'MORGANA - MORANGOS'

Morangos

- É um menino. - Murmuro mesmo antes de abrir os olhos e lentamente um sorriso se desenha em meu rosto. Levo a mão ao ventre e o sinto dentro de mim. Pode parecer loucura, mas eu o sinto. Acabamos de fazer amor e eu já o sinto. É minúsculo, mas eu o sinto. - Um menino...- Cerro os olhos e assinto com a cabeça afundada no travesseiro. Estou faminta. Faminta e feliz como nunca estivera antes. Antes de tudo acontecer...

Sinto-me preenchida por ele e por seu amor. Preciso lhe contar o que sinto porque sei que é verdade. Nosso menino está vindo e ele precisa saber conquanto eu desconfie que já saiba. Ele e aquela irritante mania de ler meus pensamentos. Talvez, ele já o saiba.

- Talvez.

Ainda está escuro lá fora e, em nosso quarto, apenas a luz tremeluzente da vela no candeeiro sobre a cômoda. Recosto-me à cabeceira ainda com um sorriso bobo no rosto. Meus olhos não se desviam da chama que se alonga e se aquieta. Meus olhos piscam porque estão pesados quando percebo que jamais havia parado para me perguntar o porquê daquele azul escuro na base da chama, quase violáceo ou na maneira como ela se extingue à medida em que, derretida, deforma-se sem jamais deixar-se apagar até que já não haja cera. A cera que se parece com lágrimas derramadas em abundância. Lágrimas cristalizadas, tristes e solitárias que se esparramam pela madeira da cômoda, presente da mãe de Giovanni. - Giovanni. - Digo quase sem perceber ainda hipnotizada pela vela que, imóvel, parece me fitar com sua chama em dois tons de um dourado que me fascina. Meus sentidos estão maravilhosamente aguçados e minha energia parece inesgotável. Penso na noite que tivemos, nos carinhos e no jeito como ele me tocara com sua total falta de pudor. Uma violência que terminara em um abraço febril. Encolho meus joelhos e os abraço. Sinto os joelhos contra os seios, os mamilos doloridos. Rio baixinho porque não quero acordá-lo, embora todos os meus sentidos o queiram de novo. Por Deus, devo estar doente. Depravadamente doente. Escondo meu rosto entre as mãos, rindo de mim mesma. Inspiro, profundamente, pois preciso me reequilibrar, me aquietar. Aspiro uma fragrância adocicada, longe de ser enjoativa. Solto o ar pela boca, esvaziando meus pulmões. Engulo em seco e tento não perceber que os pelos de minha nuca estão se eriçando. Uma lufada de ar quente atinge meu rosto, assustando-me. Lanço meu olhar assustado à chama da vela, ainda imóvel. Estranho o fato, pois a chama deveria ao menos se mover. - Giovanni. - Sussurro, percorrendo com meus olhos úmidos o interior do quarto escuro. Minha mão aflita o procura logo ali, ao meu, lado. - Giovanni??? - Estico os braços, tateando o colchão onde ele dormira há pouco e, desesperada, encontro o vazio. Seu lugar ao meu lado está vazio. Os lençóis amassados, largados e ele não está aqui. Levo a mão ao peito porque sinto um aperto, um medo de que...- GIOVAANNI! - Ergo-me pousando os pés no chão, afastando, num repente, o lençol que me cobria. O mesmo lençol agora parece ter criado vida, pois se mantem suspenso sobre a cama por segundos...quase um minuto. Um forte arrepio sobe dos meus pés e atinge o topo de minha cabeça. Um pudor repentino me faz cobrir os seios como se houvessem olhos à minha roda, aguardando que eu volte a ser o que nunca deveria ter sido.

