'SEGUNDA PARTE - PRÓLOGO"

PRÓLOGO I

'ASSASSINA!'

É disso que me chamam. Gritam, repetem meu nome como se me conhecessem, no entanto, eu não os conheço. Nunca estivera aqui. Nunca os vira antes. Eles não se calam. Praguejam, berram, xingam e me chamam de assassina o tempo todo, o dia inteiro e não me deixam dormir. Quero fechar os olhos. Quero me sentir segura, mas não posso. Preciso ficar alerta porque eles me rodeiam como abutres. Tenho fome, sede, frio. Tenho medo e estou só. Não vejo a luz do sol tampouco a da lua, então, eu não sei há quanto tempo estão berrando aos meus ouvidos. Gritam e cospem insultos sobre mim, embora haja algo que me proteja deles, das pedras que me tacam. Há algo que não vejo, mas sinto que me envolve como a estufa que tínhamos em casa. Uma estufa transparente, pois posso ver através dela. Uma estufa com paredes invisíveis que repelem, energicamente, o que arremessam em minha direção. Isso é bom porque não consigo pensar em me defender. Quero descansar, no entanto, o medo me mantem acordada. Não penso em nada além de me manter acordada. Recosto-me a uma árvore cinza, sem folhas, o tronco morto, os galhos tortos. Eu me arrasto até ela e lhe imploro proteção. Eu costumava fazer isso, ainda que não me recorde da época em que o fazia. Lidava com os elementais da floresta. Eu lidava com eles em alguma outra época e, em algum lugar, as árvores me ouviam. Não sei quando ou onde, mas elas me ouviam e quando comia de seus frutos, sentia-me plena, viva. Havia a luz do sol bronzeando as minhas bochechas. Havia a Lua, clareando o caminho de volta. Havia luz...

Por mais que eu tente, não consigo entender onde eu errei ou como eu falhei. De certo, eu falhei porque me largaram aqui como um inútil saco de batatas podres. Olho na direção deles na esperança de encontrar alguém que conheça. Alguém que me traga um médico. Eu preciso de um médico. Eles não conseguem enxergar isso!? Se acaso estou sendo punida por atentar contra minha vida, devo parabenizar aquele que planejou tudo isso. Um ótimo trabalho. Está feito. Aprendi. Não vou repetir. Pronto. Agora é hora de me tirar daqui. De me arrancar desse maldito lugar impregnado de poeira, bactérias. Eu odeio bactérias! Odeio bactérias. Bactérias e morangos. Não sei porque não gosto de morangos ou porque me lembrei deles agora, mas...odeio morangos também.

ME TIREM DAQUI!

Quanto mais eu grito por socorro, mais sozinha eu me sinto. Mais eles respondem com escárnio e desdém. O que querem que eu faça se não consigo me erguer sem ajuda!? Que diabos fizeram com as minhas pernas que já não me obedecem? Não quero enlouquecer. Não vou enlouquecer. Já passei por muita coisa nessa vida. Já venci todos os obstáculos. Não vou desaminar. Não vou desistir. Ele não gostaria de me ver desistindo. Ele não gostaria. Giovanni. Giovanni. Preciso repetir seu nome. Se o esquecer, vou enlouquecer. Giovanni. Giovanni, onde vc está que não vem me buscar?

***

Tenho sede. Minha garganta está queimando, ardendo. Estou com febre. Deve haver algum médico entre eles. Eles continuam diante de mim. Não devem ter o que fazer. Não saem daqui. Chamo, clamo por ajuda e eles só fazem rir ou me xingar, sempre afastados de mim, com olhos receosos assaz maliciosos. Sinto nojo deles. Nojo! Ódio! Sinto medo, mas não deixo que percebam. É tudo o que eles desejam. Que eu me mostre frágil e, talvez assim, a bolha que me envolve se parta ao meio e eles entrem. NUNCA! Eu sou forte. Sempre fui. Rastejo, mas nego-me a mostrar a eles o que minha alma sente e, aqui, nesse lugar, eu sinto tudo com muita intensidade. O frio é mais frio. A fome é absurda. A sede queima minha garganta. O medo é contínuo. Não quero enlouquecer. Devo ter voltado à prisão. A prisão onde tudo tivera início. Diabos. A prisão que me fizera compactuar com o maldito Ga'al, cedendo aos seus apelos. Fiz tudo por Giovanni e o faria novamente e uma outra vez e outra e mais outra até que eu morra. Sinto tanto a sua falta, amor. Sinto tudo. Sinto raiva, ódio, solidão, pânico, mágoa, medo. Quero me vingar do demônio que o empurrou. Quero voltar a vê-lo. Quero andar, correr, fugir daqui. Quero parar de sentir dor. Dói tanto!

