MORGANA - 'O INCONCEBÍVEL'

O Inconcebível

'Deus julga pelas intenções'. Ele me diz quase sem esperanças. Sua voz vem com o vento e então eu suspiro sem que ele me veja. Cerro meus olhos a um passo do precipício. Penso em seguir. Penso em recuar. Sua voz me chama de volta ao mundo dos vivos. Que homem é este? De onde surgiu? E logo agora! Eu evito olhar em seus olhos, embora sinta uma irresistível vontade de abraçá-lo mesmo que ainda mal saiba o seu nome. Sua voz jovial esconde o temor em cada palavra dita e não dita. O vento traz consigo o doce aroma de sândalo que aspiro, esquecendo-me, por instantes, do motivo que me levara até ali. O modo como ele fala, as palavras que usa, o riso contido e tímido...e triste. Tudo nele me faz pensar que seguir com meus planos é um erro estúpido. Tudo nele me faz querer girar em sua direção e observar detalhadamente o dono daquelas frases desconexas, do tom grave de voz impregnado de nervosismo e serenidade. Pergunto-me como alguém é capaz de estar nervoso e sereno ao mesmo tempo. Estou com os pés na terra fofa que se esfarela nas pontas de meus dedos. Vejo pedaços da terra que se distanciam de mim à medida que se desintegram no ar. Vejo o céu plúmbeo e seu encontro com o mar bravio no horizonte enquanto o ouço. Ele diz que sou nova e bonita e que muitos jovens sentirão a minha falta se eu pular. Que muitos jovens terão suas vidas destruídas por um único ato meu. Ele afirma que muitos jovens adorariam tocar em minhas mãos, em meu rosto.

- Vc não sabe como sou. Ainda não me viu. - Eu argumento e sinto meus lábios se curvando para cima. Limpo as lágrimas do rosto do o dorso da mão e mordo o canto da boca, sentindo, após um longo tempo de sofrimento nas mãos de um padre promíscuo, o doce sabor da esperança. Foi a primeira vez. A primeira. Ele me diz que, desde que chegara, não pensa em outra coisa além de fitar os meus olhos, a minha boca. Ver o meu sorriso. Ele diz que conhece a minha dor porque ouve meus pensamentos. "Isso é patético! Invasão de privacidade!" - Ele ri e seu riso é o som mais perfeito que ouvira até aquele momento. Não suporto mais. Sou vencida pela curiosidade e, girando meu corpo num repente, desequilibro-me e, por pouco, não mergulho para a morte. Ele salta em minha direção e, antes de eu notar o que acontecera, estamos deitados na grama. Seu corpo sobre o meu. Minhas mãos aparando-o em seus ombros largos, sua casaca alinhada de gente abastada. Seus olhos são incisivos, doces, tristes e compassivos. Sua pele é fina, lisa. Ele diz algo, mas não escuto porque estou impressionada, apalermada, apaixonada. Digo para mim mesma que encontrei o homem por quem eu sempre esperei. Com quem eu sempre sonhei.

" - Então não vejo motivos para adiar.", ele diz, abrindo lentamente o sorriso mais sensualmente inocente que meus olhos marejados já haviam visto. De cenho carregado, tento entender o que ele diz. Ele me ergue do chão e estamos de pé, um em frente ao outro. Olho para o desfiladeiro e um calafrio percorre a minha espinha. A ideia de acabar com a minha vida me causa repulsa e eu não sei o porquê. A ideia de me afastar dele me causa pânico, e eu não sei o porquê. A ideia de retirar meus braços de seu pescoço me causa tristeza, e eu não sei o porquê. Seu braço em torno de minha cintura me causa um gostoso estremecimento e eu continuo sem saber o porquê. Que força é esta que me liga a ele? Que magia nos envolve agora que ouço o uivo do vento a me sussurrar que a Felicidade me quer para si? O que ele quis dizer com 'motivos para adiar'? - Morgana...

- Ainda se lembra de meu nome? - Ele assente com a cabeça enquanto ajeita meus cabelos, deslizando sua mão que pousa em minha nuca. Seus dedos afagam a ponta de minha orelha e meu ombro instintivamente acolhe a sua mão. Cerro meus olhos e sorrio. Inspiro e, de súbito, disparo. - Pensei que nunca mais o veria depois que partiu para estudar fora da cidade. Vc partiu sem dizer adeus. Sem dizer que voltaria. - Ele ergue o canto da boca e a sobrancelha. Isso me irrita...e me excita. - Diabos! Quem eu penso que sou para exigir satisfações de vc. o filho único dos Salviatti??? O filho queridinho da família mais rica da região! O filho paparicado e mimado e que jamais me dirigira uma só palavra enquanto estudava na POR CARIA daquela varanda! O rapaz que somente me olhava e nada falava! Nada! Nada! Nada! - Estou ofegando, contendo as lágrimas num olhar acusador, os braços esticados ao longo do corpo retesado, punhos cerrado. Estou arfando enquanto o vejo em silêncio.

