'MORGANA - A UM PASSO...'

A UM PASSO...

- Acorde, Morgana.

- Onde estou? - Pergunto, sentindo-me livre, meu corpo suspenso por mãos invisíveis. - O que eu fiz? - Ouço sua voz serena a entoar uma canção tão doce que me faz sorrir. Arquejo de exaustão e sinto as lágrimas quentes em meu rosto frio. - Tenho medo. - Falo baixo, sentindo a Presença ao meu lado. - Eu morri?

- Não. Ainda não. - Ele está tão próximo a mim que sinto sua respiração em meu pescoço, mas ainda não posso vê-lo. Não quero abrir meus olhos. Tenho medo de onde possa estar. Tenho medo de ter perdido tudo ou apenas a única pessoa que me restava no mundo e, com ele, o seu amor. - Vc não está morta, Morgana. - Ele afirma, como se escutasse meus pensamentos. Creio que os escuta, pois agora ele está rindo com doçura enquanto em me encolho, volitando. Estou tão leve...tão leve e tão culpada. Meu corpo já não dói. Meu coração palpita. Dói a sensação de vazio. Cubro meu rosto com as mãos. Tenho vergonha. Eu o deixei...eu o decepcionei. - Vc não partiu, Morgana. - Ele insiste mostrando impaciência e ternura, ao mesmo tempo, em seu tom de voz. - Apenas está no meio do caminho.

- Que caminho!? - De súbito, abro meus olhos, tombando a cabeça para trás. Desequilibro-me sem ter consciência de onde me apoiar já que estou suspensa em meio à escuridão. Ele me toca, esfregando meus braços para me manter aquecida. Eu paro de me agitar e me acalmo por um instante. - Vc sabe se ele...?

- Está vivo. Como prometi. - Afirma a Presença. Eu sorrio, levando minha mão ao peito. - Por enquanto. - Ele complementa ainda com a mão forte em meu braço. Seu toque é macio, sedoso. Sinto o pulsar insistente da minha artéria carótida no pescoço. Penso que vou desmaiar, mas, como desmaiar se já estou no...

- Que lugar é esse? - Insisto em saber. Preciso de definições. Tenho planos de salvar o homem a quem eu traí. Agora me lembro. Eu o entreguei ao padre porco. Como eu pude acreditar que ele me trairia? Eu bati em seu rosto...pobre Giovanni. Meu amor, eu não aprendi a controlar meus impulsos. Vc tentou me ensinar. Aquela coisa de inspirar e expirar não deu certo, amor... - QUE LUGAR É ESSE?? Me ponha no chão! Eu exijo!

- Como quiser, meu amor - Minha mão cobre a minha boca e sufoco um soluço. Vejo um borrão branco em meio às trevas. Ele quer se mostrar, pela primeira vez, desde que surgiu em minha vida. Não sei se quero ver sua aparência. Não. Não quero. Não-Não-Não. - Não tenha medo. - Ele me pede num murmúrio. - Só farei o que vc quiser. Quer me ver? Deseja me conhecer?

- Vc é um monstro? Um demônio??? Daqueles com cifres e pés de bodes e uma longa cauda?

- Morgana... - Disse ele em um tom de leve repreensão. Como eu costumava usar com meus próprios filhos quando me perguntavam sobre algo que os assustava.

"Deus castiga, mamãe?", Antoine me pergunta diante dos olhos astutos de Giordana. Sorrio e com o mesmo timbre de voz da Presença, eu o respondo: "Meu filho...Deus é amor. Como pode castigar?". Era mentira, filho! Ele castiga e condena! Estou aqui, longe de vcs...de seu pai. - Resmungo contra as palmas de minhas mãos.

- Morgana!

- Sim...- Minha voz está abafada pelas mãos. Não quero falar...não quero. Quero morrer...

- Estou esperando...- Inspiro e expiro profundamente e assinto com a cabeça. - Vc quer me ver? - Está mais do que na hora de saber com quem estou lidando e quais são os seus propósitos. - Espero que goste. - Sinto uma pontada de timidez no ser que possui tantos poderes. Mordo o canto da boca e junto minhas mãos em forma de prece. Vejo a fumaça se condensar à minha frente e meus olhos se arregalam.

