'MORGANA - UMA ALIADA'

'UMA ALIADA'

'Vc é uma bruxa. Use de seus poderes.'

Tais palavras não saem de minha cabeça e, talvez, por isso, tenha sofrido mais agressões físicas por parte de Ga'al do que nos dias anteriores ao encontro com aquela senhora. Resolvo procurar por ela. Ela, certamente, tem algo a me dizer. Aquele encontro não fora algo fortuito. Não. Os olhos do menino buscaram por mim. Chamaram por mim e eu os encontrei. Sinto que ela poderá me ajudar de alguma maneira. Ainda não sei como, mas sinto.

Vou à cidade enquanto ele dorme. Asqueroso, lascivo, num corpo humano, também tem necessidades. Quer descansar para depois continuar a me atormentar. Eu o embriago com vinho e então ele dorme profundamente. Antes de sair, ainda o vejo a se espalhar pelos lençóis com um sorriso medonho em seu rosto perfeito. 'Espere por mim', penso algo quando, de fato, escondo um outro pensamento: 'Depois do padre, vc será o próximo'.

Ainda não domino a arte de camuflar meus pensamentos e é por este motivo que a procuro pelas vielas, casas, pessoas que encontro. Eu detalho traços do rosto da senhora rechonchuda com os cabelos loiros, lisos, presos em um perfeito coque e suas bochechas rosadas a cada um que faço parar a fim de me escutar. Sou incansável percorrendo as ruas, os becos, as igrejas, tabernas onde alguns frequentadores me reconhecem como a cortesã que sou. Estou disfarçada, com um longo manto preto e capuz cobrindo meus longos cabelos negros. Ainda assim, meus olhos verdes e tristes me denunciam. Falo da criança com os olhos azuis e risonhos. Eu os procuro por horas, certa de que, a qualquer momento, Ga'al poderá me encontrar e recomeçar a me torturar física e psicologicamente, porém, nada me impede de seguir adiante. Estou tão angustiada que já não posso suportar viver desta forma e morrer é algo que ainda não pretendo. Não antes de consumar minha vingança.

- Já lhe disse para evitar tais pensamentos, menina.

- Senhora! - Exulto, com o coração pulsando de alegria. Seu rosto meigo, sereno não escondem o medo quando ela, lançando um olhar desconfiado ao redor, me puxa para dentro de sua casa. - Eu estava à sua procura! - Falo alto, intrigada, enquanto a sigo. Estou feliz e cheia de esperança. - Como me achou? - Meu sorriso desaparece quando fixo meus olhos em seu semblante branco como cera; frio como o mármore. - Perdão...- Baixo os olhos envergonhada. Deveria ter ficado em casa, ao invés de levar problemas à mãe de uma criança que naturalmente necessita de segurança. E minha presença em sua casa atrairá o Mal. Ela muda de expressão enquanto me fita, calada. Parece ouvir cada pensamento meu, abanando a cabeça como se lidasse com uma criança da idade de seu filho. - Perdão. - Repito numa súplica. - Não deveria ter vindo. Fui impulsiva. Sempre fui assim, meu...meu...- Um nome familiar me foge à lembrança. Um nome, uma sensação de frescor, de júbilo, de leveza...de amor percorre meu ser. Um nome. Um nome masculino de alguém que não conheço e que, no entanto, mexe com todas as fibras de meu corpo. - Bem...- Confusa, continuo. - Alguém tentou me ensinar a controlar meus impulsos...- Rio, ruborizando. - Mas, acho que falhou. - Ergo as mãos e encolho os ombros. Faço uma careta. - Porque estou aqui. - Engulo o riso e finalmente lhe dou uma brecha para acariciar meu rosto como uma mãe faria. Ocorre-me que jamais tivera um afago materno. Eu já tive mãe? Claro! - Reviro os olhos, pois nem eu me aguento de tão burra. Todos têm mãe. Quero dizer, minha mãe cuidou de mim com carinho? E se cuidou, porque me deixou? Está morta? Tive uma infância feliz? Onde estão as minhas memórias!?

