'MORGANA - ' O INÍCIO DO FIM '

O INÍCIO DO FIM

Os dias se passaram e eu o via, através da janela de nossa sala, desolado, logo adiante, à beira do túmulo de nosso filho, recostado à árvore onde Antoine costumava colher os frutos e trazê-los em seu alforje, despejando-os, orgulhosamente, sobre a mesa da cozinha.

- "Não morreremos de fome, mamãe!" - Ele dizia, empertigado, olhos brilhantes e claros como o céu. Eu pensei enlouquecer ouvindo o som daquela voz tornando-se mais grave à medida em que se aproximava da puberdade ecoando pela casa, consciente de que jamais voltaria a vê-lo, sentir seu carinho, sua proteção, seu zelo. O toque delicado e atrapalhado de suas mãozinhas em meu rosto...

Algo monstruoso crescia dentro de mim. Uma ânsia em me vingar de alguém, conquanto não me lembrasse de seu rosto. Logo refugiava-me em minha cama, cobrindo-me até a cabeça para que Giordana não me visse chorar. Aah! Minha menina era especial como as fadas que ela dizia ver. Pressentia-me, abrindo a porta de meu quarto, caminhando, cuidadosa até a beira da cama onde se jogava, displicentemente, abraçada à sua boneca. Seus gestos me surpreendiam bem como sua astúcia e inteligência. Eu a aconcheguei ao meu corpo e a cobri com o lençol. Ficamos ali, juntinhas, fitando a luz do luar que avançava janela adentro. Suas mãos inquietas alisavam a saia de sua boneca repetidas vezes, um gesto típico de quando reprimia seus sentimentos por medo de minha reação quase sempre repreensiva. E não poderia ser de outra forma! Eu não queria que ela sofresse. Não poderia deixá-la cair nas mãos dos que perseguiam inocentes nas ruas do nosso vilarejo em troca de moedas de ouro. Ela precisava entender que deveria ocultar seus dons ou poderes ou seja lá como Giovanni os chamava. Eu a repreenderia sim, se isso a salvasse do pior. Se ele, ao menos, concordasse comigo e não a incentivasse a desenvolver o que ele costumava nomear de "faculdades psíquicas". Talvez...

- Vc quer me dizer algo, filha? - Falei baixinho em seu ouvido, tocando a ponta de seu nariz afilado como o do pai. - Eu sei que sou chata e ranzinza. - Ela assentira com um risinho, por baixo das cobertas e eu a trouxe para mais perto de mim, passando uma mão por debaixo do travesseiro e a outra em torno de sua cintura. Ela pareceu gostar, pois aninhara-se debaixo de meu braço, beijando os nós de meus dedos. Nossos corpos estavam tão próximos que ouvia seu coraçãozinho batendo num ritmo acelerado. Pousei a mão sobre seu peito. Beijei o topo de sua cabeça. - Eu não faço por mal, Giordana. Vc ainda é muito nova. Não entende o que poderia acontecer se...

- Soubessem o que sou? - Ela me interrompeu, lançando-me um olhar curioso por debaixo de meu queixo. Desviei meus olhos dos dela, pois havia algo neles que me invadiam com lanças flamejantes. - E o que eu sou, mamãe? Uma bruxa?

- Ora bolas! - Suspirei indignada, abanando a cabeça, aturdida. Ela riu novamente. Gostava de meus cabelos despenteados, meus olhos arregalados. - Quem lhe disse uma bobagem dessas!?

- As fadas, ué! - Dissera-o simplesmente mostrando-me as palmas das mãos viradas para cima, encolhendo os ombros e os olhos brilhando de animação. Ficou parada por um tempo, naturalmente esperando que achasse aquilo tudo absolutamente normal. Meu sorriso era triste e confuso quando apoiei minha testa na palma da mão. - Ora, mamãe! - Revirou os olhinhos impaciente e continuou em um tom suave e brincalhão. - As fadas, os duendes, as dríades, os elfos, os goblins, o fauno...

- Pare!