Um homem alto, de cabelos castanhos, com grandes olhos escuros e um boca sensual e muito bem-feita vai se formando ante meu olhar de perplexidade. Eu tremo descontrolada e minhas pernas negam-se a me sustentar. Ele me apoia, pousando suas mãos fortes em meus cotovelos. Dou um suspiro profundo e descompassado sem tirar os olhos dele. Seus braços são muito musculosos e suas mãos, fortíssimas. Seu rosto perfeito nas proporções. Seu cabelo está ligeiramente despenteado como se por um vento. O lindo rosto fica trágico e os olhos castanhos se abrandam com uma tristeza infinita. Mantenho minha boca entreaberta e meus olhos mostram-se surpreendidos à medida em que ele vai surgindo. É tão...tão...surpreendente! - Sou tão repugnante assim? - Diz ele, com as palavras fluindo como música, cheias de mágoa e de uma força serena. - Responda, meu amor. - 'Amor? Isso me incomoda'. - Ainda que eu considerasse seu comportamento um tanto invasivo, meu coração se enternece por seu jeito de me tratar e por sua inegável beleza. Num impulso, admito.

- Não. De jeito algum...- Eu o observo atentamente por segundos, tentando aceitar aquela nova realidade, embora não faça ideia de onde esteja e porque ele me escolheu. - O que quer de mim, afinal!? - Disparo, sem mover um músculo, porque ainda não vejo a luz. Não há nada além dele diante de mim e, ao meu redor, apenas o breu e lufadas de ar aquecido com um odor agradável, doce e, para mim, desconhecido. Inspiro profundamente, uma vez mais. Ele não para de me fitar como se esperasse algum tipo de resposta. - Por que me persegue? Por que a mim? O que tenho de especial? Com tantas outras por aí...- Faço um gesto com a mão que, ao se agitar, move pequeninas partículas douradas no ar que se desfazem rapidamente.

- Eu preciso de vc.

- Para quê? - Ele hesita, baixando os olhos e abrindo um sorriso sombrio. - Não. Não me diga que é para me usar covardemente como os outros? - Ele me vê recuar, assustada e abana a cabeça vagarosamente numa negativa, fitando-me desolado. Sua voz é firme quando toca em minha mão. - Não me machuque...por favor.

- Nunca. - Beija os nós de meus dedos. - Se eu o desejasse, já o teria feito há muito, não acha?

- Certamente. - Dou um passo à frente já acostumando-me à ausência da luz. Estou bem próxima a ele que eleva o tronco e o queixo, fitando-me de uma maneira incisiva. - Vc poderia ter feito o que quisesse comigo. Tem poderes. E é justamente isso que não entendo. De que sirvo para vc então? Nada sou. Não tenho títulos. Não tenho nada...- Sinto minhas forças se esvaírem. Curvo meu tronco e ajoelho-me no que penso ser o chão. Não. Há grama onde agora toco. - Não tenho família, filhos...meu Giovanni. - Choro com a cabeça recostada às coxas flexionadas. Cubro minha cabeça com os braços e sinto que meus cabelos estão limpos. O sangue, as feridas. Onde estão? Seco as lágrimas e ergo a cabeça. Ele me olha com os braços estendidos. - Não sou nada. Não sou digna. O que quer de mim?

- Só vc. - Ele me puxa com gentileza e agora vejo com perfeição seus dentes brancos e alinhados. Lembro-me de meu marido. - Espero por esta chance há milênios, querida.

- Conte-me sua história. - Peço, interessada. Tento compreender o que ele quer de mim. Astucioso. Ele me ouve. Escuta meus pensamentos. Outro sorriso provocante. Se não amasse tanto ao meu Giovanni, seria capaz de me interessar por ele tamanho o fascínio que ele exerce sobre mim. - De onde vem? Do inferno? Foi expulso do Paraíso? Conhece Deus? Há outros como vc?

- Por Baco! São muitas perguntas! - Ele ri e seu riso é contagiante. Sorrio para ele, desconcertada. Estou morta, rindo para um demônio. O que mais eu poderia querer para minha vida? - Voltar para a Terra? - Ele me sugere, erguendo uma das sobrancelhas. Estreito meus olhos e assinto, fitando-o por sobre minhas pestanas. - Vc ainda tem tempo.