A carne dói. Os ossos doem. A cabeça dói. Meu corpo destroçado, os ossos partidos perfurando a pele, os músculos de minhas pernas. As pernas que não se movem conquanto eu lute por encaixar os pedaços dos ossos como um quebra-cabeças bizarro e, a cada tentativa, a dor excruciante me faz perder a razão e os sentidos e, quando acordo, vejo que meu sacrifício fora em vão, pois volto meus olhos ensandecidos ao que restara de mim. Sou um amontoado de carne, músculos rompidos, ossos estilhaçados, que pensa e sente como antes, embora não me mova. Por que não me trouxeram um médico? EU NÃO CONSIGO ME MOVER. "Idiotas. Parem de rir e me tragam um médico!", ordeno enquanto penso nele que, certamente, me curaria num piscar de olhos. Penso nele. Penso, sinto e ouço. Ouço os gritos dos loucos que me chamam de assassina. Digo a eles que se afastem. Digo a eles que tenho poderes. Eu os vejo rir. Riem tanto que se jogam no chão para, logo em seguida, voltarem a me rodear com os olhos medonhos, grandes, opacos.

É um pesadelo que não tem fim. Eu sei que vou acordar. Sei. Basta ter paciência. Giovanni me ensinou. Ele disse que sou impulsiva. Impulsiva. Não posso me revoltar. Preciso me acalmar até que eu acorde do pesadelo. Inspire e expire. Inspire e expire. Outra vez.

Abra os olhos. Isso não passa de um pesadelo. Vamos abra os olhos. É somente um pesadelo. Abro os olhos e os vejo, mais uma vez. Eles me cercam formando uma roda. Uma roda diabólica num festim macabro onde giram e giram e gritam e xingam-me de prostituta e assassina. Digo que não sou assassina. Não matei ninguém. Eles não conhecem a verdade. Estou tentando me mover. Temo que a parede invisível que me afasta deles se parta ao meio, deixando-os entrar. De onde surgiu essa parede? De que material é feito? Ah! Pouco me importo desde que os mantenha distantes. Dói quando me movo. Quero me erguer daqui, mover as pernas e os braços. Quero me defender, mas os ossos se partem assim que eu os coloco no lugar e então vem a dor lancinante que me faz desmaiar.

Acordo ouvindo o baque surdo dos objetos que me atiram e que voltam ao ponto de partida, assustando-os. Eu gargalho histericamente. Rio deles ainda que não possa me mover. Ainda que eu seja um montinho pensante, eu os desprezo. Eu os repudio porque algo me protege. Sinto a raiva deles, o odor fétido de carne em putrefação, os pensamentos impuros. Toco no chão onde pisam e os sinto com intensidade.

Maldita sensibilidade a minha!

Sei o que foram e o que fizeram antes de chegarem aqui, ainda que eu não saiba onde é o "aqui". Sei da maldade que praticaram, dos desejos que ainda possuem. Sei o que querem de mim e sei, igualmente, que não conseguirão porque estou protegida. Talvez pela árvore. Talvez ela tenha gostado de mim, apesar de não sentir vida na raiz onde me recosto. Onde tento dormir. Céus, estou exausta. Exausta. Preciso dormir porque dormindo eu não sinto, eu não vejo, eu não ouço, eu não penso nele. Ele que me largou. Ele que deixou de me amar e se esqueceu de mim.

Ele...

***

- EU NÃO O MATEI!