- Por que tem medo...mamãe? - Sua voz era aveludada e penetrante. Seus olhos verdes hipnotizavam-me. A farta cabeleira ruiva deixava-me deslumbrada e intrigada, pois os meus cabelos eram negros e os de Giovanni, castanhos. A quem ela havia puxado? Se Giovanni algum dia chegara a duvidar de minha fidelidade, jamais o dissera. E o fato dela possuir alguns dons que nos impressionavam, como os de invocar o Vento ou manipular o Fogo da lareira com um simples gesto de sua mão fizera-nos pensar que talvez, alguns de nossos ancestrais pudessem ter legado a ela a Magia. Aterrorizava-me, nos tempos de opressão aos livres pensadores, o fato dela parecer-se tanto com uma linda e encantadora bruxinha quando saltitava atrás das borboletas ou falava aparentemente sozinha com o que eu não conseguia enxergar lá atrás, na clareira da floresta. Tinha por hábito observar-nos calada, por horas, com um sorriso compreensivo nos lábios e um brilho peculiar em seus olhos cor de esmeralda. E era exatamente dessa maneira que me olhava agora, aguardando por minha resposta.

- Não sei. - Inspirei fundo e devagar. Esticara meu braço e me apoiei nele, fitando-a de frente, enquanto afagava-lhe as madeixas. - Não confio neles. Não sei porque, mas não confio. - Suspirei dramaticamente quando a vira estampar um sorriso vitorioso em seu rosto delicado. - Diabos! Do que estou falando??? Eles não existem!

- Existem sim! - Afirmou ainda sorrindo. - E conhecem a senhora. - Bocejou, fechando os olhinhos cansados. - As fadas sentem a sua falta, mamãe...- De olhos fechados, não percebera minha aflição. Do que ela falava? De onde me conhecem se eu nunca cruzei os limites da clareira? - Contra quem quer se vingar, mamãe? Contra os ratos? As pulgas? Não houve culpados. - Perplexa eu a via lutar contra o sono como se coubesse a ela uma tarefa importante. Puxei-a para o centro da cama, arrastando-me para fora dela. Afofei o travesseiro, aspirando o aroma de Lavanda. Lembrei-me de Antoine que, assim como eu, amava aquela essência. Revirei os olhos contendo as lágrimas, pensando em meu menino debaixo da terra úmida, escura. Balancei a cabeça espantando o pavor e, antes de cobri-la com a manta de borboletas que eu mesma bordara, ela erguera, de súbito, seu tronco, com aqueles olhos inexpressivos, piscando, pesados. Pousei minha mão em sua testa, beijei o topo de sua cabeça, pedindo para que voltasse a se deitar. Mas ela insistia em falar, tocando meu rosto impassível. Não queria...não conseguia acreditar que ele havia partido sem me dar um último abraço. - Era a hora dele, mamãe. Ele deveria ir embora, de um jeito ou de outro. Sinto saudades dele, mas...- Ela se calou, aparentemente mergulhando em si mesma, com os olhos perdendo o foco e a nitidez, envolvendo o próprio corpo com os braços como sempre o fazia quando estava aborrecida ou ouvia algo que não conseguíamos ouvir, como se a tristeza interior lhe causasse frio. Nada falei pois não sabia o que fazer. Nunca soubera lidar com seus transes. Apenas dava-lhe tempo para retornar, tentando catar os cacos do meu coração destruído. Giovanni sim. Ele cantava para ela em dialetos que eu desconhecia e, então, ela retornava, plácida, mais formosa e forte do que antes. Invejava-os por serem tão ligados e por me sentir tão pequenina diante da cumplicidade de ambos. Meu Antoine e eu éramos tão ligados quanto eles dois. - Mamãe...- Sussurrou de olhos cerrados, inclinando-se para mim. - A senhora precisa escolher antes que ele a encontre.

- Ele... quem...filha? - Falei pausadamente, tremendo, sentada na beirada da cama, vendo-a fracamente iluminada pela chama tremeluzente da vela que se consumia, lançando sombras às paredes. - De quem está falando? - De chofre, ela se ajoelhou, apoiando suas mãos sobre meus ombros. Com os lábios rubros bem próximos ao meu ouvido, cochichou.

- Daquele que a persegue...mãe. - Imediatamente, com medo, recuei meu tronco, sentindo uma fisgada no peito.

- Abra os olhos, filha! - Ordenei, ofegando. Agarrei seus punhos, erguendo seus braços, afastando-a de mim. Recostada à cabeceira, ela não me obedecia...

