'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 3 - CINCO ANOS ATRÁS

"There was something in the air that night

The stars were bright, Fernando

They were shining there for you and me

For liberty, Fernando"

(FERNANDO - ABBA)

Eu pego a caixa das mãos de minha tia que a solta, sorrindo. A caixa está embalada em papel dourado e, sobre ela, um laço vermelho. Eu não tenho paciência para desembrulhar o pacote com calma, então, eu desfaço o laço que cai sobre minhas pernas unidas onde apoio a caixa. Rasgo o papel, ávida por saber o que há lá dentro, embora, pelo toque, eu consiga ver as mãos dela tocando o tecido, admirando o vestido. Sinto o seu amor por mim. Sinto sua satisfação em me presentear em um dia, para ela, muitíssimo importante. Ouço seu coração bater acelerado ao pagar a conta. Ouço o som da caixa registradora. Vejo o recibo sendo entregue, os olhos da tia, quando ela cruza o batente da loja especializada em vestidos de festa. O sol incide sobre o seu rosto, a pele de pêssego, o cabelo dourado, os lábios rubros, a boca que se abre num sorriso cheio de compaixão.

Não sei quando comecei a sentir essas coisas. Não me recordo da primeira vez em que 'vira com as mãos'. É assim que meu tio costuma se referir ao que minha tia chama de "faculdade". Eu tenho a faculdade de ver com as mãos. Eu toco coisas e pessoas e, quase sempre, sinto o que sentem; o que veem; o que pensam. É uma droga sentir isso. É uma porcaria porque nem tudo o que vejo ou sinto é bom. Na verdade, a maioria das manifestações são ruins, mas, minha tia sempre torna tudo mais fácil para mim. Sempre foi assim. Desde que a conheci. Desde que entrei...ou melhor, me intrometi em sua vida, ainda aos seis anos. No ano passado, ela me deu um par de luvas de couro preto para que eu as usasse no inverno. Dessa forma, eu não só espantaria o frio de minhas mãos como evitaria os transtornos causados por minha 'faculdade'. De fato, as luvas impedem, de alguma forma, que eu receba as informações vindas de outros, logo, passei a andar por aí com luvas. No início, eu me senti ridícula de luvas em pleno verão. Todos riam de mim. Caçoavam de mim. Espalharam por aí que eu estava com lepra, então, me apelidaram de 'Aleijadinha'. Fernando, ao invés de me proteger, engrossava o coro dos idiotas que riam de mim. Nessas ocasiões, enfurecida, desequilibrada, eu praguejava contra eles bem no meio da rua ou de onde quer que estivesse. Eu fixava meus olhos neles e, bastava um pouco de concentração e muita raiva para desvendar os segredos podres escondidos naquelas cabeças ocas. Canalhas!!! Eu jogava a merda no ventilador. Éramos todos muito jovens, mas, alguns já possuíam segredos inconfessáveis que, graças a mim, foram expostos aos que nos cercavam. Eu poderia sair dali, triunfante, no entanto, o sorriso sarcástico do filho de minha tia me dizia o quão desprezível eu era para ele. Eu ainda me sinto assim. Ainda que ele me olhe de outra forma hoje. Há algo em seus olhos que não sei decifrar. Algo que me assusta, embora me atraia. Deus...não quero pecar.

***

Minha tia acaba de me presentear com um vestido. Eu o pego da caixa e o admiro, levando o tecido macio ao meu rosto. Minha tia tem o dom da cura. Ela sim, tem poderes. Ela sim, tem luz. Penso que se ela sorrisse por vinte e quatro horas seguidas, seria capaz de iluminar uma cidade inteira por uma semana. Minha tia é luz. Meu tio é luz. Não compreendo como dois seres tão amorosos e iluminados trouxeram ao mundo alguém como ele. Ele que caçoa de mim. Eu o odeio. Eu odeio o jeito como ele se afasta de mim, o jeito como me olha, como me despreza ou finge me desprezar. Eu sei que ele sente algo, mas ainda não conheço os meninos ou que sentem. Não sei como devo me portar diante deles. Ele não é tão mais velho assim. Ele é apenas quatro anos mais velho do que eu e, no entanto, se comporta como uma criança mimada. Uma criança mimada e má. Não sei como meus tios não enxergam isso. Não enxergam o quanto ele me olha de maneira estranha. Ele não me olha como a uma irmã tampouco como a uma garota atraente que ele gostaria de namorar. Ele me olha com os olhos sombrios, repletos de rancor. Não me importo. Amo seus olhos azuis e aquele sorriso confiante, suas covinhas, sua pinta acima dos lábios finos e rosados, seus dentes ligeiramente tortos, os incisivos pontiagudos que me fazem lembrar dos vampiros dos filmes que assisto junto ao meu tio, aos finais de semana. Sinto que minha tia sabe de tudo. Sinto que ela teme a verdade. Sinto que ela conhece mais do que aparenta. Eu já tentei entender o motivo pelo qual ela chora todas as noites. Não é por saudades de Isabela, a filha que morreu com um ano de idade. Não é. Não é só isso. É mais do que isso. É algo ligado ao bebê, mas...vai além disso. Se eu pudesse ajudar a tia a parar de chorar. Se eu pudesse fazer o Nando parar de me desprezar...

- Gostou? - Tia Celeste pergunta enquanto eu cruzo o umbral da porta do banheiro indo, célere, em sua direção, já dentro do vestido que devo usar em minha festa de quinze anos daqui a exatos noventa minutos. É simplesmente di.vi.no! Vermelho com pequenas flores bordadas nas alças finas e uma fitinha de cetim na altura dos seios. É para os meus seios que ele sempre olha. Por mais que eu o ame, eu temo aquele olhar sempre à distância, sondando, observando, maquinando algo, sem tirar os olhos frios dos meus seios. Se ele ao menos sorrisse para mim...- Filha! - Tia Celeste estala os dedos diante dos meus olhos. Eu abro meus olhos e, então, vejo meu reflexo no espelho. - Onde estava dessa vez?

- Lugar nenhum, tia! - Respondo satisfeita com o que vejo refletido na superfície espelhada. Meu vestido novo é um arraso! - Deve ter custado uma fortuna, tia! - Digo isso, sem desviar os olhos do meu reflexo. Ela ajeita a barra do vestido e eu a beijo no topo de sua cabeça.

- Vc merece, meu anjo. Hoje é o seu dia! - Ela me beija na bochecha enquanto eu envolvo sua cintura em meus braços, recostando-me ao seu peito. Ouço seu coração bater descompassado. Uma imagem ruim surge em minha mente. Eu me afasto dela e trato de espantar a imagem, apoiando-me na ponta dos pés, só que sem as sapatilhas. Eu amo dançar e, meu tio foi o primeiro a perceber isso. Logo que o percebeu, tratou de me matricular em uma academia de Ballet. Hoje, no dia em que completo quinze anos, saltei. Um 'Grand Jeté' perfeito, segundo meu professor. - E se não parar de sonhar, vai se atrasar para a festa. - Ela adverte, ajeitando as alças. - Convidou suas amigas?