- Eu tinha vergonha. - Ele confessa e em seus olhos eu vejo algo que não conheço e que, no entanto, me agrada. - Se eu soubesse que vc...

- Que eu sempre o espiei por entre os arbustos!? Que eu sempre desejei fazer parte de sua vida? Ser sua amiga? Ficar ao seu lado ou aprender o que ensinava aos escravos???

- Aaah, querida. - Ouço seu lamento e deixo que as lágrimas rolem. Que lavem meu rosto. Que escorram por meu pescoço. - Se eu soubesse que vc não recuaria, eu teria vencido a vergonha, a timidez. Eu teria vencido o medo e...

- E hoje eu não estaria aqui. - Interrompo-o, com as mãos nos quadris. Os olhos devastados, o nariz empinado. - Hoje eu não teria motivos para querer pular e escapar do inferno onde vivo. - Ele me diz que sente muito. Que voltaria no Tempo se fosse possível. Que faria tudo para mudar o presente e que está disposto a tudo para modificar o futuro. Ele me pede que eu o aceite. Que aceite suas desculpas e que o aceite. Um sorriso idiota se desenha em meu rosto, embora eu tenha medo de não ter entendido a última parte. Ele disse que eu devo aceitar suas desculpas ou devo aceitá-lo? Digo...aceitar ele? Ele está se oferecendo a mim ou oferece as desculpas? Não sei porque mas ele ri de minhas feições enquanto tento raciocinar e, pela primeira vez em nossas vidas, eu tenho vontade de arremessar uma pedra em sua cabeça. Contenho-me porque ainda estou raciocinando. Se ele se ofereceu a mim é porque...- Por que voltou? Por que não me deixou pular?

- E perder a mãe de meus filhos!? - Eu mordo o canto da boca e nossos olhos se cruzam. Já não me lembro o motivo pelo qual queria saltar para o abismo. Sequer lembro-me de meu nome quando seus lábios se aproximam dos meus. Ele tem cheiro de floresta, de madeira fresca, de dias ensolarados, de noites de lua cheia. Ele tem magia. Ele beija bem. Suave, lento, demorado, doce, ávido, ofegante, excitante. Eu me afasto de sua boca procurando por ar. Ele volta a sorrir e então eu percebo que, com ele, a vida voltara a ter sentido e, a ideia da morte...E QUEM PENSOU EM MORTE!? - Casa comigo e me dê dois filhos. - Ele murmura contra minha boca. Sim. Sim. Sim. Eu não falo porque não quero mais nada além de provar mais e mais daquele beijo, daquele corpo que passara a ser todo meu.

Meu Giovanni me salvara da Morte pela primeira vez naquela tarde de inverno. Percebo que tudo pelo que passamos valera a pena desde que ele me trouxera de volta à vida. Tudo. Nossos filhos mortos, a prisão, os estupros, as torturas, a separação, a escravidão, a prostituição, a doença, os insultos, a solidão e o reencontro. Uma nova chance. Uma noite de amor, uma nova vida em meu ventre, a promessa de uma vida feliz, sem tormentos ou perseguições. Sem maldade ou demônios.

Mas, promessas são quebradas. Sonhos são desfeitos e, por vezes, a vida nos leva de volta ao ponto onde tudo tivera início. Acho que o Criador, de fato, não gosta de mim. Se gostasse, por que me daria tudo o que perdera para, logo em seguida, retirar, num só golpe, os dois únicos motivos que me fazem permanecer sobre a Terra?

Já não me importa mais ter o amor do Criador. O inferno me aguarda, mas não quero partir sem antes me despedir de Giovanni. Não posso. Não quero. NÃO VOU!

Odeio morangos. Eu me odeio por ter mencionado que comeria um boi enquanto estávamos deitados, juntinhos, em nossa cama quente, meu corpo ainda impregnado por seu cheiro, sua saliva, seu gozo. Por que eu não me calei quando vc me prometera a torta de morangos?

Por que não esperou que eu acordasse, Giovanni? Por que partiu sem me levar junto? Ele está aqui e quer o nosso filho. Vc me ouve? De onde está, vc me ouve? Eu sei. Agora eu sei o que ele quer, amor. Não se preocupe. Ele jamais tocará em nosso Castiel. Jamais ocupará o corpo de nosso filho. Ele é burro. Mau, perverso, devasso, violento e burro.