Enfio-me na camisola, cobrindo meu corpo, sem desviar os olhos estupefatos do lençol que, de súbito, choca-se pesadamente contra o colchão como se uma bola de canhão tivesse caído sobre ele. Sufoco um arquejo de surpresa e temor. Tomo o candeeiro em minhas mãos trêmulas e afasto-me, cuidadosamente, em direção à porta, vasculhando o quarto à procura do pai de meu filho, embora já saiba que ele não está ali. O pânico ameaça paralisar minhas pernas que cismam em não me obedecer. As suaves badaladas do relógio carrilhão que resistira ao tempo se dissipam enquanto saio do quarto. Eu odeio este relógio, seu toque, o som medonho das badaladas soturnas, mas Giovanni se apegara a ele, relíquia herdada de sua mãe, aquela que me repudiara sem ao menos ter tentado me conhecer. Condenara-me por minha aparência simples, meu jeito moleque, minha beleza selvagem, um tanto desleixada. Eu ainda era uma adolescente! Ela deveria ter levado isso em consideração. Não. Apenas me condenara a ficar longe de seu filho, herdeiro da fortuna dos Salviatti.

- Salviatti...- Repito, ironizando, pois agora este sobrenome me pertence. - Morgana Salviatti! - Aumento o tom de voz e ergo o candeeiro acima de minha cabeça, observando o tal relógio cujos ponteiros estão paralisados. Estreito meus olhos desconfiados e, com a ponta do pé, chuto com força, a caixa de madeira que protege o pêndulo, bizarramente inerte. Chuto não por me importar se o velho relógio assustador parece estar quebrado, mas por estar com medo do que sinto atrás de mim. Chuto uma, duas, três vezes até que meus dedos doloridos se cansem de minha atitude infantil. Lembranças felizes. Lembranças felizes. Substitua o medo por lembranças felizes. Giovanni me ensinou. Giovanni sabe tudo. E agora eu vou tentar seguir os conselhos de Giovanni. É o que faço.

Estou grávida!

A ideia de carregar a semente de nosso amor novamente enche-me de júbilo, esmagando o medo, afastando as memórias de um passado que, para mim, nunca chegara a existir.

" - Não há passado entre nós dois. Somente um futuro cheio de infinitas possibilidades". Ouço a voz confiante de meu homem. Ele é forte. Ele é sábio. Ele me protege de todo o mal. Eu creio nele. E é assim que deve ser.

- Um futuro cheio de infinitas possibilidades. Infinitas possibilidades! - Exclamo, entre risos eufóricos e forçados, caminhando pelo piso de tábuas que rangem a cada passo que dou, em cada cômodo que o procuro. - GIOVANNI! NÃO ACHO GRAÇA! - Advirto-o, girando meu corpo para trás e a luz da vela clareia a escuridão. - Aparece, amor...tô com medo. - Choramingo, encolhendo meus ombros, cerrando meus olhos, sentindo o ar quente ao meu redor como círculos de fogo. - NÃO TENHO MEDO! - Minto quanto grito num tom de aviso. Giro nos calcanhares e, aproximando o candeeiro de meu rosto, apresso os passos até chegar à sala onde uma rajada de vento frio faz com que meus cabelos esvoacem. Por segundos, eu sorrio, vitoriosa. Tenho cabelos que esvoaçam. Graças a ele. Meu Giovanni. Fito a porta escancarada e engulo o sorriso patético. Não é natural. Não mesmo. Giovanni jamais sairia de casa e deixaria a porta aberta tampouco escancarada. Sempre tivera cuidados com relação à nossa segurança. Cuidados exagerados, admito. Mas ele é assim. Uma alma boa num corpo másculo, forte, rude, potente, viril, devasso, pornograficamente perfeito. Ai! Pare de ser tão repugnantemente lasciva! Vc agora é uma mãe e mães devem ser recatadas, serenas, pudicas e...NÃO FAÇA ISSO!

A chama da vela bruxuleia.