- Sim. - Respondo, pigarreando, tossindo, engolindo o nó em minha garganta. - Convidei. - Minto, ainda agarrada a ela. Não tenho amigas. Não gostam de mim porque sou estranha. - Mas, algo me diz que elas não virão. - Volto ao espelho, piscando repetidas vezes, pois não quero chorar diante dela. - Eu sinto que elas não virão. São cheias de compromissos. - Uma lágrima escorre do meu olho direito, então dou três piruetas em sequência. Ela se afasta e me admira. Paro, de súbito, erguendo meus braços, esticando a perna esquerda, inclinando-me para frente, numa singela reverência. Minha voz sai fraca de tristeza quando, enfim, respondo. - Tia, acho melhor não esperar por elas.

Não?

- Não.

- Sei. - Assente ela com a cabeça, a voz calma quando seus olhos compassivos se fixam nos meus. - Compreendo. - Sua boca se abre num sorriso triste. Sinto que ela conhece a verdade. Parece sempre conhecer a verdade e sempre se cala. - Sabe de uma coisa? - Ela vai até a penteadeira, toma a escova nas mãos e volta até onde estou. Eu sorrio porque sei o que vai acontecer. Ela me penteia com suavidade, trançando meus cabelos enquanto me observa através do espelho. - Eu também não tinha amigas na sua idade.

- Não??? - Exclamo, voltando meu rosto para trás. Endireito minha postura, pois ela puxa, de leve, meus cabelos para continuar a trançá-los. Eu a encaro pelo espelho, admirando seu sorriso. Eu amo quando a tia penteia meus cabelos. Ela disse que pentear os cabelos de alguém é um ato de amor. - Nenhuma? Nenhumazinha? - Insisto, de olhos fechados.

- Não. - Responde ela, exalando um suspiro. - Nenhuma. Eles também me achavam estranha. - Arregalo os olhos, a boca entreaberta. Estou pasma. - Sim. - Ela assente, voltando os olhos vagos à trança e continua. - Eles me olhavam torto como se eu fosse louca porque falava sozinha. - Ela baixa a cabeça e começa a rir do jeito como a estou olhando. - Sério! - Seus cabelos brilham sob a luz do lustre quando ela balança a cabeça, ainda rindo tipo uma louca. Eu rio também porque a amo e não me importa que ela seja louca porque eu também sou. Quero parecer com ela em tudo. Sinto um torpor extremamente agradável enquanto ela toca em minha cabeça. A suavidade de seu toque e de sua voz me dão sono. Meus olhos estão pesados e há um sorriso bobo grudado em meu rosto. - Eles achavam que eu falava sozinha. Tolos! - Desperto, assustada, quando ela se inclina para mim e cochicha ao meu ouvido. - Eu não falava sozinha. Sempre havia alguém ao meu lado. Alguém que precisava de ajuda. Alguém que necessitava de orientação ou alguém que simplesmente queria me assustar. - Meu queixo cai enquanto abraço a mim mesma porque começo a sentir frio. Um frio que sobe da base da coluna até a minha nuca. Estremeço. Ela ri de mim. - Nunca estamos a sós, Giulia. Em nenhum momento, em nenhum lugar. Eles estão aqui e conhecem nossos pensamentos e, se encontrarem brechas, eles vão entrar.

- Eles estão aqui, tia? - Pergunto com medo da resposta. Ela olha ao redor e, sorrindo, responde que sim. Ela me diz que não devo ter medo. Ela me diz que não devo dar brechas. Ela me explica que brechas são portas que abrimos quando nossos atos e pensamentos coincidem com os deles. Sejam eles bons ou maus. Ela termina a trança. Eu estou encantada com o que ela fez ao meu cabelo. Uma trança frouxa, perfeita, caindo sobre meu ombro direito, decorada com pequeninas borboletas douradas, espalhadas por minha cabeça e ao longo da trança. Deslizo as mãos sobre meu vestido, ajeitando-o ao meu corpo. A saia godê se arma no formato de um sino perfeito quando giro em torno de mim mesma e o lastex no corpo do vestido me confere curvas que, até bem pouco tempo, eu não possuía. Pura magia! Dormi e, quando acordei...pluft! Estava com uma bunda empinada e seios fartos!

Sinto que, a partir de hoje, minha vida vai mudar. Eu sei que vai. A partir de hoje, tudo vai ser diferente, melhor. Talvez, a partir de hoje, ele passe a gostar de mim.

Mas ainda não gosto do seu olhar inexpressivamente sombrio quando nos encontramos no corredor que liga o quarto da tia à cozinha. Passo por ele de cabeça baixa, contendo um sorriso. Preciso chegar ao meu quarto para terminar de me maquiar. Ele vira o pescoço com tanta veemência que chego a ouvir os ossos de seu pescoço estalarem. Levo a mão à boca, tapando-a, porque não quero que ele ouça meu riso. Ele ri e o som de sua risada espontânea faz minhas pernas tremerem. Ele chama por meu nome, ele me diz que estou linda, embora não tenha parado para olhar diretamente para os seus olhos. Eu puxo o ar pela boca e, antes de me virar, disparo, estupidamente.

- O que quer de mim?

***

- Ei, ei, ei! - Exclama ele na defensiva, elevando as palmas das mãos como se eu tivesse acabado de anunciar um assalto. - Calma. Só quero dizer uma coisinha...- Seu sorriso cafajeste me congela por fora e me incendeia por dentro. Que droga! Estou com a boca aberta e as palavras fogem justo agora. Justo eu que falo tanto! Não consigo articular um pensamento que faça sentido e ele não para de me vasculhar com aqueles olhos intensos, azuis e perigosos. - Vc tá linda, sabia?

- Não! - Digo sem pensar, movimentando meu diafragma mais rápido do que de costume. Estou inspirando e expirando pelo nariz e não consigo parar.

- Não foi uma pergunta. - Ele estica o braço direito em minha direção. Certamente quer me cumprimentar. Para quê? Isso é patético! Eu recuo, de imediato, dando um tapa certeiro em sua mão que se retrai. Que ridículo! Esperei tanto por isso e agora...- Ouch! - Mordo minha bochecha segurando outro riso enquanto ele sacode a mão atingida. - Foi um elogio, baby!!! - "Baby"???

- Não me chame assim. Sou Giulia. Só Giulia!

