'MORGANA - SE EU SOUBESSE'

"SE EU SOUBESSE"

Foi tão rápido...

Dizem que toda a sua vida passa pela tela de sua mente no momento final. É mentira. O que realmente fica martelando na sua cabeça, no exato momento em que vc se joga e sente o vento frio e cortante contra suas costas e os cabelos sugados para cima por uma força descomunal, cobrindo seu rosto, ofuscando-lhe a visão, são os erros que vc cometeu até aquele instante. O que chega à sua mente confusa enquanto vc tenta, em vão respirar e sente os pulmões arderem e o seu corpo é sacudido de um lado para o outro de uma forma tão rápida quanto intensa, são os caminhos que vc deveria ter tomado e não o fez. São as portas que vc deveria ter aberto e, por estupidez, não as abriu. São as más escolhas que te levaram à Escuridão enquanto a tua intuição indicava o Caminho do Meio. O que passa por sua cabeça no instante final não é o que fizera em vida, mas o que deixara de fazer. O que te oprime o peito antes do último suspiro é a dor que causara a quem sempre te amou. É o olhar estupefato, as mãos geladas e escorregadias de quem te abraçara, aquecendo suas noites, compartilhando da mesma cama, dos mesmos sonhos. As mãos que te afagaram, os olhos que te acalmaram. A boca entreaberta. Uma lágrima discreta no canto dos olhos.

O que passa por sua mente, em milissegundos, antes do choque fatal é a dor de ter aberto a porta azul e não ter percebido que, para alguns, não há finais felizes. E não existe um porquê. Não há finais felizes e ponto...final.

No final, vc percebe que se houvesse escolhido a porta vermelha, continuaria caindo vertiginosamente, porque, para alguns, não há finais felizes. Não há um início feliz. Não há Felicidade. Apenas instantes de alegria suprema que se desfazem durante a queda.

Eu o deixei partir.

***

Corro até alcançar o pico do topo do penhasco e meu corpo já não sente a dor do aborto, os espasmos ou o vento gélido contra minha camisola, manchada com sangue seco. Estou de costas para o horizonte. Meus olhos perturbados agora se fixam num ponto que se move, distante, o andar claudicante. Meu coração pulsa bombeando o sangue tão violentamente que chego a perder o fôlego, puxando o ar pela boca, arfando, tentando gritar por seu nome. Digo, em pensamento, que não venha. Que fique onde está. Que o amo mais do que a mim mesma e que se algo de ruim acontecer a ele, eu vou pular. Irrito-me. Desespero-me porque ele parece querer me contrariar, pois apressa o passo e, então, eu o vejo com perfeição, embora meus olhos estejam embaçados. Ele larga o pacote que segura em uma das mãos e corre em minha direção. Está a poucos metros de distância quando larga o pacote que se rasga contra o chão. Do pacote, escapam os morangos que se espalham pela grama. Fixo meus olhos frustrados nas frutas e entendo como a felicidade é tênue. Há poucas horas, eu estava plena, feliz, radiante. Confiante de que viveria ao lado dele para sempre. Agora...os morangos espalhados. Os morangos que ele comprara na cidade. Caminhara por quilômetros somente por satisfazer um desejo meu. Um desejo da mãe de seu filho. Eu me odeio por tê-lo feito se afastar de mim. Eu o amo por sempre se sacrificar por mim! Como dizer a ele que o sonho acabou? Como dizer que um ser diabólico voltara para cobrar o que não prometi? Eu não preciso contar. Ele me ouve e, ainda que não compreenda o que vislumbra de onde se encontra, ele corre. Corre tão rápido quanto sua perna defeituosa o permite. Corre porque me vê devastada. Corre porque sua aflição aumenta a cada centímetro que vence até chegar tão próximo que consigo sentir seu cheiro. Sei que levarei esse perfume para onde quer que eu vá. Seu cheiro de sândalo, de floresta viva, de flores e cascas de árvores vão me confortar na Escuridão onde estou prestes a mergulhar. 'Não há volta, amor. Não se aproxima'. Ele não me ouve. Não. Ele me ouve, mas não me obedece. Digo a ele, grito que se afaste. Seu dom não é o da visão, Giovanni. Seu dom não é o da sensibilidade! Fique onde está! Não venha. 'Pare. Pare, pare, pare! DIABOS, ME OUÇA!'. Ainda que ele me veja acenando, enxotando-o com as mãos e os braços em movimentos desconexos, ele continua vindo e vindo e vindo. Eu o amo. Mesmo perto do fim, eu o amo e é essa a imagem que eu vou levar. A imagem do homem destemido, valente, bondoso, dono de um coração que não acredita em almas perdidas para sempre. Um coração que crê em arrependimentos, em reconciliação. Em provas, expiações e em burilamento da alma, por pior que ela seja. Giovanni não acredita em seres devotados ao Mal pela Eternidade. Giovanni não acredita que o Criador faça diferença entre suas criaturas. Giovanni tem um bom coração e perdoa com facilidade. Giovanni não conhece Ga'al. E não o conhecerá.