- Não. Não se apague. Não se apague. - Suplicando enlouquecida, eu a encaro furiosa como se meus olhos tivessem o controle sobre o fogo. Estreito os olhos confusos quando a chama apagada, volta a se erguer, imponente, implacável. Chego a pensar que tive participação neste pequeno fenômeno, mantendo meus olhos flamejantes nela. - Será!? - Dou de ombros e a vejo mudar de formato, achatando-se, inclinando-se para um lado e para o outro ao sabor da brisa que vem de fora da casa de onde ouço o farfalhar das folhas secas no chão de terra vermelha. O dia não tardará a chegar. Eu espero que sim. Eu sempre amei a noite, mas, confesso que os raios de sol seriam bem vindos agora que estou diante da porta e o odor inebriante e adocicado novamente invade minhas narinas. Meus olhos estão pesados, as mãos se enfraquecem. Os pelos se eriçam.

- Não há passado entre nós dois. Não há passado entre nós dois. - Recito como um mantra à cata do homem que me abraçaria agora e me faria rir de meus medos infundados. Mas...ele não está aqui. Não está na cozinha ou na sala ou embaixo dos móveis, sequer na varanda onde encontro um bilhete em cima da mesa de madeira retangular, preso por uma pedra, um quartzo rosa. O quartzo reluz quando a luz da vela incide sobre ele. Eu sorrio e reconheço a letra impressa no bilhete.

"Fui satisfazer os primeiros desejos de minha linda esposa devassa, sedutoramente insaciável e abençoadamente minha. Volto logo com os seus morangos, amor. Reza a lenda que não satisfazer os desejos de uma mulher grávida traz mau agouro. Espere por mim! Voltarei faminto."

- Diabos.- Praguejo, com um sorriso largo, bobo nas faces ruborizadas. - Ele já sabe! - Lamento, levando ao peito o papel com as impressões dele. Basta eu fechar os olhos e o vejo no momento em que escrevera o bilhete. Feliz, exuberantemente feliz ele estava quando escreveu este bilhete. Eu o vejo a cantarolar enquanto cobre seu corpo com a calça de seu pijama e uma casaca longa que esvoaça nas pontas enquanto ele anda de um lado para o outro no quarto, abobalhado, sorrindo como um menininho em seu primeiro dia de aula. Antes de deixar o quarto, ele beija minha testa, encosta a porta de nosso quarto, caminha pelo corredor, acende a lareira e cumprimenta as chamas, saudando seus elementais. O que diz eu não escuto, mas sei que está feliz quando cruza o umbral da porta e a tranca dando duas voltas na chave e faz descer o grande ferrolho em ferro maciço...pelo lado de fora. Meus batimentos cardíacos aceleram e o ar parece ter sumido da vasta floresta à minha frente. Tento não raciocinar justo agora que meu cérebro cisma em ser eficiente. Como encontrei a porta escancarada se Giovanni a fechara por fora e, somente ele, possui as chaves de nossa casa? Deus meu! Eles o pegaram novamente!? NÃO! NÃO, PAI! NÃO. Não. Acalme-se.

'Inspire e expire'.

Obedeço a voz que tenta me acalmar e finjo ser a de Giovanni, embora todos os meus sentidos gritem que não.é.ele. Cheiro o papel, amassando-o entre meus dedos inquietos e o sinto vivo...e feliz. Exalo um suspiro de alívio enquanto o vento ruge vindo do Norte...ou do Sul, Oeste, Leste. Não me importo! Ele está bem! Ele está bem e vai me trazer os morangos. Os bendito morangos...eu já os odeio por terem me afastado do homem que não me deixaria aqui, sozinha, na escuridão da noite fria e espantosamente bela.

- Vou te esperar, Giovanni...- Digo baixinho, vislumbrando a lua que se mostra, tímida, por entre as nuvens de algodão. - Para sempre...

O céu está salpicado de estrelas e o som das achas crepitando na lareira me enchem de tranquilidade. Uma tranquilidade que jamais sentira antes. Nem mesmo antes de todo o mal chegar às nossas vidas. Uma tranquilidade que me aquece por dentro. Uma tranquilidade que me faz crer que teremos uma noite fantasticamente devassa, salpicada de ternura. Uma tranquilidade que se extingue no exato momento em que me lembro de ter passado pela sala e de ter me certificado que as brasas da lareira que estavam ABSOLUTAMENTE APAGADAS!