- Mamma mia! - Exclama aflita, a senhora que agora limpa as mãos sujas de farinha de trigo em seu avental. O pequenino se lança em meus braços, sentando-se em meu colo, pois estou próxima ao fogão à lenha, em sua cozinha, vendo-a preparar um sopa rala com o pouco que catou na feira. Os restos deixados pelos burgueses que insuflam o povo a se voltarem contra os poderosos que roubam-lhes até o último centavo, deixando-os na miséria. Sinto-me enojada por me deitar com esses crápulas. - Menina! - Ela me interrompe com sua voz em duas oitavas acima. Eu a olho assustada. - Vc pensa muito e com muita rapidez! - Envergonho-me. Levo as mãos com tanta força ao meu rosto que o estapeio. Ela ri, imprimindo suavidade às palavras. - Precisa se acalmar, meu bem. Aqui, vc está segura. - Sorrindo, ela seca sua testa larga e corada com um pano de prato gasto, porém limpo. A criança me fita, olhando-me por sobre as pestanas. Seus olhos de um azul intenso lembra-me um Husk siberiano. Coço a cabeça achando inconveniente comparar uma criança a um animal, mas, de fato, ele tem os olhos mais lindos e impactantes que já havia visto antes. Não há como não compará-los aos de um Husk Siberiano. Enrubesço porque, novamente, comparo-o a um cão. - Não se preocupe. - Ela faz deslizar sobre a mesa um prato de sua sopa fumegante em minha direção. Eu o amparo com meus dedos trêmulos, enrubescendo uma outra vez. - Ele realmente se parece com um cão e se comporta como um cão. - Ela pisca para a criança que solta uma sonora gargalhada. Sorrindo para ele com extremos de ternura, ela se pergunta. - Ou seria com um porquinho já que não gosta de tomar banho?

- Eu eu...- Gaguejo diante do prato, aspirando o aroma da Manjerona que me leva a um passado tão distante que parece não ter acontecido. Eu usava a mesma erva nas refeições que costumava preparar. Eu me lembro do toque, da textura da erva. Do aroma a se espalhar pela casa. Mas, que casa!? E para quem eu cozinhava? Sinto mãos firmes em minha cintura. Mãos de homem. Arquejo de felicidade, sentindo-me segura. Forço a memória. Forço-a tanto que chegam a doer minhas têmporas. INFERNO! Irrito-me, socando a mesa com um punho cerrado. Ela se senta na cadeira à minha frente, com os olhos compreensivos. - Eu...- Engulo em seco. Estou completamente desnorteada, embora sinta-me acolhida como se estivesse em minha própria casa. - Eu não queria comparar seu filho a um cão. - Digo finalmente, fixando meus olhos úmidos à lareira e suas crepitantes chamas que iluminam a cadeira de balanço em madeira, logo ao lado de uma estante repleta de livros. Meu peito dói e a dolorosa sensação retorna. A sensação de que já vivi em algum lugar parecido com aquele, com pessoas que me amavam e a quem eu amava de forma arrebatadora. Isso me destrói por dentro. Sentir saudades do que não se conhece é injusto e dói como um punhal cravado lentamente em meu coração. - É que nunca vi olhos como os dele. - Esclareço, baixando a cabeça, escondendo minhas lágrimas, beijando os cabelos finos e cheirosos da criança que ainda está em meu colo. Parece ter gostado de mim porque come da minha comida sem cerimônia. Abro a boca e ele, com o cuidado de um cirurgião em meio a uma complicada extração de um coágulo no cérebro, introduz a colher em minha boca. Exulta quando eu engulo a sopa sem desperdiçar um só pingo do caldo que, para eles, é precioso. Sinto que preciso ajudá-los de alguma forma. Tenho minhas economias. Não preciso de dinheiro para o que farei. Não os deixarei passar por necessidades. Não mesmo. Assim que chegar a casa, darei um jeito de ...