- Daquele que a cerca e implora para que o chame. Ele quer a senhora, mãe. Quer que o sirva. Quer ser seu servo. - Sua voz agora era tão sombria quanto o que dizia.

- Pare...por favor. - Supliquei, retirando os fios de cabelo de seu rosto suado, a testa febril. Um forte arrepio sacudira meu corpo por inteiro quando ela me encarou, estreitando os olho e a boca sussurrou. - Não ceda à tentação. Não o invoque.

Como uma chama que se apaga com um sopro brusco, ela tombou para trás contra o colchão. Seu corpo em convulsão, os olhos revirados, os braços retesados ao longo do corpo, os dedos dos pés enrodilhados. Gritei por socorro, abraçando-a, rezando, implorando ajuda aos Céus.

- Filha, acorde! Acorde! - Enxugava o suor de sua testa tentando a acalmar os tremores com o peso do meu corpo sobre o dela. - Jesus, me ajude! Filha, acorde! - Gritava por seu nome, entre lágrimas, passando os braços por baixo de seu tronco, trazendo-a até o meu peito. - Eu não vou te perder também! - Avisei, aos berros, lançando um olhar de ódio à minha roda, a quem quer que estivesse, ali, naquele cômodo, conosco. - Não vou! Não vou! - Repetira afrontando o céu coberto por nuvens que agora escondiam a lua. - Giovanni, ajude-me! - O baque seco da porta contra a parede, os braços fortes dele tomando-a dos meus, seus olhos assustados e culposos. - O que ela tem? Vc sabe! - Afirmara, confrontando-o. - Vc já a viu assim antes! - Apontava meu dedo acusador contra ele que se afastava com minha filha em seu colo. Eu o seguia, praguejando e orando ao mesmo tempo, ouvindo-o cantarolar baixinho em gaélico, supus, pois conhecia cinco ou seis palavras do dialeto. Continuei a segui-lo pelo corredor, observando Giordana acalmando-se aos poucos, adormecendo no colo do pai. - Se algo acontecer à minha filha a culpa é sua!

- Não seja tola! - Com um chute, abrira a porta do quarto de nossos filhos. - Ela só precisa saber controlar essas intervenções.

- INTERVENÇÕES???

- Fale baixo! - Ele me fitou com os olhos severos, cerrando os dentes, deitando-a na cama. Ergueu a cabeça, olhando-me por debaixo das pestanas. - Não quer que ela acorde, quer?

- Ela falou com outra voz, Giovanni. Não era ela. - Sussurrei raivosamente, acomodando sua boneca ao lado de seu rostinho afundado no travesseiro. Fitara-o com espanto em meus olhos. - Ela me disse coisas estranhas. Tremeu tanto que parecia sair da cama...levitar e vc chama a isso de "Intervenções"??? Não me dê as costas! - Ele parecia evitar aquela conversa, apressando os passos em direção ao corredor. - Volte aqui! - Apressei meus passos e quase o alcancei. - Quero falar com vc, Giovanni Salviatti! - Ordenei parada sob o batente da porta com gana em pular sobre ele que, mesmo contrariado, irritado, confuso, ainda sorrira para mim antes de seguir em direção à estufa. Eu voaria em seu pescoço, esbofetearia suas faces e o cobriria de beijos se não voltasse meus olhos petrificados para a cama onde Giordana gemia, de olhos bem abertos, totalmente acinzentados, sem pupila, sem íris, os olhos desfocados que me procuravam sem me encontrar. Estava sonhando e dentro do sonho, estendia os braços tentando alcançar-me. Corri para niná-la com uma canção qualquer que devolvesse-lhe a paz de espírito, mergulhando em sua escuridão. Sentei-me para, logo em seguida, levantar-me cobrindo a boca, sufocando um soluço diante de seu rosto que voltava a se alterar sob a fosca luz do luar que novamente despontava lá no céu, clareando o quarto e suas feições. A torção dos seus lábios tensos, a contração dos seus olhos e seu jeito de baixar um pouco a cabeça e olhar-me por baixo das sobrancelhas faziam-me tremer, paralisada. Então, ouvi algo de que jamais me esqueceria.

- Ga'al, mamãe. Este é o nome dele. Ga'al. Não o invoque!