Prendo a respiração e sinto um sopro curto e forte junto ao meu pescoço. Forte o suficiente para apagar a chama do candeeiro que se espatifa no chão logo que, tomada pelo desespero, eu grito as primeiras frases das quais me lembro do Latim que não aprendera quando Giovanni tentara me ensinar.

- Crux Sacra Sit Mihi Lux. Non Draco Sit Mihi Dux!

Como um felino em perigo, eu salto os três degraus de uma só vez, esborrachando-me na grama de nosso jardim. Ergo meu tronco e me apoio nos tornozelos e, num gemido, lamento ter sujado as mangas compridas de meu camisolão branco com rendas em seu decote. Giovanni me dera assim que nos casamos e, como já não me surpreendo com nada que venha dele, a peça de roupa está em perfeito estado como se eu tivesse saído de casa para um passeio matinal e retornado após algumas horas de ausência.

Após anos, ela ainda me traz tantas lembranças boas...

- GIOVAAAANI! - Não é hora para devaneios. Estou de pé, sacudindo a poeira de minha camisola branca em meio ao breu da noite de lua cheia. A lua já perdera aquele tom dourado espetacular, no entanto, permanece encantadora quando surge entre uma nuvem e outra e é exatamente neste momento de clarão que me ponho a caminhar, resoluta, erguendo com as mãos a barra do camisolão. Não suportaria vê-lo manchado pela lama ou pelo esterco desse gado sem educação que pasta em nossa terra. Eu preciso continuar a falar muito porque, quanto mais eu falar, menos sussurros ouvirei. Menos horror eu sentirei por saber que não estou só. - São as fadas, gnomos, duendes??? - Ouço o eco de meu grito que retorna até mim soprado pelo vento cortante que toca minhas faces, resfriando minhas lágrimas. - Minha filha conversava com vcs! - Caminho enquanto falo porque não suporto mais a presença inquietante que tenta me tocar e se comunicar. Mas, de alguma forma, eu o impeço. Giovanni não chegara a me ensinar a trancar meus pensamentos em minha caixola, mas ele vai chegar e, assim que chegar, ele vai me ensinar. Estou tonta de tanto ir de um lado a outro chamando, gritando por seu nome. Estou à beira de um colapso nervoso por não saber se ele está longe porque fora colher os morangos ou se o prenderam novamente. - Não seja tola! - Repreendo-me, batendo a mão em minha testa, dobrando-me de tanto rir. - Já não existe padre, prisão ou motivos que o levem de volta à prisão. Somos um povo livre! Livre! 'Liberdade, Igualdade e Fraternidade' ...ou algo assim. Giovanni me contou...sim...ele contou sobre os movimentos revolucionários de nossos irmãos vizinhos que certamente mudarão o rumo dos povos oprimidos. - CÉUS! COMO SOU BURRA! - Levo a mão à testa e um brilho se acende em meus olhos marejados. - Morangos! - Giro novamente em meus calcanhares e corro até a nossa horta onde ele mesmo os cultivava. De certo, lá estará à minha espera, rindo de mim e de meu jeito lerdo de pensar e chegar a uma conclusão óbvia. É bom que esteja rindo mesmo porque vou esfregar os morangos em seu rosto com minhas próprias mãos e lamber o sumo em sua boca até me saciar somente por ter me deixado sofrer por tanto tempo. - Giovanni!? - Num solavanco, escancaro a porta da estufa e, ofegante, confirmo o que já suspeitava. Ele não está aqui. Caminho um pouco mais e percebo o porquê: os morangos estão mortos, ressequidos. - Nada que ele não dê um jeito quando retornar! - Exclamo com a voz fraca e aguda, enquanto olho ao redor para as vigas, as verduras, as frutas, o teto abobadado e transparente de onde vejo a lua a se despedir dando lugar à chuva fina. Baixo a cabeça, enrugando o nariz e sinto um incômodo quando comprimo os olhos, retendo as lágrimas que escapam, espalhando-se por meu rosto gelado. - Vou te esperar, amor.