- Ok. - Ele se recosta ao batente da porta da cozinha, impedindo-me de passar. Como se eu pudesse me mover! Ele baixa a cabeça e seu sorriso é esmagadoramente atraente. Sua cabeça volta a se erguer e seus olhos encontram os meus. Meu coração quer pular pela boca. Então, levo a mão direita ao peito, quando ele refaz a frase que sai de sua boca lentamente. - Isso não foi uma pergunta, "Só Giulia". Foi um elogio. - Ele eleva o canto da boca quando ouve o som estridente de minha risada. Droga!!! Nunca fui boa em ficar de mal com alguém por muito tempo. Principalmente com ele que viveu comigo desde seus dez anos. Éramos inseparáveis. Éramos amigos até que minha tia passou a agir de maneira estranha. Minha tia procurava estar comigo durante o tempo em que eu queria estar com ele...a sós. Eu só queria estar com ele, brincar com ele. Brigar com ele. Ele ria do meu jeito de moleque. Das roupas largas, dos bermudões que cobriam minhas coxas finas e os joelhos sujos. Ele ria do meu cabelo em forma de cuia. Era assim que minha mãe os cortava. "Cabelos compridos dão muito trabalho", dizia ela com a tesoura erguida acima de minha cabeça. Mas isso mudou, mamãe. Agora eu tenho cabelos compridos, sedosos, pesados. Cabelos que cheiram a pêssego. Cabelos cuidados pelas mãos da tia. A tia que me trouxe para cá. A tia que cuida de mim como a mãe que a senhora não sabe ser. A tia que me impediu, por algum motivo, da noite para o dia, de me relacionar com Fernando. A tia que se mostrava preocupada quando nos via juntos no quarto, porta sempre aberta, brincando de "War" ou "Detetive". A tia que fez de tudo para que ele fosse estudar em outro estado, a despeito de meus pedidos desesperados. A tia que me abraçou com força, dizendo ser melhor assim quando ele me disse adeus. Como poderia ser melhor ficar longe de meu único amigo? Como poderia ser melhor viver sem ele ao meu lado e deixar de ouvir sua gargalhada sarcástica, seus insultos que, para mim, não tinham a menor importância. Eu sabia...eu sempre soube que ele tinha um carinho especial por mim. Um carinho tão especial que minha tia o tirou de minha vida por longos e solitários quatro anos. Agora, ele está de volta e me estende a mão direita, enquanto eu permaneço estática, a boca entreaberta, os olhos distantes. - Amigos? - Ele inclina levemente a cabeça e eu tento entender o que ele diz. Vejo seus lábios se movendo, os músculos do braço estendido ressaltados pela camisa branca, de algodão, que ele usa. A calça jeans clara, surrada, os músculos das coxas, o peitoral expandido...cacetada! - 'Só Giulia'? - Ele estala os dedos diante dos meus olhos. Eu tenho certeza. Eu tenho quase certeza de que ele me viu olhando pra lá. Deus não. Não deixa que ele tenha percebido...- Amigos? - Repete ele com seriedade.

- Sim. - A resposta sai rápida. Tão rápida quanto o aperto de mão que compartilho com ele. A última coisa que desejo é ter visões do que ele andou fazendo com as garotas lá onde ele estudou. NÃO QUERO! - Com licença! - Digo, empurrando-o contra a porta, usando meu corpo para isso. Ele se deixa empurrar. Eu passo por ele quando, na verdade, quero abraçá-lo e dizer que morri de saudades. Quero estapear seu rosto por não ter respondido às cartas que enviei. NENHUMA!!! - Larga meu braço, garoto! Eu tô avisando!

- Saudades da minha amiga...- Sua voz suave, seus olhar nostálgico. A pinta acima dos lábios. - Solta! - Eu estreito meus olhos e inflo as narinas. Meus punhos já estão cerrados e prontos para achatar o seu nariz...perfeito. Finjo estar zangada quando, por dentro...putz grila! Por dentro eu quero explodir de felicidade! Ele sentiu saudades de mim. De mim. DE MIM! - Não mereço um abraço?

- Vá pro inferno! - Digo segundos antes de acertá-lo em cheio no olho direito. Ele urra de dor enquanto saio saltitante pelo corredor e, antes de alcançar as escadas que me levam ao segundo andar, eu o fito novamente. Ele está incrivelmente atraente, curvado para frente, o abdômen retraído, as costas, o pescoço, a nuca coberta por pelinhos loiros, o cabelo recém cortado. O biltre andou se exercitando e não teve tempo de responder às minhas cartas! Uau! Daria uma unha pra poder tocar naquela nuca. - Vc não me escreveu de volta! - Grito, ofegante. - Eu te odeio por isso!

- Eu tentei! Juro que tentei! - Eu o ouço falar mais alto. Ouço seus passos rápidos logo atrás de mim. Estou sorrindo, mas ele não me vê. Sorrio porque sei que chamei sua atenção. Sorrio porque sei que ele voltou, agora para ficar. Sorrio porque ele quer me alcançar. Sorrio correndo, afastando-me dele que ainda se ressente pelo soco. Sorrio do palavrão que solta, resmungando. Sorrio porque hoje completo quinze anos e a festa está prestes a começar. Mesmo que eu não tenha amigas com quem comemorar; mesmo que os convidados se resumam aos meus tios e seus amigos; mesmo que meus pais não queiram aparecer, hoje será um dia super mega ultra especial porque ele me olhou nos olhos. Ele falou comigo. Ele sorriu para mim. Ele disse que eu estou linda...linda. Que palavra bonita! Cacete! - Agora a gente não precisa mais de carta. - Arquejo de susto com a sua mão em meu ombro puxando-me para trás. Eu enrijeço meu corpo e arregalo os olhos quando o ouço murmurar com a voz rouca, seu nariz quase roçando minha orelha. - Porque eu tô aqui. Logo, a gente pode conversar ao invés de escrever. - Penso que vou desmaiar, mas aguento firme enquanto ele complementa. - Eu voltei por vc. Por vc, 'Só Giulia' - Putz grila! Por que parece que eu levei um choque? Um choque que não me incomoda? Um choque que me faz vibrar por dentro? Um choque que faz o meu corpo reagir como eu nunca havia visto? Um choque me deixa tonta quando ele desliza o polegar da ponta da minha orelha até o início do pescoço, dizendo. - Quer sair e conversar um pouco? - Uau! Ele está me convidando pra sair! Eu não acredito. Não acredito! Ai, Deus! Isso é um sonho...não me acorda.

