XXI

Moacir conduz a patroa ao hospital, sendo obrigado a parar, durante o caminho, quando uma multidão invade a avenida.

_ De onde surgiram todas essas pessoas? – pergunta a mulher. _É uma passeata?

_ É us amigu du seu Zé dus Cobre, a muié i u filhu deli morrero nu desabamento dus morru... Elis devi tá vortano du cimitério. Coitado du Zé, é um homi tão bão, capaiz de passá fomi para ajudá o próximo.

_ E quantos anos tinha o filho deles?

_ Tava inda nu buchu da muié...

_ Como assim? Ela morreu grávida? É isso que entendi?

_ Sim, dona! A muié tava prenha, di barriga...

_ Que tragédia, Moacir! – compadece-se. _Ele é querido, não?

_ Eli é nossu líder lá no Bairru das Frores... Tá venu essa gentarada toda, dona Catharini? Assim como o Zé, perdero as casa, tão drumindo debaxo de lona e comenu restu dus otros enquanto o prefeito vê o que faiz. O Zé diz que tudo é curpa do prefeito, ele prometeu pra nóis reforçá us barrancu, mai num féis nada, dona! Uns acredita, outros não! Inquanto num si resorvi, ajudamu uns aos zoutros. Nóis é tudo probi, mais nós tem bão coração.

_ Você também perdeu sua casa? – inquire, indignada com o sofrimento daquele povo.

_ Virge Maria, ieu naum! Minha casinha fica bein no começu du bairro, longi dus morru, mai muita gente qui conheçu, sim! O dia qui a sinhora quisé i lá, eu levo, dá dó di vê... É tanta genti passanu fomi, sem ropa, sem tetu!.. Indá inté vontadi di chorá!

Enquanto ouve com atenção os relatos do jardineiro, ela observa cada uma das figuras que cruza a frente do carro; uma pontada lhe inquieta o coração, talvez seja o remorso, porque como herdeira de uma das famílias mais ricas da região, poderia ter ajudado a evitar tanta dor, bastaria custear as obras então exigidas pela comunidade ou provocar os órgãos competentes com o seu sobrenome divino. Mas, encarcerada em uma verdadeira redoma de vidro - assim nomeava a relação matrimonial, fora incapaz de enxergar a dor alheia; o que importava era o seu bem-estar. Era como se aquela gente fosse invisível, peça insignificante do quebra-cabeça humano, como gostava de afirmar George. E onde estava sua consciência social? Não tinha ou perecia em algum canto de sua alma vazia, assim como a de tantos outros abastados.

_Óia, dona, aqueli ali é o Zé - aponta... Óia! Óia! Óia, intá choranu feito criança.

Em farrapos, com os fios de cabelos embaraçados pela terra, o homem chora. É de causar mesmo pena!

_ E o que disse o prefeito sobre isso? – pergunta, acompanhando o ferreiro até sumir de vista. _Por que ele não acionou a Defesa Civil do Estado para auxiliá-los?

O jardineiro não responde, está com o choro preso à garganta.

_Moacir?! – ao vê-lo comovido, pede para prosseguir a viagem.

Alguns minutos depois...

A limusine se abre, Catharine passa pelos repórteres sem dizer uma só palavra e se dirige à recepção.

_Como está meu marido? – demonstra ansiedade.

_Senhora Dumont, tenho uma notícia para lhe dar... – responde a recepcionista, consultando o computador.

_E-ele morreu? - Catharine segura-se à bancada.

_Pelo contrário, está bem! Receberá alta no final da tarde.

_ Co-como assim? – a face empalidece. _Está bem? Ele... ele te-teve um infarto, está no C.T.I, foi essa a informação que recebi. Como receberá alta hoje? Há algum equívoco! Olhe de novo, por favor! Será que não checou a ficha do paciente errado?

_ Acalme-se! Verificarei novamente... – retorna ao computador. _O vereador George Dumont encontra-se bem; em sua ficha não há qualquer menção a infarto, apenas ao tiro que levara... Não teria entendido errado?

Arfando, Catharine ameaça cair, para desespero da jovem, que pede ajuda ao segurança.

_ Joaquim, venha, a senhora Dumont não está passando bem...

_ Joaquim??? –pergunta-se em meio à confusão. _Joaquim! Tantos nomes, mas logo esse... Que ironia do destino!

_ Senhora? Ei, respire! - o segurança a põe em um sofá.

_ Quer uma água, um suco, um café...? Acho que a senhora teve uma queda de pressão – constata a moça.

_ Estou melhor! – diz, levantando-se. _Deixem-me, já estou melhor! Preciso ver meu marido.

_Joaquim, acompanhe-a!

_ Não é necessário! – corre os olhos assombrados pelo rapaz. _ Já estou melhor! Com licença!

Já no elevador, contém as lágrimas. Ainda havia um fio de esperança de que a moça errara o paciente e de que Tanaka não pregara tal maldade. Mentir sobre uma doença tão grave e a troco de quê? Meu Deus! Sua cabeça estava confusa e isso a enfurecia; preferia imaginar que tudo não passava de um engano, seria menos cruel!

O elevador se abre, ela caminha lentamente até o leito. Suas mãos, gélidas como a dos mortos, gotejam em meio à trepidação. Os cabelos esvoaçam com o vento de uma janela no final do corredor. Está diante da porta, roda a maçaneta, antes de abri-la, suspira fundo e para. E se George estiver bem? Não! Não quer acreditar nisso, solta a maçaneta e se afasta; sua vontade é retornar à recepção, fazer nova consulta; por pior que seja, a dúvida é menos espinhosa que a realidade.

Confusa, estaca no meio do corredor, fecha os olhos e, em seus pensamentos, ouve Ernestina macular o vereador e aconselhá-la para que o deixe. Mas seu coração não acredita que o homem com quem se casara seja um monstro, pelo menos não como os que o cinema está acostumado a retratar em suas tramas mirabolantes.

Enche-se de coragem, volta à maçaneta, gira-a com discrição e abre a porta bem devagar; quando entra no quarto, o choque. Com um belo terno Armani cinza médio acompanhado de um cabelo penteado em estilo clássico, George concede entrevista a um repórter do “Tributo ao Povo”.

_ Creio que aquele motorista tenha sido motivado pela oposição... Que partido não me quer fora das eleições, principalmente depois que eu conseguira o tão sonhado Posto de Saúde às famílias principienses? Eles sabem que não me vencerão nas urnas, por isso, instigam figuras insignificantes como a de Joaquim para me tirar a vida.

_ Isso é uma acusação séria, vereador!- afirma o jornalista. _Doutor Alberto Médici, o líder local do partido de centro-direita, prestando-se a tal baixeza? Desculpe-me, mas isso me cheira à falácia...