Grito o mais alto que posso. Ouço o eco do meu grito no vale sombrio logo abaixo de onde estou. Um vale soturno onde há vida. Uma vida repleta de tristeza, lamentos, grilhões. Não os vejo, mas os sinto. E eu odeio sentir tanto assim. Grito até que me ouçam e se calem. Eles se calam por um instante e se olham abismados, apalermados. Não são maus. São tolos. Idiotas. Eu os sinto. Eles possuem tanto medo quanto eu. Estão tão desorientados quanto eu. Temem aquele que nos espreita com os olhos sempre atentos. Olhos de crocodilo. Olhos que se escondem quando os meus estão abertos. O silêncio sepulcral se rompe com as vozes à minha volta. Mas há uma, uma voz clara, muda, cortante que proclama entre a multidão de rostos patibulares e membros alongados, ombros curvados, que eu jamais sairei daqui. Que, para mim, não há perdão. Ele aponta o dedo para mim. O dedo longo, as unhas imundas e compridas, roupas rasgadas, olhos ferinos. Ele aponta o dedo para mim e me acusa de assassinato. Ele aponta o dedo para mim e me condena a passar a eternidade revendo o momento em que me lancei do alto do penhasco, o choque contra as pedras, o corpo que se parte em pedaços, a carne dilacerada, a água salgada que invade meus pulmões que ardem...ardem, queimam e eu não consigo respirar. Preciso respirar. Esse homem está louco! Quero acordar. Preciso acordar.

- Vc mente! - Protesto, desviando os olhos cheios d´água das pernas. Tenho horror a mim mesma ou ao que restou de mim. Protesto. Defendo-me porque estou em um tribunal onde todos me julgam e me condenam à morte. Estou confusa, cansada. A dor é intensa. Não cessa quando grito por seu nome. Grito por ele porque não consigo acreditar que tenha me esquecido. Não posso acreditar que tenha partido e me deixado aqui, machucada, indefesa. Maldição. - Eu sei que pensei em acabar com tudo. Eu sei! Mas...não acabou. Estou aqui, não estou!? - Hesito por instantes onde tento organizar meus pensamentos soltos em minha cabeça. Não consigo. A dor não me deixa raciocinar. A dor, os gritos, as aves, a neve, o dedo apontado em minha direção. - Eu não o matei! - Afirmo com a voz esganiçada abraçando-me ao tronco da árvore morta, a única que parece estar do meu lado. Lanço um olhar ao céu e vejo aves imensas com asas longas e curvadas para dentro como as de um enorme morcego. Voam em bandos e os bandos formam círculos sob um céu escuro de onde cai a neve. A neve que não é branca. Uma neve cinza que queima em contato com a minha pele. Encaro o homem que me afronta e reconheço em seu olhar uma raiva contida. Ele poderia me trucidar com aqueles olhos fulminantes. Ouço um coro de risos, um farfalhar de saias, mulheres esquálidas bem diante de mim, cabelos desgrenhados, os olhos embaçados, sorrisos forçados. Logo sinto que são usadas pelos homens para a satisfação de seus desejos imundos. Apiedo-me delas porque me lembro de que, um dia, em algum momento, eu vivi assim. As lembranças misturam-se em minha mente atormentada pelos gritos histéricos, enquanto repito num tom tão baixo que somente eu consigo ouvir. - Eu não o matei. Eu não o matei. - Digo, chorando, fixando meus olhos no dorso de minhas mãos espalmadas. As mãos cobertas por sangue seco, o vestido sujo. - Minha camisola...- Murmuro com a voz entrecortada por soluços. Essa dor é ainda maior do que a do meu corpo devastado. Uma dor que nasce na alma porque me lembro, aos poucos, de tudo o que se passou. - Ele saiu sem camisa...

- E vc o matou. - Insiste o homem com os olhos cruéis. Ele tenta atravessar a barreira invisível. Tenta e não consegue. Irrita-se e, irritado, pronuncia, num tom soturno. - Vc o levou ao penhasco. Vc o colocou lá. Vc o empurrou.

- MENTIRA! - Tampo meus ouvidos com as mãos ensanguentadas. Cerro meus olhos. Não quero ouvir. Não quero ver nem ouvir. Ele tem sorte por eu ainda não conseguir me levantar para socar-lhe o rosto. Ele tem sorte. Não quero mais me erguer. Que sentido há na vida sem ele aqui, perto de mim? - Por que faz isso? Estou sofrendo! Não enxerga?