- Claro que não, garoto! - Eu forço meu cotovelo para trás e o ouço gemer novamente. Eu o acertei no abdômen duro como um pedra. Não sei porque fiz, mas fiz. Corro, alcançando as escadas. Subo-as de dois em dois degraus, arfando, praguejando, resmungando até chegar ao meu quarto. Bato a porta com força e a tranco por dentro, recostando-me nela. Então percebo que ainda estou com o sorriso patético pregado em meu rosto. - É isso o que chamam de amor? - Solto o ar pela boca, miro a cama e mergulho no colchão. - Giulia, Giulia. - Digo a mim mesma, cruzando as mãos atrás da nuca e também meus tornozelos. Permaneço deitada, os olhos fitando as estrelinhas grudadas no teto. Estão amareladas, mas ainda estão lá. Assim como o que eu sentia por ele antes de sua partida. Ainda está aqui, dentro de mim. - Diabos! - Cerro os olhos e escondo meu rosto embaixo do travesseiro. Minha voz sai abafada quando confesso. - Tô apaixonada.

****

A parte mais bacana da minha festa foi ter dançado com minha tia. Dancei com ela pela última vez. Se eu soubesse que seria a última, eu daria um jeito de congelar...de congelar tudo e prendê-la ao meu lado para sempre. Inferno! Mas não dá. Não se congela o tempo. Não há como parar o Tempo porque o Tempo não para. 'O tempo não para'. Foi Cazuza quem disse isso. Acho que ele também gostaria de ter congelado o Tempo e prendido alguém a quem ele amava, ao seu lado.

Dançamos juntas ao som de ABBA, sua banda preferida. Éramos somente nós duas na pista de dança, com luzes coloridas irradiadas através dos holofotes afixados nos quatro cantos do terraço. Giramos e giramos e rodopiamos como crianças. Seu sorriso, seus gritinhos de euforia, seu cansaço, as batidas aceleradas de seu coração imenso. Suas mãos nas minhas. Minhas mãos sem as luvas. Eu senti o seu medo. Eu conheci seu receio naquela noite. Por que tem medo, tia? Tá tudo bem!

- Não fica com medo, tia. - Cochichei ao seu ouvido quando a música parou. - Nada de ruim vai me acontecer. Eu juro.

- Não jure. - Suas mãos geladas apertam as minhas e ela fica me olhando, indo de um olho para o outro, por segundos, até falar baixinho. - Proteja-se. Seja esperta e proteja-se.

***

A música termina e eu ainda tento decifrar o que ela tentou me dizer. Enigmas nunca foram o meu forte. Dançar sim! O meu e o do meu tio querido. Tio Vincenzo! O tio que me ensinou os passos do Mambo, da Salsa, da Rumba e até do Samba. Mas agora a hora é de Chubby Checker e seu irresistível "Twist"! Meus quadris parecem ganhar vida quando vou ao encontro de meu tio, totalmente ensandecido, bem no meio do salão, absolutamente vazio. Eu já mencionei que não tenho amigos ou amigas? Pois é! E quem precisa de amigos com os tios maravilhosos que tenho???

Avisto meu tio deslizando pelo salão, vindo em minha direção, clamando: "Everybody say yeah yeah", num movimento desconexos de braços e pernas. Sinto que está bastante entusiasmado. Um pouco além da conta. Não me preocupo. Diferentemente de meu pai, meu tio jamais passou do ponto em se tratando de bebidas. Uma ou duas tulipas de Chopp são mais do que suficientes para deixá-lo 'alegre'. Mais alegre do que ele é. Quando ele estende o braço esquerdo em minha direção, compreendo ser a deixa para que eu entre em cena e repita diante dos outros o que já havíamos combinado antes, na pista improvisada da sala de estar lá embaixo. Rodopio até chegar a ele. Ele me dá a sua mão. Eu seguro a dele. Seus cabelos cabelos lisos estão colados ao rosto arredondado, a pele rosada. Os olhos azuis e plácidos. Os olhos risonhos que jamais me esquecerei agora me fitam com extrema alegria. Eu me pergunto, contendo as lágrimas de emoção, o que eu fiz de bom para ter um tio assim e antes de pensar na resposta, sou sugada por ele até o centro da pista onde nos largamos, nos perdemos e nos reencontramos durante a música estonteante que o faz ofegar. Pobrezinho. Fez de tudo para que eu não me sentisse isolada, rejeitada. Soube pela tia que ele mesmo fora às casas das meninas da nossa rua, convidando-as para o meu aniversário. Certamente, elas sorriram e afirmaram que aqui estariam e, de certo, estariam por eles e por Fernando, mas, não por mim. Por mim, não.

Eu o vejo diante de mim, esforçando-se por se lembrar dos passos, abrindo um sorriso triste porque os esquece a todo o instante. Eu pego suas mãos e me posiciono em frente a ele. Eu o faço entender que basta seguir meus passos. Passos simples e cadenciados. De um lado para o outro. De um lado para o outro. Ele me sorri com os olhos marejados. Eu sorrio para ele. Ele pisca de volta, então sei que o medo que ele sentia fora embora. Mas, o meu, cresce a cada vez que o sinto sumir de mim. Não conheço o que ele tem, embora eu o sinta desaparecer dia após dia. PARA DE PENSAR BESTEIRA! Balanço a cabeça como louca que espanta um inseto inconveniente. Minha trança, como uma chibata, açoita seu rosto.

- Perdão, tio! - Exclamo, angustiada por enxergar a inexpressividade em sua face avermelhada. - Perdão. - Beijo sua bochecha e, então, ele desperta. Eu o abraço forte. Tão forte que chego a ouvir suas costelas estalando. Mas ele não reclama. Ao contrário, gargalha como uma criança e, de onde estamos, podemos ver a tia que sorri, com o dedo recheado com o glacê do bolo. Estou feliz. Estou muito feliz! Ele me envolve em seus braços fortes e protetores, os mesmos que me acompanharam desde criança. - Não me deixa, tio. - Murmuro contra sua camisa ensopada pelo suor e seu perfume invade minhas narinas. Sinto sua boca contra o topo de minha cabeça e isso me conforta. Ele diz que não vai me deixar. Ele promete que não vai me deixar. Penso que promessas podem ser quebradas.