- Quero respostas! Responda! - Ele me lança um olhar reprovador, quase severo. Eu o compreendo e logo reformulo a frase. - Por favor, preciso entender o que se passa aqui. Vc é um demônio? - Ergo os braços e os desço logo em seguida. - Não que isso faça diferença. Estou perdida mesmo. Não desejo ir para o céu onde os idiotas nos deixaram sofrer...mas...

- Não sou um demônio. - Ele dá um passo em minha direção, segura minhas mãos entre as dele. São mais finas do que a de meu Giovanni. Seu hálito doce e quente toca minhas faces. Seus olhos brilham. São magníficos, mesmo no escuro. - Não creio em demônios. - Meu queixo caí. Estou perplexa. - Ele não cria seres para destinados ao Mal. Os que se desvirtuam o fazem por si próprios. Disso Ele não tem culpa. - Seus olhos perdem o foco por alguns segundos. Parece se lembrar de um passado distante e doloroso porque suas sobrancelhas se contraem. 'Interessante'. - Eu poderia ter seguido adiante, mas...- Abana a cabeça violentamente com os olhos cerrados querendo espantar lembranças ruins. Ele para, de súbito. Eu arquejo, ressabiada. - Não importa! - Emite um ruído semelhante a um risinho, seguido de um pigarro. - Não há como voltar no tempo. - Fala baixo e seus olhos exibem um brilho bizarro.

- Minha nossa! - Finjo descontração porque vejo um pouco do ue fez no passado. - Vc já viu Deus!? - Aperto suas mãos entre as minhas. Arregalo meus olhos curiosos. - Como Ele é?

- Já O vi algumas vezes, mas, isso não vem ao caso, Morgana. - Faço bico e reviro os olhos. De fato, havia me esquecido que estava no ...Deus...ainda não sei onde estou. Estou morta? Viva? Morta-viva? - Vc está entre os dois mundos. - Novamente, ele , esclarece, pacientemente. - Não está morta. Seu corpo está intacto. O veneno não foi forte a ponto de lhe tirar a vida. Eu a trouxe para cá.

- Para quê? Vc me tirou de Giovanni!? - Puxo minhas mãos com violência, desvencilhando-me dele. - Biltre! Ele...ele...chamou por mim? Ainda se preocupa comigo? Está vivo? - Ele leva o indicador aos lábios num gesto de silêncio. Pelo jeito como me olha, sinto que o melhor é calar a boca e escutá-lo, quieta. Ele ainda me faz tremer de pavor, apesar de seu cavalheirismo. Há algo nele...

- Eu a conheci na igreja do padre Pietro.

- Como assim? Um demônio na igreja!?

- Não sou demônio! Já disse...- Ele revira os olhos, angustiadamente. - E aquilo nunca foi uma igreja. - Ergue os cantos da boca e em seus olhos há lampejos de ironia. - Não da maneira convencional. Havia muito mais trevas lá dentro do que a presença do Criador. E vc sabe disso. - Levo minhas mãos ao estômago quando penso no que passei naquele lugar infernal. - Eu tentei te salvar. Juro. Ele teria feito coisas bem piores se eu não a tivesse ajudado. - Abro a boca para falar e logo a fecho novamente. Cerro os olhos e sinto um longínquo cheiro de fumaça. Não ligo. Estou perdida mesmo. Dou de ombros e ele continua a narrativa. - O fato é que encontrei em vc a mulher...- Ergo minha sobrancelha ameaçadora. - A pessoa...- Ele se corrige a tempo. - Capaz de me dar o que quero.

- Que seria? - Ouso enfrentá-lo com as mãos na cintura. - O que eu posso te dar?

- Um corpo. Quero voltar a viver na Terra e preciso de um corpo.

- O meu??? - Aflijo-me com o tom estridente de minha própria voz. Ele volta a rir. Parece-me tão jovial. - Não posso! Procure um para vc. Mate alguém, desenterre um morto! Mas, o meu corpo é meu. - Empertigo-me, com os braços ao lado do corpo, as mãos cerradas em punho. - Além do mais, dois corpos não ocupam o mesmo espaço. - Suspiro ao me lembrar de tudo o que Giovanni tentou ensinar para mim durante nossa vida em comum. Ele lia e relia livros e mais livros, gastando seu precioso tempo somente por me ensinar o que aprendera em seus intermináveis estudos, ciente de que eu não prestava a menor atenção ao que ele dizia. Fixava-me à sua boca vermelha, fina, umedecida por sua língua tão doce e devassa. Ele ficaria orgulhoso de mim agora. Sim. Ficaria. - Física! - Explico após sair do transe. - Mesmo que vc queira entrar em mim, não vai poder morar comigo.