***

Estávamos prontos. Reunimos nossas roupas e alguns poucos pertences que levaríamos, devidamente arrumados no bagageiro da carroça, com quatro rodas gigantescas puxadas por nosso amado e leal Eros, um puro-sangue inglês doado a Giovanni por um nobre que o estimava muito. Partiríamos para bem longe dali onde havia rumores de rebeliões na cidade causada pelo furor religioso de um antigo morador do vilarejo que havia retornado com a incumbência de limpar as ruas dos hereges e seguidores de Satã. Seguidores de Satã, dei de ombros quando Giovanni contara-me seus planos de partirmos e, somente retornarmos quando o tal homem houvesse partido de volta ao inferno. Queria rir de tanta tolice, mas...não conseguia.

Eros estava alerta, e com a cabeça empinada, chutara a pata traseira para o ar, relinchando, atormentado. Giovanni, sempre dócil, erguera a mão e afagara-lhe o focinho, o pescoço longo e gracioso. Eros arfou em sua mão e, rindo, Giovanni dera uma palmada em seu flanco lustroso, jogando o restante das malas lá atrás, fitando-me com seu sorriso confiante. Passou por mim e sequer parou para...Diabos! Eu o segui até a cozinha, indignada com seu distanciamento.

- Não se esqueceu de nada? - Jogara em meu rosto, sorrindo maliciosamente, o pano de prato que arremessara no dele no dia em que nos amamos pela primeira vez. Eu o guardara como um souvenir, um amuleto da sorte. - É melhor ficar com ele caso queira me agredir novamente. - Parou por um instante, fitando-me de cima a baixo. Ele sabia o que aquele olhar provocava em mim. Deveria esbofeteá-lo ali mesmo. Deveria.

- Sinto muito pela estufa! - Lamentei sinceramente, com o pano encostado em meu peito arfante. - Eu sei o quanto vc aprecia aquele lugar e... - Ele se movia de um lado para o outro, buscando, achando, arrumando, deixando-me tonta. - Pode me ouvir???

- Construo outra onde quer que estejamos. - Beijou-me a testa e continuaria a caminhar com alguns livros debaixo do braço, um tanto desorientado, se eu não o agarrasse pela mão, puxando-o contra mim. Puxara-o com tanta força e desejo que os livros se espalharam pelo chão. Então ri de seus resmungos enquanto ele os catava. Erguera-se, subitamente, encarando-me e, por um segundo, suas narinas se dilataram, sua boca entreaberta parecia me convidar a vasculhar seu interior. Eu estava morrendo de saudades dele, de seu toque, de sua companhia. Esperava por um único momento em que pudesse me aproximar dele com cautela e pedir-lhe desculpas. Para o inferno! Não perderia mais tempo! Aproveitei o que o Universo oferecia-me e joguei-me em seus braços, enlaçando-o pelo pescoço, procurando, avidamente, por seus lábios. - Valho menos que seus livros? - Sussurrei contra sua boca, deslizando minhas unhas em sua nuca, arranhando-o de propósito. - Tenho saudades, amor. Desde que...- Hesitara ao dizer o nome de nosso Antoine que deveria estar ali, pronto para partir conosco, mas, não estava. Giovanni sim. Estava ali, reagindo aos estímulos, cravando as mãos afoitas em meus cabelos, puxando-os com força, os punhos fechados. Inclinei minha cabeça para trás, arquejando de prazer, ouvindo seu riso convencido. - Seu crápula! - Eu o xinguei, agarrando-o pela gola da camisa, beijando seu pescoço, sua bochecha, seu queixo. - Vc não me procura. Não conversa comigo. Vc me culpa? - Ele se afastou de mim para me ver melhor. - Diga. Eu sei que fui uma péssima mãe. Sei que acabei com sua vida. Eu sempre soube disso desde o dia em que o vi...em que o vi...na varanda! Isso! - Exultei, erguendo os olhos num entusiasmo. - Eu me lembrei! - Percebi em suas feições lampejos de culpa e receio. Minha memória retornava, aos poucos e, talvez por isso, beijara-me afobadamente, forçando a língua por entre meus lábios com tanta delicadeza e com tanta força. Gemi contra sua boca, arquejando, aliviada. Em meio ao caos, ele continuava a ser o meu porto seguro. - Eu acabei com a sua vida, amor. - Murmurei sem me separar de seus lábios. - Vc não merecia passar por isso. Sua família é rica e...