- Não vou te deixar...- Repete ele, num tom soturno. Eu o aperto ainda mais. Quero dizer que sou muito grata a ele por tudo que me fez e ainda faz. Quero dizer que esta foi a melhor festa que já tive em toda a minha vida porque eles estão aqui. Quero dizer...pedir que continue a me proteger como sempre o fizera. Quero implorar que não se deixe abater por seja lá o que esteja acontecendo dentro dele. Quero que essa noite jamais termine. Quero proibir que Deus o leve e o tire de mim, mas, limito-me a ficar calada, ouvindo seu coração se acalmar, as batidas cardíacas voltando ao normal. Eu me afasto dele que ainda segura minhas mãos, esticando meus braços. Ele me fita de cima a baixo e com ternura em cada palavra, me diz que tem orgulho de mim. Orgulha-se do que sou e do quão forte eu sou. Orgulha-se do quão íntegra eu sou e do coração puro que tenho. Sinto um calafrio a percorrer minha coluna quando olho sobre seu ombro e encontro Fernando num dos cantos do terraço, jogado na cadeira em vime com almofadas floridas. Seus olhos incidem sobre os meus como duas flechas de fogo. Não posso afirmar se é por ciúmes, inveja, raiva ou sei lá o quê. Sinto medo e, ao mesmo tempo, vontade de ir até lá e me sentar ao seu lado. Beijo a testa de meu tio, deixando-o nos braços da tia e sigo adiante. Olho para trás, sobre meus ombros, e ainda os vejo dançando como dois pombinhos. Engulo em seco o nó na garganta. Um nó bem maior do que os anteriores. Ver os dois juntos me causa uma sensação estranha que me enfraquece e me faz suar frio. Devo estar com a pressão baixa. Não comi nada a festa inteira. Volto meus olhos ao garoto rebelde relaxado no sofá que pisca para mim de um jeito que me faz arquejar. Putz Grila! Que merda! Corro feito uma tonta por entre os amigos de meus tios, empurrando-os até que, finalmente, encontro a porta da saída. Quero fugir dele. Quero ficar com ele. Quero raciocinar e só faço andar apressadamente. Antes de cruzar o umbral, arrisco um outro olhar ao filho dos meus tios e não o encontro mais. Imbecil! Não dançou comigo uma só vez. Não participou da festa. Não gosta de mim! O DIABO QUE O CARREGUE! Enfurecida, desço as escadas, pulando de dois em dois degraus. Caminho a passos ligeiros até a porta da sala. Avanço pelo quintal, aspirando o aroma inebriante da Dama-da-Noite. Sinto uma dor no peito sempre que seu perfume penetra em minhas narinas. Sinto saudades de algo que ainda não vivi. Bizarro! As luzes piscando envoltas nos arbustos do jardim de minha tia, a decoração com bolas de aniversário. Bolas que voam com o vento. Bolas solitárias assim como eu. - E quem precisa de amigos se eu os tenho comigo? - Penso alto enquanto desço a rua à procura de ar. A chuva logo vai cair. Sinto seu cheiro. Ouço o Sudoeste soprar em meu ouvido. Os carros passam por mim e seus faróis me fascinam. Paro diante do semáforo. A chuva despenca e eu abro um sorriso. Eu amo a chuva! Pingos grossos vergastam minha pele, mas eu não me importo. As pessoas fogem com suas capas cobrindo os cabelos bem penteados. Eu ergo as mãos aos Céus e imploro ao Pai que os deixe comigo. Sequer consigo abrir os olhos tamanha a violência do temporal. Os pingos encharcam minha roupa, minha trança. Então eu sei que posso chorar porque se me virem, pensarão que é a chuva que lava o meu rosto e não as lágrimas. Choro. Choro tanto que não consigo sufocar os soluços que sacodem o meu corpo curvado para frente, as mãos frias cobrindo o meu rosto. O sinal está vermelho. Eu me preparo para atravessar a avenida, mas não sei aonde vou. Só quero ir.

É quando o ouço a chamar por mim.

- Hey, baby! Entra! - Ele se estica dentro do carro e abre a porta do carona. Eu pisco, pisco, pisco até que minha visão se desembace. É ele. O que ele tem que faz meu coração acelerar num repente? É ele. Deus é ele! - Entra! Entra logo, Giulia! - Ele continua com o corpo inclinado para o lado e em seu rosto surge, lentamente, aquele sorriso cafajeste que passou a fazer parte de minhas noites insones. Eu me abraço, tremendo de frio, sem entender o que ele quer que eu faça. Eu jamais entrei no carro de um rapaz antes. No entanto, ele não é uma rapaz comum. É praticamente meu irmão. Não. Irmão não. Meu primo. Um primo distante de segundo ou terceiro grau. O que há naquela boca de tão atraente quando ele morde o lábio inferior e me fita com os olhos semicerrados? Cacete! Ou eu saio correndo ou entro no carro! RESOLVA! - Entra...- Sua voz sai num gemido que me eletriza por inteiro enquanto o vejo observando meu corpo delineado pelo vestido molhado. Um novo arrepio ainda mais forte e, meio que sem pensar, eu me jogo na poltrona de qualquer jeito, puxando em minha direção a porta do carro que se fecha num estrondo. "Puta merda!", ele diz baixinho, um tanto contrariado, encostando a testa no volante. - Não tem geladeira em casa?

- Oi??? - Eu o fito com os olhos estarrecidos. QUE DIABOS ELE QUIS DIZER??? Isso o faz rir. Com gesto ligeiro de mão, ele indica que não tem importância. Ele se inclina sobre mim até alcançar a maçaneta da porta. Eu me encolho no banco do carona o máximo possível. Sinto que se ele tocar em mim, eu entro em combustão espontânea. Minha tia não me explicou nada sobre pegar fogo ou coisa do tipo. Disse que o amor me traria paz, tranquilidade e alegria. Então, posso concluir que o que sinto não é amor porque estou prestes a implodir de tão inquieta. Meu Pai! Ele tem um cheiro gostoso parecido com o creme de barbear do tio só que muito muito muito melhor!!! - Algum problema? - Ele sussurra com a boca quase encostada à minha enquanto checa se a porta está bem fechada. Ele puxa o cinto de segurança e roça a mão em minha barriga quando eu ouço o 'clic' da lingueta sendo encaixada ao fecho do cinto. Prendo a respiração até que ele volte ao seu lugar. Por mais um segundo, eu teria morrido asfixiada...ou incinerada. Ainda não acabou porque, de onde está, ele me encara como se esperasse alguma reação. E eu reajo! Aperto o botão do play do rádio sintonizado em uma estação de Rock.

- UAU! AMO ESSA MÚSICA! - Exclamo, eufórica. Pateticamente eufórica sem perceber que ele ri de mim. Eu jogo pela janela a minha euforia e desligo o rádio, fazendo bico. Ele me diz que sou uma gracinha, ao mesmo tempo que tenta acariciar meus cabelos molhados. Digo 'tenta' porque não consegue. Leva outro tapa na mão boba. Eu rio de seus resmungos e me fixo ao movimento hipnótico do limpador de para-brisas. Pra lá e pra cá. Pra lá e pra cá. Isso dá sono. - Aonde estamos indo? - Disparo, lançando-lhe meu olhar maquiavélico. Bem, pelo menos é assim que meu tio classifica esse meu olhar. É tipo quando ergo a sobrancelha e inflo as narinas. O que tem de maquiavélico nisso eu não sei. Apenas aceitei. Eu aceito tudo o que vem do meu tio. - PARA DE OLHAR PRA MIM E RESPONDE!!!

- Aonde quer ir?