Ele grita enquanto corre, pedindo que eu o espere. Que eu não me mova. "Mantenha a calma!", ele grita francamente agoniado. Ele chama por meu nome e o som de sua voz angustiada rasga minha alma ao meio. Seus olhos atônitos, seus cabelos molhados colados ao rosto, a barba por fazer, a casaca ensopada e o tórax à mostra. Saiu no meio da noite sem me acordar. Saíra tão rápido...

- A blusa, amor. - Falo enquanto aponto o indicador para o seu peito. Ele me ouve, imobilizado, com os olhos fixos nos meus. Minha boca se abre e exalo um suspiro, ainda com o braço estendido. A voz sai fraca de tristeza. - Vc saiu tão rápido que se esqueceu da blusa. - Eu quero perguntar o porquê. Eu quero brigar, socar os seus braços até que ele me responda o porquê de ter estragado tudo, mas apenas abro um sorriso triste. Seus lábios tremem e, então, se curvam, imitando os meus. Se estivéssemos competindo, o seu sorriso venceria o meu no quesito 'Tristeza'. Estamos naquele momento em que palavras são desnecessárias. Onde não há o que se dizer e os minutos são preciosos demais para que se percam com palavras. Pisco com força para expulsar a água dos meus olhos. Quero ver seu rosto, sua expressão. Amaria ver seus dentes brancos num riso de alegria. Impossível. - Acabou, amor. Acabou. - Estou diante dele. Acima dele no ponto mais alto onde as nossas terras terminam e o mar, lá embaixo, parece aguardar, ruidoso, por um desfecho. - Nosso filho...- Minha voz sai lamuriosa e minhas mãos estão em meu ventre. Olho para os meus pés e sufoco um grito de horror. Não tinha visto o vestido rasgado, as pernas listradas de sangue ressecado. Ergo a cabeça e encontro seu olhar desorientado. Abro a boca e arquejo. Balanço a cabeça e tento falar, explicar.