- Para o inferno o dinheiro, Morgana! - Recuei estreitando meus olhos, comprimindo meus lábios. - Vc não entende!? - Exclamara com sofreguidão. Senti a força de suas mãos em meus pulsos erguidos entre nossos corpos. - Eu escolhi vc! - Fixara seu olhar incisivo nos meus, sacudindo-me, aflito. - E se tivesse que voltar no tempo, faria as mesmas escolhas. Passaria pelas mesmas dificuldades porque vcs estariam comigo. Porque eu nada seria sem vcs. Porque vc me deu os filhos que eu sempre desejei, a vida com a qual eu sempre sonhei. Meus filhos não poderiam ter uma mãe melhor do que vc, Morgana, então, por favor, somente por uma única vez, escute o que digo e aceite que eu te amo e que não vou te largar jamais. Pare de pensar besteiras e aceite isso de uma vez por todas. - Olhei para ele intrigada, pois não sabia se deveria sorrir embevecida ou chorar, irritada. Eu ouvia uma declaração de amor ou estava sendo severamente repreendida? - Os dois, sua boba. - Ele esclarecera, mostrando-me suas covinhas. Mordiscava meu lábio inferior, deixando minhas pernas bambas.

- Ei! Eu estou aqui! - Giordana pigarreou, ruborizada e, logo em seguida, riu jogando sua cabecinha para trás. - Eca! Eu nunca vou beijar ninguém assim!

- Não mesmo! - Asseverou Giovanni piscando para mim. - Não até completar trinta anos e então, começar a namorar.

- Trinta, papai! - Protestou, entre risos. Ele apenas sorriu, balançando a cabeça enquanto suas mãos apertavam a minha cintura, as minhas enterravam-se em seus cabelos agora completamente sem corte. Havia paixão e dor em sua expressão e eu amava cada parte daquele homem. Ofeguei quando ele ronronou sedutoramente ao meu ouvido.

- E como mulher, posso lhe garantir que não existe ninguém neste mundo com quem eu gostaria de dividir minha cama e meu amor, então, nunca mais fale essas coisas, porque eu te amo. Sempre te amei e continuarei a amar até que fiquemos velhinhos e nossos ossos fiquem crocantes, rangendo como a porta do nosso quarto. - Eu ri de olhos fechados, sentindo seu polegar acariciando meu lóbulo direito. Deus! Se eu soubesse que aquele gesto, repetido por anos de um convívio repleto de boas lembranças, seria o último, eu juro...pararia o Tempo. Invocaria os elementais, as fadas, os elfos. Venderia minha alma ao demônio se preciso fosse, somente por congelar aquele momento.

Ele enxugara com o dorso dos dedos as lágrimas em meu rosto. - Escute com atenção o que vou te dizer agora, amor. - Sua voz tornara-se tensa como as cordas de um violão. Seus olhos encaravam-me com temor, suas mãos descansavam sobre meus ombros. Estávamos em meio à sala e nossa Giordana, sentada na cadeirinha de madeira do irmão. Focava toda a minha atenção aos seus lábios e ao que ele iria dizer portanto não compreendera, naquele momento, o motivo pelo qual ela chorava silenciosamente, agarrada à sua boneca. Sentia-me num sonho, a névoa espessa a se espalhar pela sala até a cozinha, cobrindo a porta de entrada. - Morgana! - Ele gritou, olhos arregalados, umedecendo a boca seca. - Ouça!

- Diga...

- Aconteça o que acontecer, eu quero que...

- Pare! Não gosto quando fala assim!

- Ouça-me! É importante! - Cerrei meus olhos, apurando os ouvidos. Galopes apressados, relinchos nervosos, gritos, xingamentos. - Olhe para mim! - Ele suplicou entredentes. Eu o fitava com os olhos pesados de sono. Sim. Era um pesadelo que acabaria em breve e Antoine surgiria pela porta com mais frutas em seu alforje. Assentira com a cabeça, imaginando meu menino atravessar a sala, correndo desajeitado, com sua blusinha branca de mangas bufantes e suas botas de couro. - Sei que me ouve, Morgana. - Com a voz embargada, ele continuou, pois parecia não ter tempo a perder. De onde surgira aquela urgência? Aquele temor estampado em suas faces? - Haja ou que houver, saiba que o que fiz foi por amor. Não queria que vc sofresse por mais tempo com o seu passado.

