dentro de um pesadelo que terminaria...

- Morgana, levante-se! - Ordenara estendendo-me sua mão com resquícios de vômito. Corremos até o quarto das crianças e então estaquei, estarrecida. Meu pequeno Antoine a se debater sobre o chão frio de terra batida sob os olhos atônitos de Giordana. Nunca mais me esqueceria daquela cena perturbadora.

- Faça alguma coisa! - Clamei ao pai de meu filho, enlouquecida, abraçada ao seu corpinho, os olhos azuis desmesuradamente abertos, a língua retorcida, a pele alva, macia coberta por manchas negras. - Salve-o. Salve meu filho....salve-o. - Lançara um olhar de horror e súplica a Giovanni, ajoelhado ao meu lado, destroçado, desesperançado, usando de seus conhecimentos a fim de reanimá-lo. Então percebi que o fim estava próximo. - Antoine, acorde! EU NÃO ESTOU BRINCANDO! MAMÃE NÃO...acorde, Antoine. Eu não permito que vá embora, meu filho...não. - Agarrei-me ao seu tronco inerte e o trouxera de encontro ao meu peito, ninando-o como o fazia quando ainda era um bebê saudável e cheio de vida. - Não durma, meu amor...acorde, Antoine. O sol...hoje é dia de sol. Vc ama o sol, lembra?

- Morgana...- Giovanni gemeu de dor recostado à parede. Pobre homem. Era a imagem do desespero, da desolação. - Ele...

- Vai voltar. Ele vai voltar...

***

Fora tão súbito. A Peste Negra chegara às nossas vidas tão ágil e ardilosa quanto as pulgas que infectavam os ratos que infestavam o nosso celeiro. Giovanni culpava-se por não ter notado os sintomas que precederam a morte de nosso filho. E como poderia? Antoine era forte e recusava-se a dar trabalho. Jamais se queixava de dores ou fadiga e a febre logo viera precedendo os enjoos. Não tivemos tempo. Não tivemos. Não tivemos...

***

Deveria ser contra as leis de Deus uma mãe ter de enterrar seu filho. Giordana entoara uma canção em gaélico e, por mais que eu estivesse dilacerada vendo o corpo de meu filho desaparecendo debaixo da terra escura, erguera meus olhos a ela, questionando-me onde ela havia aprendido aquele idioma tão desconhecido quanto fascinante. Giordana dava instruções aos seres alados que, até então, eu não enxergava, mas os pressentia. Giovanni chorou desesperadamente sobra a cova do filho, tombando após a última pá de terra fresca e úmida a se espalhar sobre o amontoado de ossos, carne e pele sem vida que, cuidadosamente, fora preparado, enrolado em seu manto azul com estrelinhas que eu mesma havia bordado. Eu mesma o preparei, lavando-o, perfumando-o com óleo de lavanda e...DEMÔNIOS! Não há dor maior do que tocar no corpo inanimado de seu próprio filho ou procurar vida nos olhos embaçados, vítreos. Malditos sejam!

Giovanni não conseguira mover-se da cadeira, tomado pela culpa. Eu o fiz. Uma força maior me sustentava, então, eu o fiz.

Ao final, entrelacei os dedos da mão direita aos dedos da mão esquerda de Giovanni, e os da mão esquerda à mão direita de minha amada Giordana. Erguera meus olhos sombrios aos céus e berrei, expulsando o ódio que me consumia as entranhas.

- SATISFEITO??? - Eu O confrontei. - Ele parecia responder, derramando Suas lágrimas em gotas de chuva que costumavam alegrar os dias de meu filho sepultado, ali, a um passo de meus pés. - Não se atreva a levar mais ninguém de minha família. - Com os dentes cerrados, ameaçara o Criador, sentindo a chuva fina lavar meu rosto transtornado. Giovanni desviara seus olhos inexpressivos de meu rosto duro como o mármore. Meu sorriso paralisado e meus olhos reluziam como pedaços de vidro. - Se quiser levar alguém, leve a mim, mas nunca mais ouse tocar nos meus novamente!! - Gritei uma vez mais. - Vc me escuta?

Certamente que não. Ele é egoísta, egocêntrico...invoque-me antes que seja tarde demais, Morgana.

"- Deixe-nos em paz. O que mais pode acontecer?"

***

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 01/12/2019
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