- Não sei. - Digo ofegante, voltando meus olhos ao limpador de para-brisas porque eu sei que ele está me encarando...novamente. Isso, de certa forma, me inquieta. Não é um olhar de admiração. É mais um olhar 'perscrutador'. Isso foi minha tia que me ensinou. Ele me olha como uma cobra olha para sua presa antes de atacar. Eu odeio cobras. Odeio cobras, mas...eu gosto dele e não me importo que me olhe assim, afinal, que mal há em passear com o filho dos meus tios? Meu antigo melhor amigo? - Só quero respirar um pouco.

- Respirar... - Repete ele, tocando a ponta de minha trança molhada. Dessa vez, eu não o estapeio.

- Sim. Respirar.

- Conheço um ótimo lugar pra vc respirar, Baby. - Diz ele, girando a chave da ignição. Eu giro meu pescoço violentamente e meu olhar dardejante encontra o dele. - Já sei! Já sei! Já sei! - Ele ergue as mãos e logo as abaixa. - Não vou te chamar de 'Baby'. É Giulia. Só Giulia!

- Giulia. Só Giulia.

Ouço o ronco do motor enquanto olho pelo retrovisor onde vejo a casa dos tios cada vez mais distante. "Proteja-se.", ouço a voz angustiada da tia em minha mente. Dou de ombros, balançando a cabeça, espantando essa lembrança. A tia se preocupa demais comigo. Muito mais do que minha mãe que sequer compareceu à minha festa. Não fez falta. Não me ame. Eu não preciso de mais amor. Já tenho o dos meus tios e...talvez, o dele. Nossos olhos se encontram na escuridão do carro e, quando a luz do farol de um caminhão que vem na direção contrária, na estrada, ilumina seu rosto, vislumbro um sorriso meigo, suave. Eu retribuo com outro sorriso tão suave quanto o dele. Sua mão direita pousa calmamente sobre a minha mão esquerda. Paralisada, eu puxo o ar pela boca e expiro vagarosamente. A sensação é incrível!!! Eu gosto disso. Se isso é amor, eu quero continuar, embora, lá no fundo, há uma voz que me diz: 'Saia do carro." Eu não ligo.

A tia disse que nossas vidas é feita de escolhas. Eu fiz a minha naquela noite chuvosa de sábado.

Aos quinze anos, eu perdi minha virgindade e minha inocência. Aos quinze anos,

eu

fui

violentada.

***

Chove muito lá fora. Os vidros estão embaçados e o limpador de para-brisas parou de se mover. O motor do carro não ronca mais. Ouço apenas os pingos da chuva caindo sobre o capô do carro. O que deveria me acalmar, na verdade, me aflige. Estou chorando de dor, mas eu não o deixo me ver. Eu já desisti de gritar, implorar para que ele pare de se mover e, sempre que ele se move dói mais e mais. Arde. A cada vez que ele se afunda em mim, arde. Eu comprimo meus olhos de dor, mas não grito. Não adianta. Estamos em algum mirante onde se pode ver a cidade inteira iluminada, mas, aqui, no carro, só há trevas. Poderia ter sido lindo. Uma noite fantástica. Eu poderia até ter cedido com prazer se ele soubesse, ao menos, pedir. PORCO! Ele tenta beijar a minha boca e tudo o que posso fazer para demonstrar que ele me fere é desviar meu rosto e olhar para a maçaneta da porta do banco do carona onde estou deitada, sendo esmagada por seu corpo. Ele lambe meu pescoço e eu sinto nojo, mas não grito, mesmo porque não há pessoas ao nosso redor. E ele disse que estaríamos cercados por dezenas de carros com os vidros embaçados. Eu não entendi no momento e cheguei a rir. EU CHEGUEI A RIR DESSE VERME! Minha garganta está seca, minhas mãos estão longe de seu corpo porque, se eu o abraçar para não chacoalhar tanto com seus empurrões, ele vai achar que estou gostando e eu disse não. EU.DISSE.NÃO! Eu disse não por tantas vezes, mas não foi o suficiente porque ele continua a gemer e a chamar por meu nome, olhando-me enquanto se movimenta num ritmo constante. Eu nunca havia visto uma cena de sexo antes. Nos filmes, tudo é bem diferente. A primeira vez de uma garota é cercada por glamour, suavidade, músicas românticas, toques singelos e, o beijo, sempre precede o ato que jamais JAMAIS é doloroso. É tudo tão lindo! Lindo e falso.

A vida não é um filme, meu bem. A minha primeira vez está sendo terrível. Eu não estou feliz e acho que jamais o serei. Acho que vou levar esse momento comigo para o túmulo. Ele estragou tudo! TUDO! Ele não soube esperar. Ele sequer soube insinuar que me desejava! Ele é feroz! Seus olhos me assustam porque não param de observar os meus movimentos, os meus seios que quase saltam do decote. Aaah...o lacinho vermelho tá arrebentado. Foi ele. Estúpido. ESTÚPIDO! Ele chama por mim novamente. Ele diz que me ama. Ele diz que sempre me amou. Ele é um doente! Ele diz que me amava desde os meus doze anos! É louco! Devasso! Eu não sei o que pensar, só quero que isso acabe e, parece nunca ter fim e, mesmo que esteja perto do fim, eu não saberei porque não sei o que vem depois disso. Eu já não suporto mais! Eu cubro meu rosto com as mãos quando ele geme mais alto e, como um animal no cio, ergue o tronco, tremendo-se todo. Eu sinto. Eu o sinto dentro de mim. Parte dele está em mim agora. Eu não sei o que fazer! Deus! Ele estragou tudo! Eu quero ir para casa. Quero dormir para sempre. Quero voltar no tempo e nunca ter me apaixonado por ele. Seu corpo tomba sobre o meu, quase inerte. Eu procuro me lembrar do exato momento em que percebi a mudança em seu olhar. Estávamos conversando sobre nossas músicas, cantores, bandas prediletas quando, de súbito, a cadeira onde estou tomba para trás, eu me assusto e ele me sufoca com seu peso. E agora, estou aqui, suja. Ele me sujou. Algo quente e viscoso escorre por entre as minhas pernas. Eu não vou encostar meu dedo nisso! Não mesmo! Eu tô com nojo. Muito nojo porque não sei o que é e se é meu ou dele. Eu tô com muito nojo. MUITO!

- Me leva pra casa! - Murmuro contra a porta, o corpo encolhido em posição fetal. Ele me abraça e sussurra um pedido de perdão. Ele desliza a mão em meu cabelo ainda úmido e promete que da próxima vez, ele terá mais cuidado comigo. Ele diz que os homens são assim. Diz que não conseguiu se conter porque sou muito bonita e instigante. Eu cerro os olhos e tampo meus ouvidos. A chuva aumenta lá fora e tudo o que quero é me lavar, esfregar a minha pele com a bucha vegetal até que ela sangre. Quero tirar todo e qualquer vestígio dele de meu corpo. Ainda estou encolhida quando ouço o motor do carro roncar novamente e me arrependo amargamente de ter saído do lado de minha tia. Um impulso. Um erro. Uma vida marcada para sempre.