- Não fale nada. - Ordena ele, com os olhos marejados, pondo-se a escalar o pequeno aclive que nos distancia. Crava os dedos na terra úmida e sobe, praguejando, resmungando e por segundos, penso em rir do homem forte, imponente. Do Professor, do Médico, do Alquimista que se suja como um camponês enquanto tenta não escorregar na relva molhada. De súbito, ele ergue a cabeça e me encara. Eu mordo o canto da boca quando o vejo sorrir. Seus dentes brancos, as covinhas em suas bochechas, as rugas no canto dos olhos. - Vc ainda me mata. - Assevera ele, limpando as mãos de terra na casaca, erguendo seu corpo, emparelhando-o ao meu. A ideia da morte me parece inconcebível agora. Sequer me lembro de como fui parar ali. Sequer me lembro do que acontecera naquela casa, no quarto onde dormimos, onde eu fui dele e ele foi meu. Sequer me lembro de que acabo de perder meu filho porque ele está aqui e quando ele está por perto, tudo parece tão fácil de vencer, de esquecer e perdoar; de seguir em frente sem olhar para trás. Ele finge ou não percebe o perigo que nos cerca porque em sua voz há obstinação e destemor quando, ofegante, me repreende. - Por quantas vezes eu vou ter que te tirar daqui, mulher!? - Suas mãos estão em meus braços e meus braços, soltos ao longo do corpo. Já não penso em nada. Só penso em permanecer ali, ao seu lado. Só penso que o dia vai nascer e um outro dia virá após a noite e um outro dia após o outro após o outro. Eu não quero morrer. - E não vai. - Afirma ele num murmúrio, antes de me arrastar, num solavanco, barranco abaixo. Eu peço a ele que me escute. Ele me dá as costas, puxando-me como uma mula empacada. Eu puxo minha mão presa a ele pelo punho. Eu o xingo, eu o chuto. Eu berro seu nome. Eu imploro baixinho para que ele me ouça enquanto sou deslocada contra minha vontade. Não quero retornar à nossa casa. Não quero rever tudo. Não quero ver o meu sangue. O sangue de nosso filho espalhado pelo chão. Não quero mais retornar àquele lugar onde já fomos felizes e, agora, por culpa do maldito, tornara-se amaldiçoado. Ele me escuta e me repreende uma segunda vez, sem olhar para mim. Ele para bem no meio do caminho entre a casa e o penhasco. Ele aspira o ar. Ele solta o ar pela boca.

- Giovanni...- Balbucio, angustiada. Ele se curva para frente. Eu me curvo ao seu lado. Quero ver seus olhos. Quero sentir o que ele sente. Quero tomar sua dor para mim. Eu o vejo girar o pescoço em minha direção. Ele tenta sorrir, mas eu sei...eu sinto a dor em seu coração. Ele conhece a verdade. Ele a entende agora. Ele se arrepende e isso lhe causa dor. Ele ouviu o meu chamado. Ele ouviu os golpes em meu rosto, meu pedido de socorro. Ele sente. Sofre por perder de uma forma tão drástica e cruel seu filho. Sua mão gelada aperta meu antebraço quando, subitamente se volta contra mim, explodindo numa voz rouca.