- Por Baco! - Ele exclama, sorrindo. - Vc é especial, Morgana. Mal sabe onde está, perdeu tudo o que possuía de mais sagrado e ainda é capaz de ser tão...tão encantadora. - Cruzo os braços na altura do peito e forço um sorriso. - Vc não me entendeu! - Assusto-me porque ele agora se inclina para mim, ameaçadoramente, a ponto de quase encostar sua testa na minha. Seus olhos estão assustadoramente ansiosos. - Preciso de vc. - Ouço sua voz rouca em meu ouvido. - É a única com o poder capaz de me tirar das sombras onde vivo por séculos. A única com um poder que desconhece. Junte-se a mim, amor. Junte-se a mim e eu os faço pagar ceitil por ceitil pelo que lhe fizeram.

- VERDADE!? - Exulto exasperada, empurrando-o com as mãos espalmadas em seu tórax. Impressiono-me com sua força. Ele não sai do lugar. - Podemos voltar e acabar com todos os traidores, cafajestes? - Ele faz que sim. - Com o padre porco??? - Ele assente uma segunda vez e eu sinto a fúria voltar a percorrer minhas veias. - O que precisa que eu faça? - Sussurro, inflando as narinas. - Diga! Eu faço! Mas, antes, preciso que salve Giovanni. - Minha voz é suplicante. Meus olhos se enchem de lágrimas. - Eu preciso dele. Preciso dizer para ele que o que fiz foi por ciúmes. Ele sempre tentou me ajudar a controlar meus impulsos e...- Sua mão tapa minha boca. Sufoco um arquejo de horror.

- Cale-se. - Seus olhos vasculham a escuridão. Os meus os acompanham na inútil tentativa em enxergar algo que ele parece visualizar sem problema algum. - Não há tempo a perder, Morgana! - Seu tom apavorado me dá medo. - Escolha! Quer viver ou morrer?

- Por Deus! - Exclamo tossindo, desnorteada. - De onde vem essa fumaça? Que cheiro é este? Parece carne...- Faço uma careta. - Argh...carne... - Giro ao redor de meu corpo e nada vejo, além de seus olhos dardejantes sobre os meus. Suas mãos apertam com força meus braços. - O que diabos está acontecendo? - Rosno entre os dentes. - Eu quero viver! Quero voltar! Quero o meu Giovanni! - Grito enquanto inalo algum tipo de poeira que começa a queimar os meus pulmões.

- Então invoque-me! - Sua voz agora é grave...quase gutural. - Use de seus poderes! Não me olhe deste jeito! Sabe que pode invocar os elementais, as forças da Natureza. - Meus olhos estão ardendo. Meu corpo se contrai. Abro a boca para responder e só consigo tossir. - É sua última chance! Não seja tola! Seja minha. Aceite-me e eu te salvarei. - Eu o vejo se afastar. Minhas mãos estão atadas novamente. Atadas a um tronco. Diabos! De onde surgiu este tronco. NÃO! NÃO-NÃO-NÃO. Não...- Engulo fumaça. Já não consigo abrir os olhos. - Não...me...deixe...

A figura de repente tremeluziu como se uma luz indefinível houvesse caído sobre ela. Torna-se então transparente e uma lufada de ar quente atinge meu rosto, assustando-me. Estou só! Não...não me deixa. Tenho medo.

- Chame por mim. - Sua voz se distancia. - Não vou te abandonar, Morgana!