- Não seja tola. - Sua voz doce me faz acordar do transe. Sua mão quente sobre a minha, aquieta minha alma. - Não precisamos de mais nada além do necessário. - Ela me ouviu. Agora percebo que ela tem me ouvido desde que aqui cheguei. E como ela encontrou em meio à multidão? - Vincenzo e eu somos felizes com o que temos. - Sorrio, abanando a cabeça, apreciando o sabor divino da sopa de legumes. Nada que tenha comido nos lautos banquetes daquele povo tão rico quanto imundo, me dá mais prazer do que aquela frugal refeição. Sua mão pressiona, levemente, a minha, estendida sobre a mesa. Seus olhos me fitam com seriedade, embora se curvem nos cantos. É uma perfeita combinação entre a preocupação e a paz de espírito. - Vc não veio aqui para comer de minha sopa. - Ela afirma. Eu engasgo. Ela ri. Vincenzo dá tapinhas em minhas costas, repetindo "São Brás, São Brás" com tanta ênfase que chego a me curvar sobre a mesa, contendo o ímpeto de rir de seus olhinhos amedrontados. Engasgo uma vez mais. Agora ele intensifica as bordoadas em minhas costas e, graças à intervenção materna, não tenho minhas costelas quebradas.

- Agora parou! - Ele afirma, mostrando-me a brecha entre os dentinhos da frente. Sorrio com vontade de chorar. Outra fincada no peito e uma saudade absurda toma conta de mim.

- Por que a senhora está chorando? - Ele ergue as sobrancelhas e seu semblante se entristece.

- Não estou não. - Minto, acariciando sua bochecha tão rosada quanto a de sua mãe. - É porque me engasguei e quando se engasga, sai água dos olhos.

- Va bene! - Eu o vejo empinar o tórax, orgulhoso por ter salvo a minha vida. É corajoso e leal como o meu Antoine. 'Meu Antoine'. Pergunto-me de onde tiro essa expressão se não conheço nenhum Antoine. Abano a cabeça para afugentar a tristeza. Vincenzo bate com as palmas das mãos nas coxas de tanto rir de mim. Repito o gesto, desalinhando meus cabelos. Sua gargalhada é tão gostosa que poderia ficar ali o dia inteiro, balançando a cabeça como louca somente para ouvir o alarido de seu riso infantil.

- Está uma delícia. - Levo o guardanapo à boca e ainda tenho os olhos cheios d'água quando Antonella inclinando-se sobre a mesa, encosta sua testa na minha e diz, baixinho. - Não precisa ter medo. Conte-me tudo. Pergunte o que quiser. Estou aqui para ajudá-la. Vivi o que já viveu e sobrevivi. - Confessa ela, afastando-se para me ver melhor. Seus olhos estão desfocados, cheios de pavor. - Conheço o seu temor. Eles são terríveis. Capazes de qualquer coisa para alcançarem seus objetivos. Homens e demônios...- A cada palavra dita, meus olhos se arregalam até não poderem mais. Minha boca entreaberta somente se fecha quando Vincenzo enfia outra colherada do caldo verde dentro dela, desta vez, sem tanta precisão. Dou um gritinho de espanto. Finjo estar horrorizada com a mancha que se espalha no tecido fino da saia de meu vestido. Ele me fita, prendendo o ar nos pulmões.

- Não foi nada! - Exclamo, eufórica, assustando-o com meu grito. Ele solta o ar pela boca num gesto de alívio. Estamos rindo juntos, novamente. Eu o abraço e sinto o bater acelerado de seu coraçãozinho. Já tive filhos. Já senti esse amor inconfundível por ser único. Onde estão? Como faço para encontrá-los? De chofre, seus braços me empurram e eu o vejo fixar os olhos na saia do meu vestido.

- Parece um elefante. - Diz ele contornando com seu dedinho o desenho que a mancha formou. - Um elefante que fala. - Ergue os olhos inocentes para mim.

- Mesmo? - Replico, sorrindo. Ele assente com a cabecinha loira. - E o que ele fala? - Beijo sua bochecha, afastando a franja de sua testa. Estou tão distraída que mal percebo os olhares de reprovação que Antonella lança sobre ele. - O que este elefantinho travesso está falando? Acaso fala mal de mim? - Vincenzo me fita com seus olhos de Husk siberiano, desmesuradamente abertos e com a voz grave e rouca, ele pronuncia, num sussurro.

- Ele já sabe que vc está aqui. - Sufoco um berro de terror. - E está a caminho.