- Que mania louca é essa de querer pular de lá!? POR DEUS! - Ele pressiona um pouco mais a minha pele enquanto a mão livre aponta para o desfiladeiro. Ele está visivelmente perturbado. Eu não o culpo. Eu não reclamo. Eu deixo que ele me sacuda, que me machuque um pouco. Eu mereço. Eu trouxe dor e pesar à sua vida. Ele se cala, passando a mão pelo rosto, num gesto de nervosismo. Eu não suporto sua mudez. Eu preciso contar, porém, antes, ele grita fitando-me com exasperação. - Inferno! Um dia vc acaba conseguindo! - Eu encolho os ombros e cerro os olhos como a criança que se defende, com os braços cruzados à frente do rosto, de uma possível agressão. Ele, suavemente, pousa as mãos em meus pulsos e puxa meus braços, retirando-os de meu rosto machucado. Sua face está paralisada como uma máscara e somente os olhos mostram o que vai em sua alma. Com suas mãos precisas, examina o dorso de meus antebraços, o olho arroxeado, marcados pela violência de Ga'al. Ele os examina e longe da imparcialidade de um médico, suas feições se contraem. Ele trinca os maxilares ao mesmo tempo em que aperta os dedos em minha pele, deixando manchas brancas que somem rapidamente. Engole em seco e, numa longa expiração, indaga com a voz baixa. - E o que vai ser de mim se um dia conseguir!? Vc não pensa em mim!? Não pensa que tenho sentimentos? Que sou humano e me canso? Nunca pensou em como vou ficar se vc partir? - Ele ouve o meu suspiro e o meu silêncio repleto de vergonha. Eu me sinto tão pequena. Ele solta meus braços e me envolve nos seus. Eu me entrego ao seu abraço e tento contar a ele o que se passou, como se passou. Como tudo começou. Ele emite um ruído queixoso que é muito típico dele, como querendo dizer 'Agora é tarde. Não há necessidade. Pare. Esqueça. Já passou'. Ele me olha de relance e sua mão se prende à minha; a mão que tenta me guiar para longe da morte, se contrai, instintivamente. Sua pulsação se acelera. Seu coração bate mais rápido. Então, eu sinto. Eu sinto a raiva percorrendo suas veias. Eu sinto o ódio que ele sente por quem me fez mal. - Vamos entrar...- Ele diz, num murmúrio soturno, dominando seu ódio, afrouxando a mão entrelaçada à minha. Dá um passo adiante e eu, um para trás. Nossas mãos se separam. Estamos a um palmo de distância quando, de súbito, uma torrente de lágrimas irrompe de seu coração pacífico. Ele ergue os olhos aos Céus e grita contra a chuva. Grita até que não haja mais voz. Grita até que a dor que o dilacera por dentro se acalme. Eu não me movo. Eu não sei o que fazer. Eu nunca o vira assim antes. Há tanto sofrimento, tanta angústia. - MALDITO! - Ele brada, erguendo os braços, os punhos fechados, as narinas dilatadas, como se ameaçasse o próprio Criador. Eu me afasto um pouco mais, de volta ao aclive, onde me recosto, sentada na grama, cotovelos nos joelhos flexionados. As mãos enganchadas no emaranhado que se tornara meu cabelo duro de sangue coagulado. Choro baixinho, arrependida, humilhada, vergastada por sua dor. Meu rosto escondido pelas mãos imundas. Meu choro que se confunde aos pingos da chuva. Não. Não o quero assim. Não ele. Ele é bom. Ele acredita em anjos, santos e em seres angelicais. Ele é puro e eu não posso permitir que algo que ocorrera por minha culpa o afaste d'Aquele que o ama. Do Seu Criador. De seu Criador que me odeia. Eu vou ao seu encontro. Não suporto vê-lo sofrer, então, jogo-me em seus braços. Eu o abraço. Abraço seu corpo contraído, curvado. Eu o acolho como eu o faria ao nosso filho. Eu o acalento e canto uma canção de ninar. Não penso em nada. Apenas canto. Canto porque quero que ele pare de chorar. Canto porque isso me faz lembrar do tempo em que eu fui mãe. Do tempo em que fomos felizes...juntos. Canto porque sei que tudo está prestes a acabar. Canto porque não sei o que fazer além de cantar. Não quero que Giovanni ouça meu medo, minhas desconfianças. Não quero que Giovanni saiba que ele está por perto. Não quero que Giovanni o enfrente. Não quero que Giovanni seja tocado por ele ou o conheça. Não quero que Ga'al lhe dirija a palavra. Giovanni deve ficar longe dele. Longe da face do Mal.

Por um tempo, ele se deixa embalar até que eu ouço, aturdida, sua voz amargurada, abafada.