- Salve Giovanni! - Grito, ouvindo o farfalhar...o crepitar de folhas secas logo abaixo de mim. - ONDE ESTOU? - Inspiro uma forte camada de fumaça negra que me faz calar. Ergo minha cabeça para cima. Vejo o céu azul. - Ele se foi, deixando-me só sem nada por perto além da densa fumaça que, aos poucos, se desvanece. Por mais que eu soubesse estar perdida, jamais poderia supor o que meus olhos comprimidos pela ardência mostravam-me agora. Recosto minha cabeça no tronco da árvore. Os dedos de minhas mãos procuram, afobadamente, livrar-me da corda a qual estou presa. Quero gritar. Pedir por socorro. Vejo as nuvens no céu. As copas da árvores logo adiante. Ouço risos, lamentos. Estou no inferno. Está quente como no inferno.

'O inferno é fruto de nossa consciência, amor. Não é um lugar específico', ouço meu Giovanni. Estou em frente à lareira. Ele me abraça enquanto eu me abrigo no espaço entre seu ombro e pescoço. Seu cheiro é tão bom que lambo seu pescoço. Ele me olha por sobre os óculos, atirando-o longe. Ele apoia a mão em minha nuca e seu polegar acaricia meu lóbulo esquerdo. Aaahh! Que saudades de seu toque. Sempre fez isso. Se há algo que o identifica como o meu Giovanni é este gesto simples e que diz tanto ao mesmo tempo. Faço amor com ele e as chamas tremeluzentes da lareira parecem querer nos alcançar. Nossos olhos se cruzam.

- Te amo para sempre...- Diz ele com uma infinita tristeza no olhar. Não o entendo. Por que está triste?

- Te amo e nada vai nos separar, marido. - Cravo minhas mãos em seus cabelos desalinhados, beijo sua boca com voracidade até que ele se esvazie em mim. Sempre terminamos, um nos braços do outro, em ternura e em um abraço febril. Há fogo em seus olhos. Eu o atiço porque o amo, o desejo, o quero ali, novamente, sem me importar com o inferno, o purgatório ou com o céu...o céu está escuro. Por que há tantas pessoas me olhando? Sinto vergonha. Cubro meu corpo. Estão nos olhando! Giovanni! Giovanni! Ouço minha voz ecoar dentro de mim. Como em um pesadelo, berro e a minha voz não sai da garganta. Arde. A garganta arde tanto! O cheiro é de carne...carne queimada!

- Ga'al, me ajuda! - Murmuro sentindo meus pés presos ao tronco. O tronco é grosso com farpas que fincam-se em meus dedos. Mas a dor das mãos retalhadas não se compara em nada com o calor abrasador, causticante que sobe até minhas narinas. Balanço minha cabeça de um lado para o outro. Preciso me livrar deste tronco, das cordas e da brasa que arde ao lado do meu corpo. O fogo. É impressionante o som de suas labaredas ouvidas assim, tão de perto. Contenho a ânsia de vômito. O cheiro de carne derretendo-se misturada ao um forte odor de gordura e gases me enjoam a ponto de eu sentir uma violenta convulsão. Tudo jorra de dentro de mim. Volto-me para o canto contrário ao corpo em combustão. Horrorizo-me sem ainda compreender onde me encontro. Uma leve brisa e a chama alonga seus tentáculos tocando meu braço preso. Sinto a pele queimar. Afasto-me, girando meu corpo na direção contrária. DEUS, ME AJUDA! - Ainda creio n'Ele. Após todo o sofrimento que passei, ainda creio na intervenção divina. Tola! Eu não estou em casa. Eu não estou em casa.

- Despertem a bruxa! - Emito um gemido de dor. Algo pontiagudo acaba de atingir o centro de minha testa. O líquido quente escorre vagarosamente entre as minhas sobrancelhas. Chega à minha boca. Seu gosto é de ferro. Tem gosto de...sangue!

- GA'AL! Imploro por ele, prestes a sufocar. Todos ouviram, porque eu gritei por seu nome.

- Bruxa! Hegere! Queime na fogueira! - Ouço vozes em toda a minha volta. Mas há uma voz clara, cortante que instiga as outras. Eu a reconheço. Eu a reconheceria mesmo que morresse e voltasse a viver por séculos e séculos consecutivos. Aquele tom sarcástico, o discurso fanático, os olhos cheios de ódio. Eu a conheço!

Estou prestes a surtar. Meus cabelos cobrem meu rosto, meu tronco curva-se para frente. Abro os olhos e os enxergo. Não. Não. Não. Não, não, não! É ele! Estou morta. Vc não pode...NÃO PODE ME MATAR NOVAMENTE!