'Estou bem', penso tê-lo ouvido. Ergo a cabeça e seco meu rosto com o dorso de minha mão. Meu coração volta a bater descompassado. Minha boca aberta, meus olhos atentos vasculham o local deserto. Penso nele. Peço ao Criador que o proteja onde quer que esteja. Conheço cada centímetro daquele espaço, logo, mesmo com os olhos cheios d'água mergulhada nas sombras da noite, alcanço a saída e vou de encontro ao vento e, desta vez, não me empolgo com os meus cabelos esvoaçantes ou me preocupo em suspender a barra de meu camisolão branco. Minha única preocupação é saber como Giovanni está. Meu único desejo é encontrar meu Giovanni vivo e saudável como estivera há bem pouco tempo, em meus braços. Ainda sinto seu cheiro e sei que...sinto que ele não pode ter partido e me deixado sozinha.

'Estou bem. E voltando'.

- É vc, amor? - Estou tão frágil e com tanto medo de perdê-lo que não desconfio porque sei que ele me ouve, de onde quer que esteja e, se me ouve, sabe que estou nervosa à sua procura. E se sabe que estou nervosa, certamente encontrará um jeito de me acalmar. Principalmente agora que eu sei...ele sabe que alguém muiiito especial está por vir. - Giovanni...- Cochicho contra o vento. As copas das árvores bailam de um lado para o outro e o som que produzem me fascina. As luzes coloridas que se misturam à mata me fascinam. Os olhos ora assustados ora ameaçadores me fascinam entre os arbustos não chegam a me fascinar, mas não me importo. Não os temo. Eu os respeito. Eles se mantêm afastados de mim. Acreditam que eu seja uma bruxa e que tenho poderes sobrenaturais. Isso me agrada porque os mantêm afastados, ainda que eu não creia em nada disso. - Amor, é vc? - Ele ri. Uma risada tão suave e sedosa. - É vc! - Afirmo, vacilante. - Vc não me ensinou. Vc prometeu que me ensinaria e não ensinou! Está voltando? Consegue me ouvir? Volte logo, amor. Tenho medo...- Falo tão baixo que penso não ter falado, apenas pensado. Olhando para a relva onde piso, retorno à frente de nossa casa. Caminho pelo extenso e ondulante gramado, sinto a textura lisa e fria das pedras do jardim e, mais adiante, enxergo o vertiginoso vertedouro das rochas que mergulham até as profundezas do mar. Paro, levando a mão ao ventre, afagando o ventre, lembrando-me, com melancolia, do quanto desejara a morte, bem ali, à minha frente, no cenário dramático dos declives perigosos, do mar agitado onde quis mergulhar antes de minha vida tomar novos rumos. Mas é passado. Ele está comigo. Nosso filho está comigo e já não há motivos para morrer e sim viver. Viver até ficarmos velhos e caquéticos, sentados em nossas cadeiras na varanda, fitando o fascinante encontro do mar com o horizonte, assim como estou fazendo agora.

'Não há porque morrer, amor'

Puxo o ar pela boca, pois me dei conta de que havia prendido a respiração. Estou arfando e meu tronco está curvado para frente enquanto procuro o ar que não encontro.

'Inspire e expire'.

- Estou fazendo isso, amor. Estou fazendo. Vou ficar bem. Só preciso de tempo. - Inspiro e expiro. Inspiro e expiro. Inspiro e expiro e ainda não consigo controlar minha respiração. Não consigo porque tenho medo. Não consigo porque posso não ler pensamentos alheios, mas sinto com profundidade. Este é o meu dom. A minha maldição. Sentir. Sentir, ouvir, ver e descrever o que sinto, ouço e vejo. Mas isso não importa porque agora tudo mudou. Eu sei. Agora sei que tudo será diferente. Agora, sei que serei uma boa mãe. Uma esposa mais paciente, amorosa porque conhecera o pior da Humanidade e a ela não quero retornar. Eu minto. Minto porque preciso acreditar em alguma verdade.