- Vc o seduziu. Vc o levou embora. Por sua causa, ele foi preso. Por sua causa, ele caiu. - Continua ele, acusando-me de coisas que não fiz. As aves, agora, sobrevoam nossas cabeças. Posso ouvir, de onde estou, o assombroso alarido que sai de suas gargantas escancaradas. Abro meus olhos. Ergo a cabeça e, então, eu as observo em detalhes. Não são aves. Não podem ser aves. São imensas! Jamais vi algo assim do lado de fora. Sim. Do lado de fora. Agora percebo estar trancafiada em algum tipo de prisão esquecida após a Revolução. Uma prisão imensa, construída numa vasta propriedade, com edificações no alto da colina. Uma colina escura e fria. Se ao menos pudesse andar, chegaria até lá e pediria ajuda; socorro aos meus ferimentos.

E perder o abrigo seguro próxima à árvore? Não. Acho que não.

- Não! - . Decido abanando a cabeça, meus cabelos sujos, igualmente desgranhados. Sou a cópia das mulheres que vejo. Tão esquálida quanto elas. Esquálida, imobilizada e sozinha. Ele continua a falar e falar e a gritar que eu matei o pai de meus filhos. Quero saber o seu nome. Ele finge não me ouvir. - Por que se interessa por ele? Vc o conheceu? Sabe onde ele está? - Ele se cala por minutos. Parece pensar com os olhos desagradavelmente claros, distantes, nostálgicos, depois, se volta contra mim, ainda mais colérico e ameaçador. Chuta a parede invisível. Chuta com os pés e soca com as mãos até que os nós de seus dedos sangrem. Com a voz trêmula, eu repito a pergunta, pausadamente. - Vc o conhece? - Ele desvia os olhos do nada e se fixa nos meus. - Vc o conhece. - Afirmo, sufocando um soluço de dor. Toco no chão que me liga a ele e aos seus sentimentos. Não posso andar, mas posso sentir através das mãos. As mãos que me fazem enxergá-lo de pé, com uma criança nos braços. Uma gargalhada espontânea, uma tarde ensolarada. Os cabelos encaracolados da criança em seu colo. O orgulho genuíno do homem por estar cavalgando com a criança à sua frente. A crina esvoaçante do cavalo que montam. Os olhos alegres, negros do menino que o chama de pai.

Uma longa expiração e então capto o ar que chega aos meus pulmões. Enfim, eu estou respirando. Respirando e chorando porque reconheço a criança. É a cópia de meu Antoine. Eu me lembro. Lembro de meu Antoine e de minha Giordana! Todos estão voltando à minha mente enquanto o homem cruel me fita com desconfiança. Ele se concentra em meus lábios quando, quase sem voz, eu declaro, vagarosamente. - Giovanni é seu filho. - O homem cai de joelhos e seu torso se curva para frente com as duas mãos no peito, na altura do coração. Ouço seus gemidos, seus lamentos. Sinto suas saudades, seu amor por ele. Estou diante do avô de meus filhos e não posso tocá-lo. Digo a ele que Giovanni não pulou. Que eu não o empurrei. Digo a ele que fora o maldito. O maldito Ga'al que o empurrou. - Escute! - Há algo em minha voz que chama sua atenção, pois ele ergue o tronco, mantendo as mãos no peito. Ele sofre. Eu sinto. Eu me apiedo. Os outros se calam compelidos por uma Força Maior. A algazarra é suspensa, logo, aproveito-me do silêncio e proponho, arrastando-me com as mãos no chão úmido e gélido, até alcançar a parede. Não é de vidro. Reparo, de imediato. Sinto-me aliviada por ser de um material resistente. Sinto-me estúpida em me preocupar com o material do qual é feito a parede. Giovanni riria de mim se estivesse aqui. - Se eu ainda estou aqui e o senhor também, Giovanni deve estar à nossa procura! - Exclamo francamente esperançosa.

Meu coração bate mais forte. A dor do corpo cede às lembranças que seu nome me traz.