_ ...Considera-me um mentiroso? – interrompe o edil, sentindo-se ofendido.

_Longe de mim fazer tal suposição, apenas considero o relato um pouco fantasioso. Que desejem a cadeira de prefeito, não há dúvida! Mas a custa do assassinato de um oponente? Sei lá! Lembra-me a trama de uma das novelas de Lauro César Muniz22.

_Alberto e sua trupe são capazes de qualquer coisa para abocanhar o poder dessa cidade, inclusive mandar me matar. Ele e seu partido sabem que é praticamente impossível me derrotarem, porque tenho carisma popular e o apoio do prefeito Tanaka Santuku, um homem sério, ético, compromissado com as causas sociais e com o progresso de Vila dos Princípios. Há oito anos no poder, sua administração é considerada uma das melhores do interior. E eu serei a continuidade desse extraordinário trabalho... – vira-se para Catharine, que está apoiada à parede, completamente extasiada e dissimula um carinho que não existe, pelo menos no momento, entre ambos. _Oi, amor! Que bom vê-la, não imagina como estou feliz!

O noticiarista lhe faz um aceno com a cabeça.

“_Não seria melhor confessar ao mundo que ama um chofer a sofrer nas mãos daquele marido psicopata?” – as palavras de Rubens se mesclam às de Ernestina. “... Alguém tem de pará-lo! Se não for a senhora, que seja a polícia. Ainda sonho com aquele traste saindo da mansão dentro de um camburão...”

_Algum problema, senhora Dumont? – investiga o jovem, percebendo-a assustada.

A vontade dela era abrir o coração, dizer tudo o que sabia daquele homem e do que ele era capaz em nome do poder. Uma simples palavra o arruinaria para sempre, o colocaria atrás das grades e o faria perder o tão almejado cargo político. Uma palavra apenas... Mas a coragem lhe foge, a boca resseca, os lábios tremem, a tez esquálida se contorce desorientada, e essa palavra não sai...

_ Senhora Dumont? Quer nos falar algo, talvez acrescentar algum detalhe à entrevista? – insiste o rapaz, além de curioso, inebriado pela beleza da mulher.

Se lhe contasse das surras que levara ou de como os criados eram tratados, certamente, as pretensões políticas de George seriam definitivamente enterradas. Bastaria uma simples palavra sua, para destruir aquele castelo de areia, revestido num homem sem caráter, amante do dinheiro e da luxúria. A boca se abre, quer falar, arremessar para longe todos os escombros de uma vida conjugal marcada pela dor e pelo desespero, quando é surpreendida por Tanaka, que às suas costas, despercebido pelos demais, sussurra palavras de ameaça.

_Ela não quer dizer nada, não é querida? – interrompe o vereador, incomodado com a perspicácia do jornalista. _Vamos continuar, tenho muito a dizer...

_ E aquela história de que o crime tem motivação passional? – dispara.

_ Passional? – debocha. _Olhe para mim, para minha esposa, acredita mesmo que um motoristazinho como aquele, alçado da boca do lixo, abalaria nosso casamento, nossa eterna volúpia? Temos um relacionamento de anos, sólido como a rocha, ancorado na cumplicidade e no respeito de um para com o outro. O que me espanta não são as artimanhas da oposição, isso já era de se esperar, mas a ingenuidade de vocês, jornalistas. Como podem comprar qualquer coisa? Onde está o compromisso com os leitores e eleitores? Não concorda, querida?

Ela se retira do quarto, esquivando-se da resposta.

_ Catharine é muito sensível... sabe... está sofrendo muito com tudo isso! - finge tranquilidade, o que atiça o faro investigativo do rapaz.

Apavorada, ela corre, e ao cruzar o corredor, escorrega, sendo arremessada à vidraça. Tanaka a levanta por um dos braços e a arrasta a um consultório vazio.

_ Como és fraca! Dá-me nojo só de pensar que George tem de conviver todos os dias com esse resto de mulher que você se tornou - humilha. _Se fosse minha, tomaria uma surra de quebrar as pernas.

Com o juízo a um passo do surto, ela cospe no rosto dele.

_ O que está fazendo, sua ordinária? Ave! Que novo! – limpa o rosto com a manga do paletó. _ Vá cuspir nos restos de sua filha, aquela praga que agora os vermes devoram. Vadia!

Levanta a mão para estapeá-la, mas no decorrer do movimento é contido pela mulher, que o segura pelo pulso.

_ Se eu fosse você, não faria isso, prefeito!

_Eita! – diz, surpreso com a coragem dela.

_Se me tocar, juro, não sairá vivo daqui – ameaça-o, com os olhos incendiados de cólera.

_ Se pensa que vai arruinar a carreira de George, está muito enganada!- solta-se das mãos dela. _ Antes, tirarei o seu fígado e o darei aos cães! – revida. _Estou de olho em você, um simples passo em falso – simula uma faca cortando o pescoço - não sobrará nada! Poft! Já era a herdeira dos Dumont!

_ Onde está o infarto de que me dissera?

_Do que está falando, criatura? – dissimula. _ Quem infartou?

_ Só queria saber o porquê dessa história... Será que tudo foi planejado para que eu posasse de “esposa feliz” ao lado de George à foto daquele jornaleco?

_Seja clara!- exige. _Não estou entendendo nada...

_ Deixe de lado o cinismo, Tanaka, você não está falando com um desses populares incultos; fala com uma Dumont, por sinal, educada num dos principais colégios da Capital. Você me ligou dizendo que George estava indo para o C.T.I... Como fui tola!

_ Eu??? Nunca!!! Como pode dizer uma coisa dessas? Eu não liguei para ninguém. Bem se vê, está à beira do caos psíquico.

_ Não? – saca-se do celular. _Veja, aqui está a ligação.

O aparelho não guarda número algum, para o delírio do homem, que contra-ataca.

_ Mostre-me! Onde está?- saboreia o momento. _Não disse, precisa ser enclausurada o mais breve possível, pois perece de alguma enfermidade mental. Credo! – encena um arrepio._ Será contagioso?

Catharine fica sem palavras, realmente, a ligação não constava na memória do celular. Teria apagado-a por engano? Não! Isso não, ela é tão cuidadosa!

_Ainda não se cansou de procurar?

_Não chegue perto de mim!

_Coitada! – escarnece. _ Está perdendo o juízo! – entorna a garrafa com gosto.__ Não suportou a dor de perder a filha para o câncer e o marido para a carreira política. Como sua vida é desgraçada, não é? Todos se compadecerão da sina de George, que sairá ainda mais fortalecido dessa história, pronto para ser o novo prefeito de Vila dos Princípios... Que alma não se penalizará com o drama de um homem acometido por tantas tragédias familiares? - seus olhos reluzem de alegria._ É! E a você só restará o manicômio!

