CAPÍTULO 2 - 'VINCENZO'

Assim que eu a vi, eu soube que ela traria felicidade à nossa casa. Aqueles olhinhos brilhantes, carentes. A boquinha vermelha como cereja. As franjinhas mal cortadas, as mãozinhas afoitas que se entrelaçavam às minhas ou às de Celeste, seu riso frouxo, um jeito franco em se acomodar no banco entre mim e Celeste. Tudo nela era vida, frescor, alegria, recomeço. Celeste ganhara novos ares. Ganhara o viço que havia perdido quando nossa filha partira antes de completar um ano de vida. Pobre Celeste. O coração dela piorou desde aquele instante. Seu médico dissera que a doença já existia, mas eu tenho a certeza absoluta de que tudo piorou a partir dali. Por mais que eu tentasse dissuadi-la de que ela não fora a culpada, de nada adiantava. Ela se fixara à ideia de que não havia sido uma morte natural. Ela jurou para mim que havia deixado nossa pequena no berço, viva, sorridente, com a barriguinha cheia, dormindo tranquilamente. "Eu cochilei. Eu cochilei e quando acordei...", repetia Celeste, com o olhar distante, os olhos devastados pela dor. Celeste, cansada pelas noites de vigília, adormecera juntinho de nossa filha e quando acordara, seu mundo havia se partido em mil pedaços. E o meu também. Jamais fora a mesma após encontrar o corpinho sem vida de Isabela em seu berço. Isabela não parecia ter sofrido. Parecia dormir como um anjo.

Fernando fora o que mais chorou. Sentira muito a falta da irmã caçula, mas, com o tempo, voltara a sorrir e a alegrar a casa com seu jeito sempre irreverente de ser. Às vezes, eu me pegava olhando para ele e algo, lá no fundo, gritava o que eu não queria ouvir, então, eu simplesmente, não ouvia. Apenas sorria para ele que me devolvia um sorriso espetacular com os olhos sagazes que me fitavam como se adivinhasse meus pensamentos obscuros. Seu sorriso sumia do rosto perfeito por segundos para, logo em seguida, surgir mais radiante quando corria em minha direção, pulando em meus braços, beijando minha bochecha, reivindicando o meu carinho. Eu sempre amei aquele jeito desleixado e divertido de ser do meu único filho, embora ele tivesse se apagado, quase que por completo, quando ainda tínhamos nossa Isabela conosco.

Fomos somente nós três durante um bom tempo: Celeste, Fernando e eu. Vivíamos felizes, mas havia a lacuna, a brecha, o vazio. O oco.

Nada, nem mesmo o amor que sentíamos por nosso filho, poderia preencher o espaço profundo que Isabela deixara. Nada. Os olhos de Celeste, que antes riam, deixaram de brilhar. Por mais que ela se esforçasse por esconder, não conseguia. Não de mim que a amava desde que nos conhecemos na faculdade. A moça dos cabelos da cor do sol encantara-me justamente pelos olhos risonhos e um jeitinho tímido somente dela. Celeste não sorria mais com os olhos. Não até a chegada de Giulinha.

Lembro-me como se fosse hoje. A garotinha com os cabelos curtos que mais pareciam ser cortados à navalha (e de fato, o eram), pulando de banco em banco, pisando nos pés dos que a atrapalhavam, olhos fixos em nossa fileira, bem no meio da homilia do padre Genaro que não permitia interrupções. Quando finalmente ela chegara ao nosso banco, com um pirulito no canto da boca, a menininha cuspia enquanto falava, olhando bem fundo em nossos olhos.

- Vcs são novos aqui?

- De forma alguma. - Esclareceu Celeste já encantada, curvando seu tronco na direção da pequenina que se intrometera em nosso meio e, para sempre, em nossas vidas.

- Posso ficar aqui? Meus pais são muito chatos. - Ela enrugara o nariz, revirando os olhos, sem se voltar para os pais que sequer deram por sua falta. E, de súbito, dissera algo que conquistara, pela Eternidade o coração de minha esposa. - Eu sei porque a senhora chora todas as noites. Ela não sofre. Ela pede que pare de chorar...

Lembro-me de ver Celeste sentada no banco da igreja, lívida, agarrando-se aos braços de Giulinha, segurando as lágrimas que se acumulavam em seus olhos. Eu sei disso porque estava logo ao lado dela, envolvendo-a com meus braços, aconchegando-a ao meu peito. Queria entender o que a menininha de bochechas rosadas e olhos tristes teria a dizer. Fernando mantivera distância de todos nós e, mais uma vez, a voz aqui dentro gritara o que eu deixara de ouvir. Preferi ouvir o que Giulinha tinha para nos dizer. Celeste pedira com muita calma e ternura que ela continuasse, apesar dos protestos de nosso filho que a fitava com os olhos enormes e aterrorizantes. Mas, somente eu os observara. Somente eu. Celeste não tirava os olhos de Giulia que desviava o olhar assustado de nosso filho. Gaguejara antes de falar com firmeza.

- Ela disse que a senhora não pode mais chorar porque o vestido dela tá molhado e ela não gosta de vestido molhado. Eu não gosto de ficar com vestido molhado. A senhora gosta de ficar com vestido molhado?

- Não. - Sussurrara minha esposa, sufocando um soluço. As mãos no peito dolorido. Eu a abracei com toda a minha força e jurei não deixá-la sofrer. Mas, promessas são quebradas.

Celeste, a partir daquele dia, deixara de prantear a morte - para ela inexplicável - de nossa filha, adotando como sua, a menininha que via com as mãos. Dia após dia, Giulia passara a frequentar nossa casa, até que nossa casa passara a ser a dela também.

A voz que eu abafava dentro de mim, agora sussurrava que eu deveria ficar de olhos abertos. Olhos bem abertos.

Eu fiquei, meu anjo. Mas, não o suficiente.

Perdoa o tio.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 05/03/2020
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