Nada poderia me preparar para o que estava por vir. Nada.

Ele estaciona o carro e tenta me impedir de sair. Apesar de cruel, é estúpido, então, eu mordo o dorso da mão que segura meu braço. Abro a porta do carro e tento encaixar a chave no buraco da fechadura. Tento uma, duas vezes. Afasto-me um pouco para que a luz amarelada do poste velho ilumine a fechadura. Enfim, eu abro o portão e dou um passo adiante e quando tento fechá-lo, estando do lado de dentro, ele o empurra, pousando sua mão sobre a minha.

- FICA LONGE DE MIM! - Eu o ameaço com uma pedra na mão enquanto o vejo retirar a mão e abrir um sorriso brincalhão. Ele é louco! Rindo numa hora dessas??? - Monstro, porco, asqueroso! -Ele engole o sorriso e abre a boca numa tentativa frustrada em falar algo, pois eu dou as costas para ele e sigo em direção à sala de estar.

Os convidados partiram. A festa acabou e a minha vida também. Ando com dificuldade porque sinto o meu interior dolorido. Acho que é o meu útero que dói, mas, sinceramente, lembrar-me das aulas de Biologia neste momento não é a minha prioridade. Só quero subir ao meu quarto sem que meus tios me vejam. Ele corre atrás de mim, então apresso o passo. O corredor está escuro, mas consigo ver a luz que vem do quarto dos tios. Espero que estejam dormindo quando eu me for amanhã. Que diabos eu vou inventar pra tia quando eu sair daqui de mala e cuia? Isso não é justo. Não é justo! É a minha família também! A porcaria dos meus olhos estão embaçados novamente, meu ventre dói, a cabeça dói, o coração tá apertado. Tudo por causa dele. Daquele infeliz de quem eu cheguei a gostar. Por que ele tinha que fazer aquilo? Por que não parou quando eu disse não? - Deus do Céu! - Grito assustada e, antes que eu repita o grito, ele tapa minha boca com uma das mãos enquanto cochicha no meu ouvido na escuridão do corredor.

- Me perdoa. Eu juro que não vai mais acontecer. - É claro não vai. Não vai mesmo porque eu vou embora desta casa!

- Nunca mais vc me toca! - Falo baixo, enquanto piso em seu pé com o salto do meu sapato. Em pensar que foi minha tia que o comprou para um dia especial. - Me solta, seu monte de merda! Vc estragou a minha vida! - Eu me desvencilho de seus braços que tentam me envolver. - Eu odeio vc. Odeio ter gostado de vc! - Ele me empurra contra a parede e pressiona sua testa contra a minha. Ele está ofegando. Vejo seu tórax se movendo mais rápido do que o normal. - Se não me largar, eu grito. - Aviso ainda pressionada contra a parede. Ele relaxa e se afasta alguns centímetros, porém seus olhos não param de me observar. Estão mais escuros do que o normal ou eu é que estou com a visão turva? Sua expressão desesperada aumenta meu desejo de vingança. Ele apoia as mãos na parede atrás de mim e encosta a lateral da cabeça na minha. Ouço sua respiração acelerada. Seus lamentos, seus pedidos de desculpa e sua promessa de que não vai me tratar como uma qualquer porque eu sou especial. Dou graças a Deus por ele não estar olhando para o meu rosto, porque, apesar de estar completamente arrasada, eu estou sorrindo. Uma vergonha! Cretina que eu sou. - Me dá uma chance. - Ele pede e eu quase acredito que ele está sendo sincero. - Eu sei que errei.

- Aaah! Errou mesmo! Vc me estuprou, seu cretino!

- Eu não pude me controlar. - O quê??? Isso é resposta que se dê??? - Eu te desejo há muitos anos. - Sou obrigada a ouvir sua voz lamuriosa, rouca...quase sexy. - Eu te amo há muito tempo e não sabia como me aproximar. - Ele está visivelmente descontrolado, o que eu não entendo porque a estuprada fui eu. Eu que, por mais terrível que pareça, já o perdoei por esse ato hediondo. Eu que, atordoada entre a raiva e a piedade, meto-lhe um tapa no rosto perfeito. Ele para por segundos e me olha espantado. Eu preparo a minha mão para marcar o lado direito porque o esquerdo já tem a palma de minha mão estampada, iluminada pela fraca luz que atravessa a porta fechada do banheiro, bem ao nosso lado. Por que a porta do banheiro está fechada e a luz lá de dentro está acesa? - Eu mereço. - Ele admite, tocando com a ponta do polegar meu lábio inferior. Eu tenho ímpeto de decepar seu dedo com meus dentes, mas...eu me contenho. Seus olhos, suas covinhas...EU ODEIO ELE. EU ME ODEIO. - Me dá uma chance. Deixa eu me explicar. - Por que ele precisa ser tão bonito? Por que eu vejo o amigo de infância e não o homem cruel que há pouco me machucou? Eu não valho nada e só tenho quinze anos.

- Não! Não há explicação pra isso! - Eu o afasto com as mãos, porém, mantenho-me próxima a ele. - O que vc fez não tem perdão! Quero que morra. Que vá pro inferno! Que queime pela eternidade, seu merda! Vc acabou com a minha vida. Com a festa que os tios prepararam com tanto carinho!

- Deixa eu...

- Cala a tua boca! - Sussurro entredentes, avançando em sua direção. Encosto as palmas de minhas mãos em seu peito e dou um, dois, três empurrões. Ele se mantem firme, olhos fixos em mim. Daria tudo para saber o que essa cabeça doentia está pensando agora, porque seus olhos não me dizem nada! - Nunca mais me dirija a palavra, tá me ouvindo??? - Agarro a gola de sua camisa de grife com minha mão direita e repito com todo o ódio que carrego no peito. - Tá me ouvindo??? - Eu me odeio por não conseguir usar de minha faculdade justo agora. Adoraria saber da verdade. Ouvir a verdade. Sentir a verdade, mas eu só posso me basear em seu olhar arrependido. Isso me enoja. Isso me agrada. Acho que estou ficando louca. Louca e perdida...aos quinze. Ele abre a boca, mas sou mais rápida do que seu pensamento quando ordeno.