_ Você é um monstro!– profere, em pranto. _O que lhe fiz para receber em troca tanto mal?

_ Eu não a estou ouvindo... O que está dizendo mesmo? Acho que estou estressado... – diz, arrumando o paletó. _ Ah, não se esqueça, eu não estive aqui, tudo não passa de fantasia de sua cabeça... – retira-se vagarosamente do consultório, fazendo sinal com o dedo para que permaneça em silêncio.

Desnorteada, senta em uma cadeira, toma fôlego e retorna ao corredor, quando não mais o encontra. Entra no elevador e tecla o nove ao invés do zero. As portas se fecham e se abrem, segundos depois, para o desespero dela, que se vê diante da pediatria oncológica, onde Alana permanecera até a morte.

Como se estivesse em transe, acessa o andar. Cai em si apenas quando os primeiros gritos lhe chegam como pedidos de socorro. Então corre os olhos pelos desenhos das paredes do lugar, estão intactos, como se a dor dos novos visitantes não fosse suficiente para retirar o sorriso da face do anjinho e da criança de poucos meses. Era estranho voltar àquela ala depois de tanto sofrimento...

O corpinho de Alana - cansado de uma luta desigual contra um inimigo mil vezes mais forte, em cuja essência há as marcas de uma crueldade voraz - estremece, entra em letargia, enquanto os batimentos cardíacos caem, desesperando as enfermeiras, que procuram o doutor Rubens Arraia. A sirene do equipamento que a monitora dispara, o ar não lhe chega mais aos pulmões e o coração para. Catharine é retirada à força do leito, os residentes precisam fazer as intervenções necessárias, na esperança de que o médico chegue a tempo.

A primeira carga do desfibrilador é descarregada sobre a garota, que salta alguns palmos. Não volta. Nova tentativa. Os batimentos reagem, mas cessam em seguida. Entrando no leito, Rubens retira o equipamento das mãos dos residentes e o aproxima de Alana. É a última tentativa, se falhar, o óbito será inevitável. Olha para Catharine, que berra do lado de fora, e se volta para a pequena.

_ Não nos deixe, querida! Reaja, reaja, a vida há de lhe dar outra chance... Eu confio em você! Vamos!

O pensamento em Deus, as mãos sobre os peitos da menina e o botão pronto para descarregar a última carga. Ouve-se o estrondo e, por milagre, o coração retoma os batimentos e se estabiliza. Alana estava salva! Visivelmente emocionado, ele a beija, dizendo:

_ Você não iria me deixar... Eu sabia!

Ao sair da sala, ele conforta Catharine.

_ Está tudo bem, dona? – pergunta uma funcionária da limpeza, encontrando-a em transe.

_ Não sei... – responde, resgatando-se das memórias amargas, numa voz quase inaudível.

_ Não teme represália da oposição diante dessas acusações, vereador? – pergunta o repórter a George, no quarto.

_ E alguém lhe perguntou alguma coisa, jornalistazinho? Pois escreva tudo o que ele disser, sem comer uma palavra; se faltar uma vírgula que seja, ligarei para o doutor Tobias, o proprietário do jornal, e pedirei sua cabeça. Hum! É cada coisa! – descarrega o prefeito, adentrando o quarto com a garrafa à boca. _Ande logo, termine com esse questionário. Amanhã quero manchete para as declarações de George; lembre-se, a maior fonte de recursos de seu jornal é a prefeitura e não quer vê-la secar, não é?

_ O senhor está me ameaçando? E desde quando a imprensa se rende a interesses escusos? Acho que o senhor se esqueceu de que o Brasil é um país livre e a imprensa um dos alicerces de sua democracia.

_ Ô, figura, o que você quis dizer com “interesses escusos”? – afronta-o o prefeito. _Pois sou um homem honesto, cumpridor de meu papel como cidadão. Era só o que me faltava! Um sujeitinho qualquer me chamar de... de...de safado, e na minha cara!

_ Eu não disse isso – intervém o repórter. _Eu apenas...

_Vá ser xarope lá na Cochinchina... Caia fora daqui! Como eu odeio jornalista! Hum! Ô raça dos infernos! Se eu pudesse, botaria todos num paredão, de fora a fora, e metralharia sem dó, até a última bala – suga a garrafa outra vez. _Como tô com a goela seca hoje, vou tomar mais um gole de saq... água – disfarça.

_ Não seria cachaça o correto? – desafia o rapaz.

_ Cachaça quem toma é a velha da sua mãe... Onde já se viu isso? Vou ligar já para o doutor Tobias! Não se respeitam mais autoridades nessa cidade, pois exijo retratação imediata!

_ Acalme-se, Tanaka! – George interfere ao perceber que a conversa de ambos terminaria em briga. _O rapaz só está fazendo o serviço dele.

_ E muito mal feito, por sinal! Qual é seu nome, meliante?

_ Meliante quer dizer malandro; portanto, esse adjetivo não me retrata, já ao senhor...

_ Fora daqui, antes que eu lhe desça a mão – é contido pelo vereador.

O rapaz se retira com a face tomada pelo deboche.

_ Você está louco? Brigar com a imprensa? Esqueceu-se de que ela é o quarto poder? Se ele escrever tudo o que disse...

_... não verá o sol do dia seguinte- completa. _Sai pra lá, tô com o diabo no corpo! Ave! Saravá, meu pai!

George não se aguenta e ri.

_ Tá rindo de quê?

_De nada! Esqueça! E aí, me conte, como foi com Catharine? Deu tudo certo?

_Como aguenta aquela mulherzinha? Ela se acha! HUM! “Sou uma DUMONT”! Grande porcaria! Não bastasse, ainda cuspiu no meu rosto, acredita? Nem minha mãe fez isso, porque o dia em que ela ousou me tocar, o inferno a recebeu. Ô, raiva!

_ Catharine fez isso? – estranha. _Como fez para convencê-la de que não havia ligado para seu celular? Fale!

_Foi como tirar doce de criança! – explode em risos. _A bicha ficou louca! Como pode ser tão burra?
_Mas... mas, me conte, como conseguiu convencê-la?

_ Simples! Assim que ela entrou nesse quarto, eu cheguei bem de mansinho, retirei o celular de sua bolsa e apaguei todas as ligações recebidas, depois o devolvi, aproximei-me e lhe fiz ameaças. Para quem assalta os cofres da prefeitura todos os dias sem deixar vestígios, isso é mel na chupeta! Precisava ver a cara da égua...

_O importante é fazê-la acreditar que está enlouquecendo, é a única maneira que temos para abocanhar sua herança. O testamento de Dilermando é claro!