***

Antonella me ensina tudo que aprendera durante sua vida em poucas horas. Dedica-se a mim como uma mãe o faria. Não entendo, a princípio, suas intenções, seu desprendimento, sua profunda preocupação para comigo. Ela me conhece. Sabe o que faço para sobreviver e, mesmo assim, trata-me com respeito e ternura. Sabe com quem lido e, principalmente, ela sabe que eu o invoquei. Invoquei Ga'al por livre e espontânea vontade. Não exatamente. Fora sob pressão, em condições extremas, mas eu o invoquei. Poderia ter cedido à resignação e me deixado queimar, morrido como mártir, em meio ao ronco surdo que vinha das achas que queimavam, radiantes diante de meus olhos atônitos. Mas eu sucumbi ao medo e o invoquei...

****

Ouço minha voz novamente, mais alta, cheia de agonia e coragem porque sinto que Giovanni está vivo e não estou disposta a deixar de lutar por meu homem. Não creio no que vejo. Aquilo enrolado em um pano imundo não é o corpo do pai dos meus filhos. Eu preciso crer que haja algum motivo para me manter viva em meio às chamas em minha agonia final. A dor! Não há dor igualável a de ter o corpo consumido pelas chamas. Mil vezes morrerei e nenhuma das dores que sentirei poderão se comparar àquela. Os homens e mulheres convertidos por Padre Pietro arrastam-me à fogueira. O fogo é ateado. Vejo o pobre Castiel, o rapazinho bondoso que me ajudara a ver meu Giovanni ainda na cela da prisão do castelo, jogar-se aos pés do clero, pedir, clamar para que me salvassem. Eles o ameaçam. Eles o chamam de herege e, de onde estou, ainda posso reconhecer em seus olhos claros, o terror em ser queimado vivo.

- Ore por mim. - Articulo com a boca, sem palavras e os olhos ardendo, embaçados pelas lágrimas quentes como brasas acesas. Ele ainda insiste em sua bravura, dando um salto em minha direção. Penso em como ele é corajoso, pois está sozinho entre a corja que o fita, desconfiada. 'É o amante da bruxa", disse outro, e mais outro, e ainda outro. - FUJA! - Grito, tossindo, engasgando, num último resquício de voz que sai por minha garganta seca, meus pulmões consumidos pela fumaça tóxica. Nossos olhos se encontram e os dele, em desespero, tentam me contar algo que parece ser de extrema importância. Ele está tão determinado em me alcançar que meu coração já descompassado, parece rasgar-se ao meio de tanta ansiedade. Agora quero que fale, que revele o que a boca entreaberta e a respiração ofegante escondem. Ele está aos meus pés. Grita palavras que não consigo compreender. Minha pele arde e minha alma parece estar se desligando do corpo. Sinto sua angústia. Ele continua a mover a boca e os porcos não se calam para que eu possa ouvi-lo. 'Não me diga que o viu morrer!' Meus olhos se estreitam e eu o fito acima dele. Balanço minha cabeça numa negativa. Não quero ouvir. Não quero.

- Senhora! Senhora! - Ele corre para as chamas. As chamas saltam na direção dos céus. - Por Deus! - Ele implora voltando-se para o povo ensandecido. - Façam parar! Ela é inocente! - Cerro meus olhos que ardem, minha boca se comprime. Choro por ele. Choro por ter tido, no fim, alguém que lutou por mim. - Eu preciso lhe dizer! - Apuro a audição e somente ouço os urros daquela gente cruel. Sua figura angelical se dissipa entre a fuligem negra, então me entrego à desesperança e ao crepitar cada vez mais intenso das chamas que lambem meu vestido. Eu pisco para limpar os olhos da fumaça que subia quando os amaldiçoei, buscando ar com o queixo apontado para a chuva que começava a cair, mansa e fresca. - Hei de ver seus filhos e os filhos de seus filhos rastejando como vermes, à cata de comida, os corpos corroídos pela Peste. Nada do que plantarem dará frutos. Eu os amaldiçoo pela eternidade. - Ao pé da fogueira, o padre porco me fita com um ar triunfante e um laivo de tristeza em seu sorriso macabro. - Eu o matarei. - Disse num último suspiro antes de Ga'al surpreender-me com sua força, seu poder sobre os elementais da Água, do Ar e das fadas e duendes que pareciam obedecer aos seus comandos.