Inclino a cabeça e junto as mãos, como que em oração, com os dedos encostados nos lábios. Demoro-me nesta posição, apurando o olfato, a audição e um sexto sentido que me acompanha desde que chegara ao mundo. Minha mãe me acusava de bruxaria. Meu pai me surrava com seu cinto afivelado, arrancando lascas de minha pele graças a este 'dom' que o Criador me concedera. Ou terá sido o demônio?

- Terá sido o demônio? - Repito a pergunta porque desejo ouvir sua resposta. - Terá sido o demônio? Responda, amor.

- 'Certamente o demônio'. - Afirma ele com a voz melodiosa.

- Vc não acredita em demônios, amor. Lembra?

"Depois do que passei, agora eu creio".

- Amor, tenho medo. Converse comigo até voltar para mim. - Peço com carinho.

- "Claro" - Ouço sua voz com perfeição. Reconheço aquela voz clara, muda, cortante. O mesmo tom grave, vibrante, desconsolado. Enquanto as gotas de chuva caem serenamente sobre mim, eu procuro não me afastar dele.

- Estava pensando no nome que podemos dar ao nosso filho, Giovanni.

- "Nosso filho!", exclama ele em minha mente e posso sentir sua excitação quase que descontrolada. - "Um nome para nosso filho!". Cerro meus olhos e meu corpo estremece violentamente e a culpa não é do frio. Esfrego minhas mãos e as levo até a boca, em forma de concha. Eu as sopro, enquanto dou mais alguns passos em direção ao abismo de onde Giovanni me arrancou quando ainda era muito nova e inexperiente. Ele me ensinara a distinguir o Bem do Mal, embora somente agora eu tenha a lucidez para fazê-lo.

- Dizem que não traz sorte repetir o nome dos filhos que já partiram, então, pensei em dar a ele um nome que sempre amei. - Meus olhos se erguem aos Céus e, silenciosamente, peço ajuda. As lágrimas abundantes escorrem para dentro do camisolão e param no vão que há no fim de meu pescoço. Não quero continuar, mas é preciso. - Quer saber qual é?

A voz está tão próxima que, por vezes eu me pergunto se a ouço dentro ou fora de minha mente.

- "Quero. Claro que quero."

- Vc está perto, amor?

- Muito perto...

- Encontrou os morangos? - Digo num fio de voz.

- "Morangos!? Os morangos..."

- Sim. Os morangos...- Balbucio, sentindo um gosto amargo na boca. - Os morangos. - Repito, cantarolando, os olhos vagos, mãos que se entrelaçam nervosamente. - Não devemos repetir os nomes.

- "Não devemos".

- O que acha de Antoine? - Aumento o tom de voz, fingindo entusiasmo. - É um belo nome, não é?

- "Meraviglioso! Antoine será o nome do nosso filho!"

- Do nosso filho. - Repito, com os olhos estatelados, tapando a boca com as mãos, sufocando um grito de terror. Aquilo me atingira com tanta força quanto se alguém me houvesse dado um soco no peito. Dou mais quatro passos e sinto a barra de minha camisola se arrastando pela lama e já não me importo em vê-la manchada, imunda. Acho que não a usarei uma segunda vez. Giovanni me salvara da morte bem aqui, onde estou. O som das ondas contra os rochedos são inigualavelmente hipnotizantes. Giovanni tentara me ensinar tantas coisas! E eu o amo tanto por isso que chega a doer. Já não enxergo com clareza porque as lágrimas embaçam meus olhos, mas agora eu entendo a diferença entre o Bem e o Mal e, somente agora eu consigo, com exatidão, distinguir a Luz da Trevas. A Paixão do Amor. A Luxúria do Desejo. O Leste do Oeste.

Somente agora, consigo distinguir, com exatidão...

O meu

Giovanni

de

Ga'al.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 02/02/2020
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