_Ele não estava bom da cabeça quando o redigiu, né? Oh, homem doido!

_Se estava ou não, isso não nos interessa... O importante é o dinheiro! Só!

_E o que vamos fazer com aquela mulherzinha? Se fosse minha, amarraria num tronco e desceria o porrete.

_ Por enquanto, nada! Se eu não estiver enganado, a essa hora ela estará indo para casa, onde se deitará e dormirá a base de calmante. É covarde demais para enfrentar qualquer problema, e longe de Ernestina é ainda mais vulnerável! O importante é mantermos a calma agora, porque os nossos objetivos foram alcançados: ela não fora à delegacia e está perturbada com uma ligação que não existira. Logo o motoristazinho dará o último suspiro... Será o golpe de misericórdia!

A porta do elevador se abre, o jornalista depara-se Catharine recolhida a um canto, em lágrimas, e se comove.

_ Dona Catharine, o que houve? A senhora está bem?

_ Me tire daqui... por favor!

_ Claro! Só um minuto – aperta a tecla do estacionamento.

_ Por que está assim? É por causa de seu esposo? Ele está bem, a senhora mesma viu!

_ Estão cometendo uma injustiça!

_ Injustiça? Como assim? Seja mais objetiva!

O ar lhe falta e ela cai.

_ Senhora? Ei! Venha! Vou ajudá-la...

A porta se abre novamente.

_ Onde está seu carro? – pergunta, tomando-a no colo.

_ Dona Catharini?! Virge Maria! Um tratô passou por cima da sinhora? – pergunta o criado, alvoroçado. _Dexa moçu, eu ajudo ela. Venha! Venha! Venha Dona Catharini, a sinhora num tá bem, né?

_ Pegue o celular em minha bolsa, Moacir! Preciso fazer uma ligação.

Ele retira o aparelho e o entrega à patroa, que não consegue ligar para o doutor Jaime, pois está trêmula demais. Percebendo a dificuldade da herdeira dos Dumont, o repórter se dispõe a ajudá-la.

_ Doutor? Como está? É Catharine Dumont! Conseguiu o habeas corpus? Certo! – desliga. _Obrigado por sua gentileza, rapaz – volta-se para representante da imprensa, é um verdadeiro cavalheiro! Posso saber seu nome?

_ Claro! Pietro... Pietro Ferrara.

_ Italiano? Bom! – diz, recompondo-se. _Também preciso me apresentar?

_ E quem não a conhece? É uma lenda viva, um mito; cheguei a pensar, inclusive, que não existisse, que não passasse de mera fantasia da cabeça dos principienses – sorri. _Mas como é bom ter me enganado, porque é tão real como eu! Pelo menos eu acho...

Ela o observa com desvelo... está encantada com aqueles olhos de jabuticabas em plena estação, com aqueles fios de cabelo negros, finos, que lhe descem da cabeça em voltas, como as ondas do mar. Por um instante, esquece-se do mundo para apreciar uma beleza da natureza, sim, aquele rapaz era um perfeito exemplar de sua espécie. Que coisa! Tantos problemas para se preocupar e o que agora lhe segurava a atenção era o sorriso largo e reluzente daquele ser. Meu Deus! Estava ficando louca, como dissera Tanaka? Não! Absolutamente! E antes que a apreciação pudesse ser confundida com um flerte, ela se despede, deixando o repórter sem ação.

_ Que mulher é essa?!! Sua beleza é surreal!- exclama, completamente extasiado. _Pare de bobagens, Pietro! - diz a si mesmo. _Ela é casada! E bem casada!

Antes de partir, recorda-se das últimas palavras dela ao celular e se intriga.

_ Habeas corpus? Doutor Jaime? Sobre o que ela falava? Tem alguma coisa estranha nessa história! E se meu faro jornalístico não estiver errado, estou a um passo da notícia do ano.

_ Nóis vai para a mansão, dona Catharini? – indaga o jardineiro, durante o caminho.

_ A senhora deveria olhar para os lados, ouvir mais as pessoas, sair um pouco dessa casa, deixar os problemas de lado e viver a vida com a mesma intensidade da adolescência. Verá que há outros homens melhores, prontos para recebê-la nos braços... E quando isso ocorrer, perceberá que o que sente por George hoje não é amor, mas MEDO... – as palavras de Ernestina, assim como as
de Rubens, lhe são alçadas à razão o tempo todo, tendo como pano de fundo, o beijo de Joaquim.

_ Dona Catharine, nóis vai para a mansão? – insiste.

_ Não, para Vila Bonita! Precisamos salvar um inocente.

_ A sinhora tem certeza, dona? Seu maridu vai ficá brabo feito toro.
_ “Nada é tão cansativo quanto à indecisão, nem tão inútil”, como diria George Bernard Shaw23.

_ Seu Georgi disse isso? Num intindi nada du qui eli disse...

Apesar de toda a dor, Catharine ri da ingenuidade do criado. O carro segue para aquela cidade, com Pietro à espreita.

Rubens tenta reanimar Joaquim, que jogado à cama, embrulhado no cobertor, parece querer se entregar à morte.

_ Vamos, meu rapaz, tenha força, você é capaz... Volte à vida, volte!

Espiando-o por uma fresta, Paineiras comemora.

_ Não lhe disse, prefeito, de hoje não passaria. O medicozinho invoca até espírito para trazê-lo à vida. Como é tolo! O bicho já está com os dois pés no inferno.

_ Joaquim, não ceda às chantagens do destino, resista... resista! RESISTA! – implora o médico, que rasga a camisa do infeliz com um único puxão e o massageia com força. Gotas de suor lhe caem à face, é quando a razão cede ao desespero.

_ Quero vê-lo, doutor! O senhor não me pode negar esse pedido – implora Ernestina, descontrolada.

_ O horário de visita é das 13h às 14h, todos os domingos. Não insista! – comunica o delegado da comarca, contrariado com a situação. _Se eu lhe conceder esse direito, terei de ampliá-lo aos amigos e parentes dos outros detentos. O que São Paulo não fará comigo? Estou em estágio probatório! Sabe o que isso significa? Que se eu não cumprir à risca as ordens superiores, serei demitido.

_ VAMOS JOAQUIM, RESISTA! VOLTE! VOLTE! VOLLLTE!

_ E a grana, doutor Paineiras? – pergunta Zelão ao eufórico oficial. _Quero a bufunfa ainda hoje na minha mão.

_ Claro, meu camarada! Você até merece uma gorjeta extra.

Joaquim se retorce, na busca desenfreada pelo ar que lhe falta.

_ Vamos! Acredite! Vamos! – insiste o médico, agoniado. _VAMOS!