- Eu sei que ele vai chegar. Ele sempre chega. - Estou rindo como uma criança e já não me importo com o meu corpo, as pernas que não me obedecem, porque eu sei que Giovanni virá nos salvar. Giovanni sempre me salvou. - Ele sempre me salva! - Sorrio para o pai do homem que amo sem compreender porque nos encontramos no mesmo lugar, no mesmo pesadelo. Sem compreender porque ele se afasta com a expressão duvidosa em sua face lívida. Apoio as palmas das mãos na parede, esperando que ele faça o mesmo, do outro lado. Ele não o faz. O homem se afasta, recuando a passos lentos, as mãos no peito, ofegando e balançando a cabeça com veemência. Posso ver a piedade em seus olhos marejados, seus lábios comprimidos como se temesse por um mal maior. Maior do que estar perdido, trancafiado numa prisão, dentro de um pesadelo sem fim??? Eu mal sei o seu nome e ele recua. - Seu filho vai nos achar. - Aumento o tom da voz suplicante. Ergo os braços porque quero abraçá-lo. Quero contar a ele tudo sobre os netos. Levo a mão ao ventre. Meu ventre seco. Meu pobre Castiel. Morto. De súbito, o homem se apavora e num murmúrio dolorido, ele diz, tremeluzindo, desaparecendo.

- Sinto muito.

- Por quê??? Volte! Não me deixe aqui! - Diabos. Ele partiu. Curvo minha cabeça, fecho os olhos, tentando respirar o ar pesado como o chumbo. Por que ele se foi? Por que estava aqui? Por que me olhou daquele jeito? - Volte! - Digo baixinho. - Nós dois podemos esperar por Giovanni juntos...

Giovanni não morreu. O pai dele precisa acreditar em mim!

Antes que eu possa voltar a gritar por ele, abre-se diante de mim, um enorme espaço. Estou atônita quando recuo utilizando as mãos, impulsionando meu corpo para trás. Arquejo quando meus olhos, acidentalmente, resvalam sobre as pernas. Quero chorar, mas as lágrimas secaram. Devo estar aqui há muito tempo.

Minha nossa! Através da iluminação ofuscante, há centenas de rostos. Ouço vozes gritando, uivando. Um barulho insuportável. A luz que surge ilumina parte do chão à minha frente. Um homem com coturnos vem em minha direção, pisando nos corpos dos outros. Corpos espalhados, amontoados uns sobre os outros como em um campo de batalha. Há sangue por todos os lados. Eu grito de pavor rodeada por cadáveres sem poder me mover ou respirar. Dos corpos saem larvas. Levo a mão à boca contendo a ânsia de vômito. Então, percebo que dos ferimentos de minhas pernas também saem seres microscópicos. Asquerosamente microscópicos. Não quero morrer aqui. Não vou morrer aqui. As risadas aumentam de intensidade. Os uivos, os urros, a neve cinza que queima. Vou enlouquecer se permanecer aqui por mais tempo. Peço ajuda ao homem com os coturnos sem enxergar o seu rosto. Ainda não vira a luz do sol neste lugar terrível. Quero perguntar a ele onde estamos. Ele me parece familiar. Mais um passo adiante e agora posso ver o seu rosto, sua batina. Sinto os pelos da minha nuca eriçados. Uma quentura desagradável percorre meu corpo desconjuntado enquanto meu cérebro se mostra incapaz de aceitar o que meus olhos aterrados veem.

EU O CONHEÇO!

O padre ergue os cantos da boca. O padre porco que eu matei. Cortei-lhe a cabeça. A cabeça que está diante de mim, os olhos sarcásticos que apreciam cada centímetro de meu rosto contraído num ato de repúdio; as mãos cobrem meu rosto desfigurado. Penso na injustiça divina, na garganta cortada de ponta a ponta de minha Giordana, no sangue que espirrara em minhas roupas quando inutilmente tentei reanimá-la. Penso em Castiel, nosso filho morto, em Antoine dentro de seu caixãozinho de madeira pintada de branco; penso em Giovanni que parece ter me esquecido. Prefiro morrer a ser esquecida por ele.

- Não me diga! - Zomba o padre fitando-me com aqueles olhos repugnantes.