- Amante de Satã! - Grita o padre Pietro em meio à multidão alucinada, sedenta por mais um espetáculo nefasto. Ouvia os relatos de como mulheres inocentes sofriam queimadas vivas em praça pública. Sofria por elas, abraçada ao meu homem, em nossa cama segura. Jamais poderia imaginar que, em algum momento, eu estaria no lugar delas. E estava. Estou. Estou consciente de tudo agora. Meus hormônios estão em ebulição. Meu cérebro confuso ordena que eu busque uma saída imediatamente enquanto o ouço a berrar como um louco. - Vcs voltam hoje ao lugar de onde vieram, vagabunda! Prostituta de Belzebuth! - Ele continua, de pé, sobre uma pedra. Está acima dos outros que o veneram, aos urros. Reconheço, decepcionada, entre eles, amigos de meu Giovanni. Seus alunos, os pais dos alunos. Mães desesperadas por salvarem seus filhos de doenças curadas pelas plantas cultivadas em nossa estufa. MALDITOS! - Voltem para o inferno! Queimem no inferno pela eternidade! - Eu os via por entre as fagulhas do corpo carbonizado ao meu lado e quando a aterradora ideia de que aquele corpo, já sem vida, poderia ser a do meu Giovanni, obrigo-me a voltar meus olhos, ainda cerrados e desesperançados à direita.

- Não permita, Senhor. Não permita. - Elevo meus olhos aos Céus numa última prece. Sussurro e os porcos imaginam que estou invocando algum ser maligno. Tacam-me mais pedras. Resvalam em meu peito, em minhas têmporas. Quero chorar de dor e desespero, mas, preciso encontrar coragem para me certificar de que meu grande amor havia partido de uma forma tão cruel. - Ele sempre foi bom. Sempre foi Luz, Senhor! - Estico meu pescoço num esforço hercúleo e olho para o lado. - Não permita!

Um sorriso de alívio brota em meu rosto ensanguentado. Apesar de lamentar por seu sofrimento, regozijo-me em ver, próximo ao meu corpo, na fogueira em extinção, um amontoado, negro como piche, de carne, ossos e restos de fios loiros e longos. Mais uma havia partido sob os olhares cruéis de um povo sem amor. Eu seria a próxima, mas...

- Giovanni...Giovanni. Vc me ouve, amor? Fale comigo! - Concento-me nele, nos dias em que vivemos em paz, em nosso lar, com nossos filhos, com o nosso bom Eros. Sinto o amor que compartilhávamos antes da Escuridão chegar e nos tomar tudo. Concentro-me porque foi assim que ele me ensinou a usar a telepatia. - Giovanni! Vc ainda vive!? Só assim poderei morrer em paz, amor...

Dois homens encapuzados carregam archotes que iluminam o entardecer. Caminham em minha direção. Sei o que farão logo a seguir. Morrer queimada. Não temo. Temo não ouvir a voz dele...uma vez mais.

- Giovanni...- Não há mais voz em minha garganta fechada ou ar em meu pulmões. Porém, tento uma última vez. Sinto sua mão em minha nuca. Imagino a cena com todas as forças que me restam. Ele acaricia minha orelha com o seu polegar...- Giovanni, perdão, amor. - Balbucio de cabeça baixa, vencida, exaurida. O homem com capuz encosta o archote aos galhos secos ao redor da pilha de lenha onde apoiaram meu corpo preso ao tronco. Lágrimas de saudades e de remorso misturam-se e lavam minhas faces enegrecidas pela fuligem. É o fim. - Não se esqueça de mim...meu grande e eterno amor. - A fumaça branca logo cobre minha pouca visão. Estou sufocando sendo queimada de dentro para fora. Não há mais esperanças. Ele se foi. Não quero ficar. Entrego-me às chamas.

- NÃO! RESISTA, MORGANA! Me ouça...amor...me ouça. Vc pode...vc tem que resistir!

- Giovanni??? Ainda vive??? Como posso saber se é mesmo vc? Não consigo...ver...não respiro.

- Amor. Abra os olhos e lute! Acorde, Morgana! ACORDE! Três, dois, um.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 15/12/2019
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