Seus pulmões se enchem... É o retorno à vida!

_ Graças a Deus! Mande-me uma UTI móvel imediatamente! – pede pelo celular à Central de Vagas da região. _Como é? Está quebrada? Mas... mas...como? E uma unidade comum? Estão todas ocupadas? Há vaga para um paciente meu? É o doutor Rubens... doutor Rubens Arraia, de Vila dos Princípios, que está falando! Preciso de uma ambulância, uma viatura, sei lá... Cristo! Isso não é real!

As palavras do médico atraem a atenção de Paineiras, quebrando-lhe a felicidade.

_DESGRAÇA! O bicho está vivo, Zelão! – desespera-se. _Seu incompetente! Como isso pôde ter acontecido? Você me garantiu que ele havia batido as botas.

O policial não encontra palavras para se justificar.

_Delegado... - chama o médico aos berros. _DE-LE-GAAAAAA-DO!

_ O que foi? O que foi? – acode, assustado. _O que aconteceu? Ele está vivo? – os olhos dele se arregalam ao encontrar o chofer. _Ma-ma-mas co-como?

_ Preciso que me dê permissão para levá-lo ao hospital mais próximo – interrompe-o. _Se não receber os cuidados necessários, morrerá!

_ Isso eu não posso fazer, quem me garante que cumprirá com a palavra?

_ O Joaquim está vivo? Graças a Deus!– vibra a criada, quebrando todas as restrições ao adentrar a enfermaria.

_ Tem noção da gravidade do que está fazendo? Nega o direito à vida a um homem só porque está sob custódia do Estado? Isso também é crime, doutor! Quer ser considerado também um assassino?

_ Não me entenda mal, sabe como é, estou em estágio probatório... Se a Secretaria da Segurança souber que o autorizei a levá-lo ao hospital, poderei ser demitido.

_ Tá...tá... – corre os dedos pelos cabelos encharcados de suor -, então o leve com uma de suas viaturas. Ele não aguentará por muito tempo!

_ Ajude-o, senhor delegado – suplica Ernestina, ele é um homem bom!

_ Como chegou aqui? Quem a deixou entrar? – inquire o delegado, cientificando-se da irregularidade. _Já não lhe disse que as visitas só são permitidas aos dom...

_ O senhor vai deixá-lo morrer? – intervém o médico, percebendo que a conversa mudava de foco.

_ Eu não disse isso!

_ Então...?

_ Não posso levá-lo, das cinco viaturas que tenho, três estão em revisão e as outras duas a quilômetros daqui, numa diligência. Ele só poderá ser retirado daqui em uma ambulância ou em um de nossos veículos. É a lei, meu caro, e não há nada que eu possa fazer.

_ É isso mesmo! – confirma Paineiras, achegando-se. _Apenas uma autoridade da Saúde poderá recolhê-lo.

_ Recolhê-lo? Como assim? E por acaso ele é algum lixo para ser recolhido?

_Não está contente com o termo? Vá reclamar com os linguistas! – rebate Paineiras.

_Tome aí, meu filho! Encha o pote! – comemora o prefeito, dando uma dose da bebida ao vereador. _Hoje deu tudo certo! Com a morte do criado, Catharine se sentirá culpada, afinal, não é por ela que ele estava lá? Será devorada aos poucos pelo remorso! Serão crises e mais crises de depressão, até que, esgotados todos os recursos, será encaminhada àquele manicômio de Vila Bonita que visitamos. Está tudo esquematizado! E caberá a você o papel principal, porque a fará se sentir um lixo, um monstro, uma ASSASSINA! E quando isso acontecer, abriremos os cofres de sua fortuna aos gritos de alegria.

_ Tem certeza de que o infeliz partiu mesmo dessa para melhor? – George permanece descrente, como se algo o poupasse da decepção.

_ Claro! Paineiras acabou de confirmar pelo celular. _Xeque-mate!

_Não sei...

_ Quem diria que o delegadozinho conseguiria? Para alguma coisa ele serve, além de se “engraçar” com as menininhas.

_ Esse crime eu não levo para o túmulo... - diz o edil.

_ Muito menos eu; já ele... - debocha.

_Diz uma coisa, Tanaka, como conseguiu aquele DVD que incrimina o delegado?

_Meu filho, no mercado negro da corrupção e do crime alheio, tudo é possível – gargalha, virando de novo a garrafa. _ Bastou oferecer uns trocos a um chegado meu para que me enviasse toda a capivara daquele “Zé Migué”. Hum! O bicho é muito burro. Ele visitava sites da dark web24 com o código do IP à vista, nem para cometer o crime usando o anonimato. Foi só seguir o rastro para logo pegá-lo na botija. E, olhe, além de assistir a vídeos com cenas pavorosas de pedofilia, ele ainda terminou por postar o próprio crime. Estava lá! Tudo lá! Ele não teve qualquer pudor diante daquela pequena.

_ E quem ela é?

_Meus contatos fizeram o serviço completo, ela é uma miserável da região, sem pai nem mãe, que mora de favor na casa de uma avó muito “amiga” – esfrega os dedos – do dinheiro.

_ E quantos anos ela tem?

_Doze.

_Inacreditável! Jamais imaginei que o Paineiras, aquele delegado tão sério, seria capaz de tal atrocidade.

_Isso é problema dele, porque o que importa mesmo é que agora ele está em nossas mãos; aliás, em minhas mãos – ri, enquanto lhe dá um copo. _À vitória, meu amigo! – deseja Tanaka, antes dos copos anunciarem o brinde macabro.

_ Ninguém o levará daqui, a não ser que a Justiça permita! – sentencia o delegado.

_ Pois ela já permitiu, delegado – diz o doutor Jaime, adentrando a enfermaria, para o espanto de todos.

_ Isso aqui está virando a casa da mãe Joana, todo mundo entra e sai a hora que
quer – conclui Paineiras, visivelmente irritado. _O que faz aqui, doutor Jaime? Não me venha dizer que o senhor é o defensor desse margi... cidadão?

_Acertou, doutor! – ironiza. _E aqui está o habeas corpus, concedido pela 1ª Vara Criminal de Vila dos Princípios, ao senhor Joaquim Ferreira, o meu CLIENTE! Portanto, até que esse documento seja cassado - e, isso, garanto, não acontecerá, ele está livre para fazer o que quiser. É a lei, senhores!

_Então posso levá-lo? – os olhos do médico brilham de felicidade.

_ Sim! – limita-se o advogado.

_ Espere aí, explique-me uma coisa, doutor Jaime – pede Paineiras, de onde esse pobretão tirou dinheiro para contratá-lo? Que eu saiba, ele não tem onde cair morto! Deve ter cometido outro crime! Fique esperto, Roberto – volta-se para a outra autoridade, esse documento deve ser falso ou...