Quer voltar à carne. Digo a ele que não é assim. Não se invade o corpo dos outros. Ele me contradiz com um brilho maligno nos olhos azuis. Ele não me ouve, Giovanni. Eu falo. Eu explico. Eu grito. Eu imploro. Eu fujo. Ele me puxa com força e me joga contra a parede. Ele me agride. Dói, Giovanni. Dói.

- "Como nos velhos tempos", diz ele, sorrindo. Mas seu sorriso em nada se parece com o seu, amor. Meu olho direito não enxerga com perfeição porque não se abre. Seu punho pesado atingira meu olho com tudo. Volto a sentir o gosto de sangue na boca. Volto a sentir seu membro imundo entre as minhas pernas. Seu corpo pesado contra o meu. Minhas costas contra o piso frio, minha boca tampada por sua mão grosseira. Penso em vc, amor, porque não posso gritar. Penso em vc. Chamo por vc e me culpo por ter dito que estava com fome. Ele termina, urrando como um animal selvagem. Quero que ele morra, mas, mortos não morrem. Mortos já estão mortos. E mortos querem retornar à vida. Ele investe contra mim, com a mão direita prendendo meu pescoço e a outra sobre o meu ventre. Eu tento gritar e não consigo. Tento me mover, mas não consigo. Então, o inconcebível acontece. Seu corpo intangível volta a se enrolar em si mesmo. Uma fumaça negra paira sobre minha cabeça e antes mesmo de tentar entender o que se passa, a sombra desce veloz, penetrando-me, rasgando-me no meio, como um punho gigantesco, enfiando-o com violência em meu útero. Estou em convulsão. A dor é dilacerante e me envolve em ondas quando sinto o sangue jorrar de mim, molhando o assoalho. Meu filho está morto. Um pedacinho de vida, fruto da união abençoada entre duas pessoas que se amam é retirado de mim por um ser amaldiçoado. Desejo a morte enquanto seus braços me envolvem e me atiram ao chão. Minha cabeça é arrastada contra a parede da porta e depois, eu caio com estrondo nas tábuas que rangem como gemidos de dor. A dor de perder nosso filho é imensa. Tão imensa quanto a vontade de frustrar seus planos tão insanos quanto perversos. Olho fixamente para cima, esforçando-me para me levantar. Em choque, meus olhos se perdem por segundos onde encontro meu Giovanni. Eu o vejo retornando a casa. Está sorrindo. Feliz. Exultante. Tão exultante que não consegue me ouvir. Seus pensamentos são todos para o nosso filho e, em sua mão esquerda, um pacote. Sua casaca esvoaça contra o vento. Meu Giovanni não precisa saber. Não precisa sofrer.

- Eu quero um corpo! - Exclama o monstro com a voz fortíssima enquanto sua imagem se dissolve numa enorme nuvem de trevas fervilhantes.

- Nunca! - Berro procurando recuar, encostada na parede. Há sangue em minha camisola e o cheiro de sangue está por toda a parte. Luto para me firmar no chão molhado e escorregadio, batendo as mãos na parede. Procuro respirar, mas o calor atrapalha meus pulmões. Mais um espasmo de dor me atinge e outro jorro de sangue sai de mim. Soluçando, tonta, não me permito cair. Não. Por meu filho. Por meus filhos. Não permitirei que esse louco maníaco termine o que pretende fazer. Seja lá o que for. Perco as forças quando ouço o choro lamentoso de um bebê. Urro de dor e ódio. 'O ódio alimenta e fortalece'. Giovanni me disse isso, certa vez. Agora sei que é verdade porque é o ódio que me toma e me faz levantar, cambaleante, apoiando-me às paredes do corredor. Encontro a porta aberta. Corro. Corro o mais rápido que posso e ainda ouço sua gargalhada sarcástica atrás de mim. Ele diz que não adianta fugir. Ele diz que estará sempre ao meu lado. Ele diz que, um dia, eu o invoquei. E eu me odeio por isso. Então, corro ainda mais rápido. A relva está molhada, os pingos da chuva lavam meu rosto. Minha roupa está rasgada. Meus botões arrancados. Meus seios à mostra. Mas não me importo. Nada se compara à dor de minha alma sem vida. Corro contra o vento que vem do mar. Corro contra a chuva que cega meus olhos. Corro de volta ao ponto onde tudo tivera início e onde terá um fim. Corro antes que ele me impeça de pular porque, morrendo, ele não poderá

retornar

à

vida.

Não se culpe, Giovanni. Por favor, não se culpe.

A culpa é minha.

Odeio morangos...

***

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 09/02/2020
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