A Água engrossou os pingos da chuva que apagaram, num piscar de olhos, a fogueira que me consumia. O ar fez turbilhonar o Fogo e a terra que, numa espiral monumental, varrera a multidão aturdida com o que julgavam ser um castigo divino. Ga'al surgira para me salvar justo quando eu o invoquei...

Não.Mes.mo.

Fui eu quem os invocou antes de Ga'al surgir. Fui eu que, ao sentir o primeiro toque do fogo em meus pés, implorei para que ele fosse dócil para comigo e que não me machucasse. Fui eu que clamei pelas forças da Natureza, pelas fadas, elfos, gnomos, duendes, dríades, faunos, sátiros e por minhas irmãs que haviam morrido de forma tão cruel quanto a minha, antes de mim. Fui eu que emprestei minha força aos fenômenos que ocorreram diante de meus olhos estarrecidos. Fui eu que ouvi o sussurro do Vento a me dizer que descendo de mulheres fortes, belas, sábias.

Antonella confirma o que o Vento me sussurrou naquele dia em que quase morri. Antonella me ensina a invocar seres mais fortes e mais leais do que Ga'al. Antonella desmascara Ga'al, provando-me que ele não passa de uma farsa. De uma alma errante que se diz um demônio para obter prazer através do meu corpo.

Antonella abre meus olhos e renova minhas esperanças em ser livre novamente. Lemos, com rapidez, um livro de capa dura onde, com uma destreza que desconhecia, apreendo rituais e conjurações e feitiços que pretendo usar contra ele.

- Lembre-se. - Ela fala baixo para não acordar o pequenino que dorme em paz em seu bercinho de madeira, ao lado da lareira onde as labaredas se alongam sedutoramente. - Invoque-a somente uma vez para se livrar dele. Somente uma vez. - Alerta ela com os olhos assombrados. - De nada adianta sair das mãos de um ser maligno e cair nas mãos de outro.

- Mas vc disse que ela é...- Assusto-me com o baque seco do livro sendo fechado às pressas. Antonella me fita com os olhos pesarosos. Há muito mais em seu coração do que ela me desvendou no dia de hoje. Há dor, remorso, culpa. Eu sei porque toco em suas mãos, beijando os nós de seus dedos num gesto de gratidão. - Vc a teme? - Ela assente com a cabeça, abraçando o filho contra seu peito. Ouço um gemido doce de Vincenzo que abre os olhos pesados de sono, sorri e volta a dormir, livre de pesadelos. - Ela o quer, não é? - Aceno com a cabeça para o pequenino. Ela o cobre com seu corpo como quem protege seu maior tesouro e, de fato, ele o é. Toco em sua testa enquanto eu a vejo chorar em silêncio. - Seja lá o que a tenha feito conjurar Lilith, eu o desfarei. - Seus olhos me encaram, desacreditados. - Eu o farei. - Repito com um sorriso sombrio. - Não tenho nada a perder. Eu me entregarei a ela, logo após ter consumado minha vingança. E então, vc estará livre para viver em paz com seu filho. - Sorrio porque vejo esperança em seus olhos. Ela amou um homem. Ela o quis tanto que invocou, ainda jovem e inexperiente, o primeiro e mais poderoso demônio que já existiu, pois fora o primeiro a ser banido dos olhos do Criador.

Assim como eu, Litith é vingativa e odeia os homens. Creio que nos daremos bem.