- Deixa-me em paz ou mata-me de uma vez. - Imploro com a voz abafada pelas mãos, as pernas estiradas, o tronco jogado contra a terra seca. Os fios desalinhados de meu cabelo imundo cobrem o meu rosto, mas, de soslaio, vejo suas botas de couro preto, manchadas de sangue. As botas se chocam contra a parede invisível que se parte em dois. Arquejo de espanto e horror enquanto rastejo. Ele gargalha, vitorioso. Eu me desespero sem compreender, ao certo, o que se passa. Como ele conseguiu entrar quando outros falharam? Por que estamos juntos no meu pesadelo? - Não me machuque. - Sussurro sem forças, arrastando-me como um verme. Ele avança, com altivez. Eu o odeio. Odeio tudo o que me fez passar. Sinto-me impotente. Ele, imponente. Onde está a Justiça? - Vc acabou com a minha vida!

- Eu não queria que fosse assim. - Ouvir arrependimento em suas palavras deveria ter em mim um efeito positivo, mas não tem. Tenho nojo dele e de tudo o que fizera ao meu corpo. Um nojo maior ainda por estar fugindo dele, de maneira tão humilhante, sem chance alguma de escapar. Eu odeio a todos. Odeio o Criador que nada faz para impedi-lo de tocar em meu corpo. Um corpo que me faz rastejar quando poderia correr. Odeio Giovanni que não está aqui para me defender. Odeio a mim mesma por não acordar. Já não sou mais nada, mas eu vou lutar. "Vc nasceu sozinha e morrerá sozinha", era o que minha mãe me dizia. Agora eu sei que estava certa. Morrerei sozinha, não me importo. Estou arrastando meu corpo na lama fétida, cavando espaço entre os corpos inertes. Ele está logo atrás de mim e não me toca. Por que não me toca? Por que não me mata logo? - Não vou te fazer mal. - Promete ele, arrependido. Eu o sinto. Mesmo coberta de lama, minhas mãos o sentem. Ele fala a verdade. Ele, o monstro, gostava de mim. AO INFERNO! O nojo se mistura à compaixão. Ganho um pouco mais de força, então, continuo impulsionando meu corpo para frente com o apoio dos braços. Arrasto as pernas mortas, o coração pulsando aceleradamente. A garganta continua a arder, a queimar. Quero seguir adiante. Quero ser mais ágil. Impossível. Ele vai me tocar a qualquer instante. Ele caminha vagarosamente quando poderia me esmagar sob suas botas imundas. Tão imundas quanto sua mente. - Espere, Morgana. Vc precisa entender...

- Que o Diabo o carregue! - Resmungo enquanto arrasto-me com dificuldade. Não posso parar. Esse monstro não vai encostar um dedo em mim. Não mesmo! Nem que eu tenha que me arrastar por quilômetros debaixo do inferno dessa neve que queima! EM MIM VC NÃO TOCA! - Mate-me! - Ordeno, rolando meu corpo, encarando-o com os olhos cheios de ódio e lágrimas. - É melhor me matar...- A voz sai dura de ódio. Seus olhos se fixam nos meus. Em seus olhos opacos enxergo sofrimento, remorso, medo. Estou apoiada em meus cotovelos, à beira da exaustão. Não suporto mais a dor, os gritos, os urros, os uivos, as aves, a neve, a colina acinzentada, os corpos fedendo a podre bem ao meu lado. - Me mate...- Digo num suspiro, tombando meu tronco no chão fofo de onde saem minúsculas criaturas rastejantes à cata de carne podre. Estou prestes a enlouquecer. Eu vou enlouquecer. Quero acordar ou então morrer. Aqui eu não quero ficar. - Me mata! - Olho em seus olhos enquanto ouço, de sua boca retorcida num esgar macabro, a voz grave e resoluta.

- Não posso. - Ele murmura, inclinando-se em minha direção. Ele se agacha ao meu lado. Eu cuspo em seu rosto ferido. Nojento, podre. Eu o odeio. Não adianta se arrepender. Agora é tarde. - Não posso te matar...

- Por quê? - Pergunto com a voz vacilante, o corpo tremendo, a cabeça latejando, os olhos estatelados. Suas mãos em meu pescoço. As minhas em seu antebraço, minha cabeça enterrada no chão. Ele não me sufoca. Ele apenas me toca. Eu cuspo em sua face uma segunda vez, já que não posso lutar contra ele. Ele que abre um sorriso diabólico. - POR QUE NÃO ME MATA?

Jamais me esquecerei de seu olhar enquanto pronuncia lentamente a resposta.

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.

.

- Vc já está morta, Morgana.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 24/02/2020
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