_ ...Como dizem, a fama faz a pessoa, não é, delegado? – provoca o defensor.

_ O que quer dizer com isso?

_ Nada, delegado! Nada!

_ O senhor está querendo nos levar na conversa. Pois fale, como ele o contratara? Fale!

_ Deixe que eu o responda, Jaime! – diz Catharine Dumont, iluminando o local com sua graça.

_DO-DONA CATHA-THA-THA-RINE DUMONT??? – Paineiras se engasga com a saliva.
_____
22 Lauro César Muniz é um escritor brasileiro, famoso autor de telenovelas, roteiros cinematográficos e peças teatrais.

23 George Bernard Shaw foi um escritor, jornalista e dramaturgo irlandês, autor de comédias satíricas que o tornaram espírito irreverente e inconformista.

24 Uma pequena parte da Internet, considerada infame por ser utilizada por visitantes do mercado negro online, onde se é possível comprar desde drogas, documentos ilegais, serviços de assassinato a pornografia infantil.

XXII

O anfiteatro da sede do partido de centro-direita está repleto de filiados, há representantes de todos os setores da sociedade local e a curiosidade sobre o tema da reunião extraordinária é perceptível. Em pé, com um microfone sem fio às mãos, Alberto se prepara para abrir o evento.

_ Obrigado por atenderem ao meu chamado, garanto, a vinda dos senhores aqui era mesmo necessária! Sei que daqui a alguns dias acontecerá a Convenção oficial do Partido e que a escolha do nosso candidato à prefeitura de Vila dos Princípios coincidiria com as pretensões de Giacomo Benatti, ilustríssimo dirigente da Associação dos produtores de soja da região, que não se faz presente, devido a uma viagem dele e de sua família à Itália; no entanto, acredito que essa não seja a opção mais apropriada para a ocasião.

_ Como assim? – indigna-se alguém na plateia. _Acredita que Giacomo não derrotará o vereador George Dumont nas urnas? Balela! Ele é um dos nossos melhores quadros, como pode dizer tal infâmia?

_ Não tenho dúvida de que ele seja mesmo um ícone da história do partido, talvez até mesmo um divisor de águas; mas lhe falta algo para convencer o povo a elegê-lo.

_ E o que seria? DINHEIRO? Pois não falta mais! Injetarei o quanto for preciso para que ele derrube Tanaka e sua trupe ordinária – anuncia uma cinquentona, em um belíssimo vestido cinza com decote em V, enquanto retira da bolsa um talão de cheques. _Fale, quanto é?

_ Senhores, senhores, vamos acalmar os ânimos! A ira não nos levará a lugar algum, a não ser à derrota!– pede Ricardo. _O que o doutor Alberto está querendo dizer é que o senhor Giacomo, apesar de grande empresário, não tem o mesmo carisma que o vereador George Dumont, muito menos o legado de seu sobrenome. Esqueceram-se de que nossa cidade nasceu de uma atitude isolada, para não dizer desacreditada, de Dilermando Dumont?

_ Exatamente! – concorda Alberto. _Há quantos anos tentamos abocanhar o poder de Vila dos Princípios? Respondam-me! Para lhes reavivar a memória, foram mais de cinco campanhas nos últimos vinte e cinco anos, todas terminadas em naufrágios e gozações por parte de nossos oponentes. A verdade é que o Partido Redentor de Vila do Princípios, aqui representado por todos nós, jamais atingiu seus objetivos, porque, apesar dos bons nomes e de propostas inovadoras às áreas consideradas essenciais como Saúde e Educação, faltou-lhe carisma e o apoio da plebe. Isso significa que nunca conseguimos conversar com o povo de igual para igual, porque somos de uma elite conservadora.

_ E o que quer? Que destituamos o senhor Giacomo do posto de candidato oficial do partido à prefeitura? Está louco? – inquire, com veemência, um idoso, elevando a bengala à altura dos olhos. _Confesse doutor!

_Posto este ainda não ratificado pela Convenção – declara Ricardo, ou seja, oficialmente não temos candidato ainda.

_ Exatamente! – confirma o doutor. _ Por isso proponho que o senhor Giacomo decline de suas intenções ao cargo de prefeito, de imediato, por mais louváveis que elas sejam!

Gritos de descontentamento implodem o lugar.

_ Como o senhor, doutor Alberto, pode nos representar se é contra o próprio partido que o mantém há décadas? Isso é um crime! – revolta-se a mulher, com o talão de cheques a lhe abanar a face.

_ Não é nada disso, senhores! – interfere outra vez Ricardo. _Nosso partido mergulhará no ostracismo se não alcançar os objetivos na próxima eleição.

_ E por isso devemos perder nossa identidade, caro assessor? – interroga o idoso.

_ Não, senhor Lúcio; pelo contrário, devemos reforçar as bases partidárias para que nossa identidade seja preservada.

_ Então não estou entendendo mais nada! Explique-se! – exige a mulher.

_ Conhecemos a coragem profissional do senhor Giacomo e sua fascinante capacidade de antever as tendências, entretanto, no momento, ele não é o candidato ideal às eleições de outubro.

_ Está se contradizendo, doutor Alberto! – reforça o veterano. _Se ele tem toda essa habilidade de que diz, o carisma é o de menos, afinal, tudo se compra nessa vida, basta abrir os bolsos.

_ Com todo respeito, doutor Lúcio, mas o senhor está equivocado. O povo já não é mais aquela massa morta, sem face, incapaz de escrever a própria história. O povo de hoje é crítico, conhece seus direitos e deveres, e sabe entoá-los com veemência, quando se faz necessário, ou os senhores não souberam do que aconteceu hoje de manhã, em frente à prefeitura, com o prefeito Tanaka Santuku?

O silêncio indica o desconhecimento do fato anunciado.

_ Pois discordo! O povo só existe para votar!– profere a mulher, cheia de sarcasmo, antes que o doutor esclarecesse o episódio envolvendo a autoridade local. _Veja o meu motorista, quem seria capaz de levá-lo a sério se sua pele é negra e o seu suor fétido como a carniça? Só idealistas como o senhor e olhe lá!

Todos riem.

_ E desde quando a senhora é a versão feminina do prefeito Tanaka Santuku? – contra-ataca.

A mulher, envergonhada, se cala.

__Suas palavras são de um horror sem procedência, para não dizer criminosas! E do modo como falou, daqui a pouco, sem qualquer conexão com a realidade, proporá a volta do tronco e do chicote à praça pública – inconforma-se o homem. _É por isso que nosso partido estará sempre à sombra de seu oponente, porque pessoas como a senhora disseminam o preconceito social e de raça... Falas como essas encorajam o povo a eleger bandidos como Tanaka Santuku, não percebe? Infelizmente, estamos condenados ao fracasso! Dou a reunião por encerrada... – entrega o microfone a Ricardo.