- Sai! - Num movimento brusco e absolutamente inesperado, ele me empurra, me evita, me repudia. Vou de encontro ao muro de pedra no pé da subida ao penhasco. Minhas costa ardem quando partes da minha pele entram em atrito contra a parede arenosa através dos rasgos no vestido. Não me importo. Essa dor é bem menor do que a que sinto. Do que a que ele sente. Eu me deixo escorregar até sentar no chão de onde não me levanto. Não consigo. Volto a chorar e a fazer bico. Enxugo o canto dos olhos com o dorso da mão e digo palavras que o vento leva. Estou magoada, assustada. Fora a primeira vez, em todos esses anos, que ele me tratara de forma áspera. Espero até que ele venha ao meu encontro e me peça perdão. Ele não se move. Ele se fecha como uma concha após se desfazer da casaca com raiva, amassando-a aos socos, formando uma grande bola preta e úmida que ele arremessa contra mim. A casaca passa sobre minha cabeça e, por bem pouco, sobrevoa o oceano logo atrás de mim. Eu me ergo para pegar a casaca à beira do abismo. Ele me detém com a mão sobre a minha. Eu volto a olhar para ele e me arrependo do tanto que o fiz sofrer. Ele está um farrapo humano. Um farrapo que sussurra um pedido de desculpas. Não por ter me repelido, mas por quase ter me atingido com a casaca. Eu o odeio por isso e ele sabe disso. Ele me fita de onde está. Eu viro meu rosto, evitando seu olhar. Estou coberta de sujeira e sangue, hematomas no rosto, nos braços, pernas. Cabelos desgrenhados. Uma mendiga estaria mais distinta do que eu e eu, ainda assim, mantenho meu orgulho e altivez, revirando meus olhos vermelhos e indignados. O olho atingido pelo punho do desgraçado já se abre com mais facilidade e, ainda assim, eu evito o olhar sereno , culposo, arrependido de Giovanni, mandando-o ao inferno sem olhar para ele. Ele apoia as palmas das mãos na grama, curvando o tronco. Ele se move apoiado nas mãos e nos pés, movendo-se cautelosamente. Fascinantemente sedutor em minha direção. De soslaio, posso ver. Vejo e não creio! Não posso crer que ele, somente com a calça de seu pijama anda sob a chuva como um felino, ronronando, ameaçadoramente. Rio a contragosto. Levo minhas mãos ao rosto. Não quero que ele me veja rindo, embora o som do meu riso escape por entre meus dedos. CÉUS! Estamos devastados, arrasados, destroçados, derrotados e ele, meu homem, ainda acha forças e coragem para transformar sua dor em um momento de descontração em pleno caos...somente por mim. Como eu amo esse homem! Meus olhos já estão nele novamente. Meus olhos se enchem d'água e meu coração está na boca. Não posso crer que esteja atormentada, alucinada, totalmente excitada pela figura máscula que mostra seus músculos, como um cavalo de corrida, a cada movimento...em minha direção. " Dio come ti amo!", penso, exalando um longo suspiro.

- Anche io! - Ele diz que também me ama, num gemido sussurrante que chega aos meus ouvidos junto ao seu cheiro inebriante. Reviro os olhos e, por Baco, tudo o que quero é recomeçar do zero.

Ele deixa de ser o felino e volta a ser o homem. Um homem agachado, apoiado em seus tornozelos, bem diante de meus olhos perdidos, fascinados. Seus braços apoiados nas coxas, seu ombro curvado. A expressão cansada. Ele me observa enquanto eu observo tudo ao meu redor. A escuridão ainda nos rodeia, os pingos da chuva persistem, o vento cortante nos açoita e ele, sorrindo, me propõe, afagando com seus dedos, a ponta de minha orelha.

- Vamos recomeçar do zero?

- Vc me ouviu de novo!? - Lanço a ele meu olhar dardejante. É uma pergunta retórica, logo, ele volta a sorrir. - Quando vai parar de ler o que penso?

- Quando parar de pensar.

- Quando estiver morta!? - Indago do alto do morro. Grito porque estou irritada e perplexa. Não sei como vim parar aqui tão subitamente e, por sua expressão de pasmo, ele também não. - Não se atreva a brincar comigo!

- Desce daí...

- Eu não fiz de propósito! Não o invoquei de propósito! - Ele está de pé, olhos cerrados, buscando concentração, enquanto eu, sou a personificação do desequilíbrio. - Não fui o que fui porque quis. Não fui prostitua porque quis! Não fui usada porque quis. Não me deitei com ele porque quis!

- Pare. - Adverte ele num sussurro rouco e profundo.

- Não! - Grito erguendo o punho cerrado . - Não vou parar! Preciso contar. Preciso tirar isso daqui e daqui. - Bato o punho contra o peito e contra a lateral de minha cabeça. - Preciso que saiba a verdade.

- Eu já sei...- Ele estende os braços. - Eu já sei. - Repete ele, apreensivo, olhos exauridos que deveriam me fazer parar de falar feito uma tola e descer dali e obedecê-lo. Começar do zero.

- Não. Não sabe. - Lamento, num soluçar denso, pesado, abanando a cabeça, dando um passo para trás. - Não sabe! Eu não fui tão inocente como pensa. Se quer começar do zero, precisa saber que não sou essa pessoa pura que pensa que sou.