- ME DEIXA PASSAR! - Isso é patético porque poderia ter escapado pelas laterais há muito tempo. - Sai! - Eu saio pela esquerda. Ele alcança meu braço. Ele toca em meu braço. Eu o vejo aos dez. Eu sorrio quando o vejo aos doze, alegre, fanfarrão, companheiro, gabando-se por ter conquistado todos os continentes do "War". Idiota! Eu deixava vc vencer, seu imbecil. Eu desperto e o vejo diante de mim, segurando meus ombros, impedindo-me de andar. Eu poderia cuspir nele...mas, eu o escuto.

- Eu sei que não justifica, mas eu gosto muito de vc. Gosto desde que vc chegou aqui, nesta casa. Desde que éramos amigos. Eu não sabia o que dizer. Eu não sabia como agir. Eu...eu apenas gostava. E vc era ainda uma criança!

- Eu sou uma criança! - Protesto.

- Adolescente...- Corrige ele, erguendo o canto da boca. - Eu gosto... - Putz grila! Isso é hora de me dizer isso??? Eu te esperei por anos e vc precisa me estuprar pra falar que me...- Eu te amo.

- Vá pro inferno com seu amor. Enfia ele no ...- Engulo o palavrão porque o tio não gosta de menina com a boca suja, mas não deixo de extravasar minha raiva não! Ergo a perna e encaixo, com força, a ponta de meu joelho de bailarina entre as virilhas. Ele se curva com a rapidez de um relâmpago. Eu prendo meu riso. É tão bom vê-lo sofrer. Espero que aquilo caia de podre. Espero que nunca mais funcione. Espero que ele sofra o que sofri agora há pouco. Vê-lo curvado de dor, urrando, não me causa compaixão. Pelo contrário. Minha raiva cresce à medida que chuto suas costas com o bico de meus sapatos. Ele me pede desculpas. Ele me implora por uma chance. Eu o chuto mais umas duas vezes e, antes do terceiro chute, algo me faz parar...perplexa.

- Posso saber o que está acontecendo? - Ouço a voz serena conquanto vacilante da tia. Giro meu pescoço na direção do quarto. Eu não a vejo. Onde ela está? Fernando olha sobre meu ombro, os olhos inexpressivos. Ele está morrendo de dor e ainda consegue olhar para a mãe como quem olhar para uma parede. Ele é, de fato, um monstro. Suas feições se endurecem de súbito quando ouço a voz pausada e firme uma segunda vez. Puta que pariu! Ela está atrás de mim e acaba de pousar a mão em meu braço e, como se eu tivesse enfiado um arame de ferro no buraco da tomada, lá vem o choque elétrico novamente! Um choque que percorre meu corpo; as imagens que se formam com nitidez.

O rosto dela em frente ao espelho. A surpresa seguida pela palidez de seu rosto em frente ao espelho. Sua mão sobre o coração que bate em descompasso. A mão na maçaneta. O receio em abrir. A confusão mental ao processar o que acaba de ouvir. As mãos trêmulas na maçaneta. A porta se abrindo. Os olhos de Fernando fitando-a de forma desafiadora. Sua voz baixa, porém bem audível aos meus ouvidos perguntam o que ela não quer ouvir.

- Posso saber o que está acontecendo aqui? - Ela sempre soube. Ela tentou me avisar. Ela conhece o filho que tem. Ela tentou me afastar.

Antes que eu pudesse explicar. Antes que eu pudesse preparar seu coração, seu filho se ergue do chão, abrindo um largo sorriso. Aproxima-se dela, afaga seus cabelos lisos e sedosos e cochicha algo em seu ouvido. Quero ouvir o que ele disse. Quero contar a história com outras cores mais vivas. Não quero que ela sofra. Não quero que ela sinta o que está sentindo agora. Aquele porco!

- O que ele disse, tia??? - Ela balança a cabeça, revira os olhos e tomba no piso frio. Eu bato com força no interruptor. A luz do corredor se acende. Eu me ajoelho ao lado de seu corpo. Ela aspira pela boca com dificuldade. Inspirações curtas e ininterruptas. Ela não consegue completar uma respiração. A agonia estampada em seu rosto lívido. Sua boca sem cor, os olhos estão desmesuradamente abertos. Eu nunca a vi assim antes. Eu não sei o que fazer. Sua voz é fraca, então aproximo meu ouvido de sua boca. A boca que me beijava todas as noites antes de fechar a porta do meu quarto. Engulo em seco, sufocando um soluço. Uma lágrima irritante escorre do canto do meu olho quando eu a ouço pedir que eu não o deixe só. Que não o deixe se perder. Eu não compreendo. Eu não quero compreender. - Ninguém vai se perder nessa casa hoje, tia! Reaja! - Eu grito por seu nome. Eu peço que respire. Eu grito, ordeno que ela respire conquanto eu a veja cada vez mais desbotada, azulada. - Faz alguma coisa! - Ergo os olhos aterrorizados a Fernando que parece contemplar de braços cruzados, de longe, a cena. - FAZ ALGUMA COISA, SEU MONSTRO! - Eu o odeio mais do que tudo nesse momento, então, cerro os punhos e soco o peito de minha tia, na altura do coração. Eu vi isso num filme na TV. Costuma dar certo. Eu dou outro soco e mais outro. - Tia! O que ele falou??? - Com os indicadores, abro sua boca, inclinando sua cabeça para trás, apoiando-a em meu antebraço. Ele sempre cuidou de mim. Agora, eu vou cuidar dela. - Fica comigo...- Falo baixinho. Ela me olha com tanta tristeza! Não vai...pelo amor de Deus...não vai. PUTA MERDA! Encosto minha boca na dela, soprando, afoita, o ar para dentro do seu corpo. Quero soprar a minha alma para dentro dela. Quero que ela volte. Quero que ela volte. - TIA! - Sopro o ar ao mesmo tempo em que afundo as duas mãos, juntas, sobre seu osso esterno, bem no meio do peito. Aperto, aperto, aperto e solto. Sopro o ar. Repito a operação, sem saber se estou agindo da forma correta. Ao menos, estou agindo enquanto o filho me observa com um olhar sombrio. - Fernando! Ajuda! - Grito sem olhar para ele. Concentro-me em salvar a mulher que me criou como se eu fosse sua filha. Não tá funcionando. Eu me jogo contra seu corpo. Eu a sacudo. Grito com ela. Brigo com ela. Tomo-a em meus braços e a faço ninar. Choro por ela. Peço que volte. - Tia...não me deixa. Não faz isso...FICA!

Vejo meu tio, de pé, em frente à porta do quarto com o rosto transfigurado. Ele não consegue falar ou andar. Ele sofre. Ele sofre...ele chora e desmorona. Seu corpo encolhido junto à parede me comove, mas...eu não choro. Um último golpe em seu peito e então...

Desisto.

Minha tia partiu naquela noite. Na noite em que completei quinze anos.

A pior noite de minha vida.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 14/03/2020
Código do texto: T6887488
Classificação de conteúdo: seguro