- Não entendo. Do que...

- Tudo o que fiz foi por te amar demais e não querer que sofresse por mais tempo. - Encostando sua testa à minha, falara baixinho, com os olhos cheios d'água. - Eu sei que não deveria ter feito sem o seu consentimento, mas...te ver sofrer...

- Não, não, não, não, não! - Afastara-me de súbito, abanando minha cabeça, sem querer continuar aquela conversa. - Não quero saber de nada! - Declarei, desvencilhando-me de suas mãos. - Me solta! Vou buscar nosso filho. - Ele me fitou com tanta compaixão e angústia! Aquele tipo de olhar reservado aos loucos ou às crianças. Abanou a cabeça. Piscou os olhos como se quisesse me ver melhor. - Vá na frente com Giordana. Eu vou buscar Antoine e nos encontramos na carruagem. - Dera-lhe as costas, saltitante. - Eros nos espera!

- Morgana...- Ele falou num tom grave, lento. - Segurou-me pelas mãos, enlaçando-as entre as dele. - Precisamos ir...

- Eu não quero ir! Solte a minha mão!

- Não há tempo!

- Por que a pressa repentina!? - Levei minhas mãos ao estômago, pois sentia uma dor profunda...um vazio...um medo infundado. - Está vendo algo que me esconde?

- Eu não. - Erguera o queixo, apontando-o à filha. - Mas ela sim. - Esclarecera parecendo perdido. - Não tenho o dom da vidência, mas ouço seus pensamentos. - Estendera-me as mãos fortes e trêmulas. - Vamos! Pelo amor do Cristo!

- De jeito algum! Não sem o meu Antoine! - Ele me soltou, desesperançado. Eu retrocedia em direção à porta dos fundos onde enterramos nosso bebê. Ele avançava, cuidadoso, entrelaçando os braços em minha cintura. Lutei contra ele. Chutei o vento com as pernas erguidas apoiando-me em seus braços. Arranhava sua pele, clamava por Antoine, socava a lateral de seu corpo com meus punhos fechados até me cansar e quedar-me exausta, magoada em seu abraço. Como ele poderia ter se esquecido do filho? Do próprio filho? Virei-me para ele e ele certamente enxergou a desolação em minha alma. Pois chorou. Simplesmente chorou. Chorou por mim, pelo filho, pela filha e por ele mesmo. Afaguei seus cabelos, cheia de compaixão e continuei a falar e falar . - Meu filho está aqui. Não posso deixá-o sozinho! Vc não entende? Ele está lá fora...no frio! - Aproximava-me da porta, deslizando minhas mãos de seu braço até as pontas de seus dedos. - Eu preciso tirá-lo daquele lugar escuro...

- ELE MORREU! - Giovanni jogara-me na cara o que eu não conseguia admitir, embora conhecesse a verdade. Mais um puxão vigoroso e eu resistia, estapeando suas mãos agora repugnantes. Ele parecia enlouquecer à minha frente. Eu jamais o tinha visto tão nervoso, impaciente, transfigurado. - Precisamos sair daqui, Morgana! Salve sua filha!

- Como??? - Piscara, balançando a cabeça, atônita. - Salvar??? De quê???

- Vc sabe! Vc ouviu!

- Não...- Dissera sorrindo, alucinada. - Era só um sonho!

- NÃO, MORGANA! ACORDE! - Enfim, eu o seguia sem raciocinar. - Vai dar tudo certo. - Assegurou-me com ternura, com o braço em meus ombros. - Precisamos sair agora!

- Precisamos...

- Papai...- De costas para nós dois, olhos fixos na porta da frente, Giordana declarou num fio de voz. - Eros está com medo deles.

Ouvimos, estarrecidos, o resfolegar aflito de Eros e o ruído de suas patas contra o chão. Por segundos, minha mão segurou a dele e então senti a força que ele me emprestava para o que estaria por vir.

***

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 07/12/2019
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