- Eu já sei, Morgana - Exalta-se, dando dois passos em minha direção e está tão resoluto que sequer chega a mancar. Eu continuo a despeito de seus esforços em escalar, pela segunda vez, o aclive. Eu devo me calar. Eu sei que devo, mas tenho medo de guardar, esconder e morrer sem que ele conheça meu lado sombrio. Ele emite uma série de sílabas rápidas como um zumbido, com a boca parecendo grotesca por um instante enquanto escala, cavando buracos na terra abaixo de mim. Com a voz esganiçada e um tremor no corpo, prossigo, afastando-me um pouco mais. É fundamental que ele me ouça. - Eu o invoquei por vingança. Queria te salvar da prisão, então o invoquei. E ele me usou e usou e usou..e ele...ele....

- Cala.a.boca. - Seus olhos assustados me assustam. Sua voz impregnada de medo. Seu corpo está um pouco abaixo de mim. As mãos cravadas na terra, os olhos fixos no chão abaixo dos meus pés. - Dá sua mão...- Pede ele sem desviar os olhos dos meus pés. Suas mãos tremem quando ele estica os braços e não me olha nos olhos.

- VC ESTÁ ME OUVINDO!? - Desatinada, enraivecida, chuto um naco de terra em seu peito, arfando, cerrando os punhos, a boca contorcida antes de confessar. - Eu gostei de ter estado com ele! ELE ME USAVA E EU GOSTAVA!

- SUA MÃO! - Ele parece não ter me ouvido quando seus dedos tocam meu tornozelo. Um susto. Uma dose alta de adrenalina percorre meu sangue, fazendo-me arquejar de medo. Uma sensação ruim de quentura que sobe até o meu peito, então percebo que meu pé resvala na pedra que se solta da terra umedecida e rola morro abaixo. Movo meus braços para frente e para trás, olhos arregalados, a boca aberta, o corpo pendendo para trás.

- DIABOS, MULHER! - Troveja ele, agarrando-me pela cintura, puxando-me contra si, antes que eu possa despencar e lhe dizer que não o mereço. Ele me salva outra vez e mal pode falar quando, com a voz ainda mais baixa, ficando mais dura, ele me avisa. - Esta é última vez que faço isso. - Logo, ele me puxa pelo pulso, arrastando-me de qualquer jeito, sem se importar se estou tropeçando nas pedras ou não. Estou errada. Absolutamente errada e, ainda assim, eu o xingo, eu o chuto enquanto descemos de volta a um ponto seguro.

- Me perdoa.

- Cala a boca! Por hoje, chega!

- Não briga comigo! - Berro, puxando minha mão presa pelo punho. - NÃO GRITE COMIGO! Sou sua esposa! A mãe dos nossos filhos...- Paro de falar num repente. Engulo em seco e sinto o ar faltar nos pulmões. Volto a me lembrar de tudo. Antoine debaixo da terra escura em sua caixa de madeira. Giordana e seu pescocinho delicado cortado de lado a lado pela adaga afiada do padre porco. Castiel arrancado de meu ventre como um animal indesejado...- Nosso filhos. - Repito com os olhos sonhadores, lembrando-me da vida tranquila que tínhamos. Cerro os olhos e sinto o calor revigorante de seu abraço e suas palavras de conforto. Sinto sua boca contra minha bochecha. Ouço promessas de um futuro melhor. Sinto os pingos da chuva, vejo a escuridão que ainda nos rodeia. Pergunto-me pelo sol e seus raios brilhantes. Pergunto-me se já não deveria ter amanhecido. Pergunto-me se há algo de sobrenatural em tudo à nossa roda. Pergunto-me se o maldito nos observa. Eu sei que sim...

- Vai dar tudo certo. - Ele procura por meu olhar distante e não o encontra. - Eu prometo. - Diz ele, beijando o topo de minha cabeça, com as mãos em meu rosto. - Acredita em mim?

- Não...

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 17/02/2020
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