_ Ei, espere, doutor Alberto. Não pode ter nos trazido aqui para desmerecer-nos apenas... O que quer nos dizer? Tem alguma proposta melhor a fazer? Ele é nosso líder! – o homem volta-se para os demais- e devemos respeitá-lo, ainda que não concordemos com suas ideias. Alguém é contra ouvi-lo?

Ninguém se pronuncia.

Alberto olha para Ricardo, recupera o fôlego, limpa a face suarenta com um lenço de pano e expõe o motivo da reunião.

_ Hoje fiquei encantado com a perspicácia de um dos moradores do Bairro das Flores. Que vernáculo, que atitudes, que coragem... Sem medo de incorrer ao erro, suas qualidades lembram-me um estadista, daqueles que não se vê mais por aí.

_ Viu o que dá se misturar com pobre? – debocha o idoso, apoiando-se à bengala. _Fica desse jeito... ABILOLADO!

_ Silêncio, doutor Lúcio! – pede um participante.

_ Seu nome é Zé dos Cobres e sua origem é a pobreza; em frente à prefeitura, liderando uma massa de sofredores, ele voou para cima de Tanaka e o trucidou com as palavras; parecia até uma fera descontrolada... Só parecia, porque no fundo sabia o que estava fazendo. O inconformismo o transformou no defensor nato daquela gente!

_ E daí...? Continue! – pleiteia a mulher, menos arrogante, envolvendo-se com a história.

_ Ele perdera a mulher e o único filho que ela gerava no desmoronamento de uma encosta; sua família, sua casa e seus únicos pertences foram engolidos pela terra, assim como o seu ferro velho, de onde se originara o apelido “dos Cobres”. Tinha tudo para dar um tiro na cabeça ou se enterrar na depressão; mas preferiu seguir outro caminho, o de defender as famílias principienses também afetadas pela tragédia.

_ Ele é o líder da plebe! – completa Ricardo. _E é amado como tal. Precisam ver quantas pessoas compareceram ao enterro de sua esposa. Foram milhares!

_ Onde os senhores querem chegar com tudo isso? – indaga a cinquentona. _Que o escolhamos para nos representar só porque se comunica bem com a ralé?

_ Isso mesmo!- confirma o doutor. _ Quem seria capaz de vencer o vereador George Dumont se não alguém que o povo admira e eleva à condição de um semideus?

_ Ele acha que aqui é a pequena Tangará de O Salvador da Pátria25, e o tal Zé, o Sassá Mutema, do Lima Duarte!– provoca Lúcio. _Voto pela sua expulsão do partido!

_"Os velhos se comprazem em dar bons conselhos quando já não podem dar maus exemplos" – rebate o líder.

_ O que você quer dizer com isso, seu...seu...? – exige o idoso, desconcertado.

_ Pergunte a Rochefoucauld26, o autor da frase – ironiza.

_ Pois eu concordo com o doutor Alberto – diz um dos maiores fabricantes de guloseimas à base de soja da região._ Acho que nossa imagem elitista já não tem mais espaço no cenário atual; talvez um homem do povo consiga o que almejamos há anos. Não custa tentar! O que acontecerá se perdermos outra vez? Como sempre, cobriremos as dívidas do partido e recomeçaremos do zero. Quem está comigo, que levante a mão!

A maioria o faz, para a felicidade de Alberto e Ricardo, e o desespero do velho ranzinza.

_ Isso é uma facada nas costas do senhor Giacomo. Deveríamos esperá-lo antes de tomar qualquer decisão! – resmunga Lúcio.

_ Não temos esse tempo, doutor! Deveremos enviar o nome do escolhido ao TSE na próxima semana e, que eu saiba, Giacomo retornará ao país apenas no mês que vem.

_ E quem nos garante que esse boçal vencerá? Não estamos atirando no escuro? – observa a mulher.

_ Sim! Dona Desirê! Sim! A única garantia que lhes dou é que se o Zé topar...

_ Então ele ainda não foi consultado? – interrompe Lúcio. _Como quer que aprovemos essa sandice?

_Fique quieto! – ordena a mulher, agora com outra postura. _Devemos dar uma chance ao doutor Alberto, no fundo, ele tem razão.

_ Obrigado pelo apoio!

_ Pois eu não faço isso por você, Alberto, mas pelo partido, que se desintegrará no caso de uma outra derrota. Mas escute bem, isso não quer dizer que suas responsabilidades morram aqui; pelo contrário, crescerão muito! Afinal, o senhor terá de doutrinar esse tal Zé dos Cobres, assim como o PT fez com o Lula...

_ ...ou o Lula fez com o PT! – corrige o ancião.

_ QUE SEJA! – ralha, guardando o talão de cheques na bolsa de couro.

_ Venceremos essas eleições, tenho certeza! – afirma Alberto, para o espanto de Ricardo, que não compreende de onde vem tanto otimismo. _ Nem o brasão nem a honra da família Dumont serão páreos para o carisma do Zé. Acredito nisso!

_ Tens o cheque em branco nas mãos! Faça o que tem de fazer... Convença o vermezinho da carreira política! – determina Lúcio, dando uma trégua, ao perceber o isolamento.

_ Eita! Quem será que chegou? – pergunta Tanaka, da janela do quarto de George, ao avistar os repórteres se comprimindo para tirar uma foto. _Deve ser gente grã-fina!

_ É óbvio! Que pobre teria dois mil para bancar a diária de um leito como esse? – desdenha George. _A não ser que fosse parente do Fernandinho Beira-Mar.

_ Sei lá, por um momento achei que fosse o... o...

_...o Joaquim? Que tolice! De onde aquele infeliz extrairia tal quantia? Está confundindo o xilindró com o cofre de um banco? Só você mesmo para me fazer rir. Aliás, ele está morto ou não está?

_ Está..! – confidencia consigo mesmo, tomando outro gole.

_ Como consegue beber o dia todo? Credo! Ainda morrerá de cirrose!

_ E quem está bebendo, meu filho? Tô só molhando a goela.

_ Que “goelão”! – ri.

_ Pois saiba, quem tem goelão aqui é...

O rangido da porta se abrindo interrompe a conversa.

_ Doutor Paineiras? O que faz aqui? – cobra o prefeito, com os olhos arregalados. _ Aconteceu alguma coisa?

O delegado fecha a porta, junta as mãos como se fizesse uma reza e dispara:

_A coisa fedeu!