- Antonella, querida. - Falo com a voz embargada pela emoção. O momento da despedida se aproxima bem como Ga'al que está a poucos passos da casa que me acolhe com calor humano. Eu o sinto se aproximar. Engulo em seco. Traço, urgentemente, alguns rabiscos em um papel iluminado pela luz da vela tremeluzente e entrego-o a ela, fazendo-a guardar no livro de feitiçaria que acabamos de ler, juntas. - Aqui tem as minhas economias. - Ela tenta protestar. Eu a calo com a mão em sua boca. Meus olhos demonstram o medo a tomar conta de mim. Ela ouve passos do lado de fora da casa. Aquieta-se porque entende que já não estamos mais sozinhas. Baixo o tom de voz, cochichando em seu ouvido. - Não vou precisar de dinheiro quando tudo terminar. Aqui... - Encosto meu indicador na capa dura do livro onde o papel com minhas informações está guardado. Continuo, ofegante. - Tem o nome do homem que deve procurar. É um bom homem. Diga meu nome. Diga que eu lhe deixei tudo. Deixarei tudo pronto antes do fim. - Ela cerra os olhos e eu exalo um suspiro de dor. Abraçamo-nos demoradamente. Eu a afasto para fitar seus olhos, pois ainda tenho o que dizer. - Pegue o dinheiro, Antonella, e suma daqui. Construa uma vida mais digna para vcs em outro lugar. Compre uma fazenda...- Meus olhos se desfocam por segundos, mas não há tempo para tentar me recordar do que me esqueci, então, volto a encará-la com seriedade. - Crie porcos, galinhas, vacas! - Ela sufoca um riso e suas bochechas ficam adoravelmente enrubescidas. - Seja feliz, minha amiga. - Tento não chorar, mas, as lágrimas molham meu rosto onde está escrito: 'Não quero partir.' - Faça-o feliz...- Beijo o topo da cabecinha de Vincenzo que ainda dorme em seu colo. - E nunca deixe que o levem de vc.

- Nunca...- Sua voz entrecortada por soluços tocam meu coração. Um último abraço. - Tenha cuidado, menina.

- Terei. - Minto. Sei o que me espera lá fora. - Obrigada por tudo. -Ela abana a cabeça como quem diz: 'Eu não fiz nada' - Graças a vc, ele já não pode ouvir meus pensamentos.

'Não mesmo', ela replica, telepaticamente. - 'Acabe com ele'.

'Tenha certeza disso', falo sem precisar mover minha boca.

Abro a porta. Uma lufada de ar frio invade a sala.

- Adeus! Amo vcs...para sempre! - Despeço-me já do lado de fora e antes mesmo de trancar a porta ele murmura em meu ouvido.

- Amigos novos? - Há sarcasmo em sua voz e seus dentes brilham num sorriso sinistro. Sinto calafrios por todo o corpo quando ele me toca, roçando seus dedos em minha nuca. - Posso conhecê-los? - Eu o afasto, tomando-o pelo braço. Esboço um sorriso tão falso quanto o anel de brilhante que uso em meu dedo.

- Agora não! - Exclamo, exultante, caminhando contra o vento, fitando-o com lascívia em meus olhos. Quero afastá-lo dali o mais rápido que posso. A ideia de que ele ponha os olhos em meu pequenino causa-me ânsia de vômitos. - Vamos para casa! - Grito, saltitando como uma criança alegre, sem cérebro. - Venha!

- Quanta alegria! - Exclama, desconfiado. - Aprendeu algo de novo hoje? - Ele me segue, apertando meu antebraço com sua mão forte. Dói, mas finjo não perceber sua raiva contida. - Não quer me contar? - Insiste ele, sentado no assento da carruagem que começa a chacoalhar. Eu o olho de soslaio e posso sentir o ódio se avolumando à sua volta. Sei o que está prestes a fazer. Enrijeço meu corpo, pronta para ser atingida por um golpe que não se faz demorar. Ele me atinge com a mão espalmada bem no centro de minha face esquerda. Inspiro profundamente, contendo a vontade de chorar. - Perdão, amor. - Sua voz é doce e melódica. Sua mão, a mesma que me agrediu, agora afaga a marca esbranquiçada em minha bochecha avermelhada. - Nunca mais vou te machucar. Eu prometo. - Sorrio para a janela do passageiro. Ele não me vê sorrir. Recosto-me em seu ombro e a viagem segue, tranquila. - Vc precisa ser uma boa menina. Boas meninas não apanham.

- Certamente. - Concordo, baixando os olhos.

'Homens mortos não machucam boas meninas, seu verme desprezível! Esta foi a última vez que encostou suas mãos porcas em mim! Pode acreditar, Ga'al, arremedo de demônio!'

Ele continua a me fitar com serenidade, afagando meus cabelos, contando-me as novidades da côrte e outras tantas bobagens sem sentido. Então, tenho a certeza de que eu, de fato, controlo meus pensamentos...

E ele já não me ouve mais.

'Antonella, obrigada'

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 25/12/2019
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