_ Desembucha, Paineiras! O que houve? Por que está aqui? Só me falta dizer que... que... não é possível! Foi o motoristazinho que chegou ao hospital, não foi?

_ Não pode ser!– surpreende-se George, pulando da cama. _ E desde quando alma penada volta do inferno?

_ É que... - titubeia a autoridade.

_ Fale de uma vez, antes que eu o faça engolir essa garrafa – ameaça o prefeito.

_ O doutor Rubens o trouxe à vida... Não sei como, mas ele conseguiu.

_ O senhor é mesmo um incompetente! Sabe o que eu deveria fazer agora? Mandar aquele DVD para o Secretário da Segurança! Hum! Ô bicho burro, só serve mesmo para “admirar” menininhas e olhe lá...

_ Explique-se! – cobra George.

_ Não tem o que explicar, o motorista voltou à vida e agora recebe os cuidados necessários. Não tenho culpa – defende-se, Zelão me garantiu que ele havia partido dessa para uma pior.

_ Cale a boca, INFELIZ DOS INFERNOS, antes que eu lhe quebre os dentes.

_ Pois venha, prefeito! – o delegado compra a briga. _Estou cheio de suas ameaças. Venha!

_ E ainda tem a audácia de me desafiar! – ironiza. _ Basta um estalar de dedos para que padeça para sempre atrás das grades. É mesmo digno de dó!

_Quem é digno de dó? - interpela Paineiras, à beira do descontrole.

_ O senhor! – completa Tanaka, apontando-lhe uma arma retirada da cintura. _E quem mais seria?

O delegado se retrai.

_ Acalme-se, Tanaka! Acalme-se! - pede o vereador, assustado, tentando controlar a situação. _Quer estragar tudo?

_ Tô doido por sangue – rilha. _Venha, cabra! Vou lhe estourar os miolos com gosto.

_ Quem estragou tudo foi sua esposa, vereador – revela o delegado, tentando se safar.

_ CATHARINE? - atordoa-se. _ Como assim? O que ela fez?

_ Você tá é querendo fugir da raia, seu covarde – diz o prefeito. _Sabe quanto me custou lavar as mãos dos diretores daqueles hospitais? E da Central de Vagas então? Foram milhares de reais desviados dos cofres da prefeitura, aliás, das obras de contenção das encostas e do novo posto de saúde, e tudo para quê? Para acabar dessa forma! Com o infeliz vivo! Pois isso não vai ficar assim, irei para a cadeia, mas levarei seu bucho junto... – os olhos dele cintilam de ira.

_Abaixe essa arma, Tanaka! – repreende o vereador. _ Não está vendo que ele tem muito a nos contar?

_ Hum! Tá certo! – diz, recolhendo a arma ao cinturão.

_ Fale! O que de fato aconteceu?

_ Eu não disse que deveríamos apagar primeiro aquele doutorzinho? Ele é o grande vilão dessa história, fez às vezes de bom samaritano e o salvou da morte. Deve ter algum pacto com o diabo, só pode, porque eu mesmo vi quando o tal havia batido as botas.

_ E onde entra Catharine nessa história?

_ Pois foi ela quem ordenou ao doutor Jaime que conseguisse o habeas corpus.

_ Habeas corpus? – desacredita. _Catharine fez isso?

_ Sim! E agora o bicho desfruta novamente da liberdade, porque para o doutor Jaime não há portas fechadas; ele entra, faz o fuzuê todo e consegue tudo o que quer. Quando o vi na delegacia, quase infartei! E ainda não acabei...

_ Pois diga tudo!– ordena George, esmurrando as palmas da mão.

_ Ele foi trazido para esse hospital, com todas as despesas também custeadas por sua ela, acredita?

_ DESGRAÇA!!!!!!!! – vocifera. _ AQUELA INFELIZ ME PAGA! Onde ela está agora? Aqui no hospital?

_ Que eu saiba, ela foi para a mansão – responde Paineiras.

_ Imagine quando a imprensa souber... Hum! Será um escândalo! Até imagino a manchete: “Mulher de vereador baleado custeia despesas do suposto homicida”. Isso vai parar no Fantástico! – premunicia o prefeito.

_ E quem revogou o encarceramento? Você não disse que havia conversado com todos os juízes, Tanaka?

_ Não só conversei como lavei a mão de todos eles! E não foi pouco! Mas aquela cambada é pior que chupim, esfola sem dó, e nunca está contente.

_ É, mas não foi o suficiente para que o mantivessem atrás das grades.

_ Pois quero saber quem foi o safado que o libertou...

_ E para quê, Tanaka? O que isso mudará?

_Vou denunciá-lo ao Tribunal Regional...

_ E dirá o quê? Que ele não cumpriu com sua parte no acordo obscuro? – desdenha. _Acho que o saquê está lhe afetando os miolos.

_ Olhe o respeito! De meu saquê ninguém fala, pois o último que dele falou...

_ Já sei, você deu cabo dele, assim como dera de Joaquim, não é? Conversa de pinguço! E quanto à Catharine, a cada dia ela me surpreende mais, nem se parece com aquela mulher frágil com quem me casei.

_ Se seguisse à risca meus conselhos, aquela égua estaria agora em uma cadeira de rodas, mofando num quartinho qualquer, mas...

George está atordoado, dirige-se à janela, quando já não mais encontra os repórteres.

_ Para que leito ele foi? – indaga o prefeito, dando outra golada na garrafa. _Hum! Ainda bem que tenho esse “santo remédio” por perto, só ele para me acalmar.

_ Para o C.T.I.

_ Pois vá para lá e estoure os miolos dele; não tenha dó, meu filho, quero sentir daqui o cheiro do sangue.

_ O senhor não pode me pedir isso, prefeito. É muito arriscado! E se me pegarem? Irei para a cadeia.

_ Irá de qualquer jeito! – escarnece. _Seja pelo assassinato do motoristazinho, seja por manter “altos papos” com garotinhas de oito, dez ou doze anos... Aliás, por qual crime quer ser condenado? Se eu fosse o senhor, escolheria a primeira opção! Como homicida já será a mulherzinha daqueles marginais; imagine se o for taxado de pedófilo então? Não sobreviverá a uma semana.

_ O senhor não pode falar assim comigo, eu fiz tudo o que me pediu, inclusive arriscar minha carreira – apavora-se.

_ E que carreira!!! – aplaude o prefeito. _Até um bandido é mais limpo que o senhor.

_ Calem a boca! Vocês me causam asco! – diz o vereador. _Pois vá ao C.T.I. e dê um fim bem dado àquele infeliz; faça-o com discrição e receberá o DVD como prêmio.

_ E que garantia eu tenho de que cumprirá com a palavra?

_ A mesma que teve até o momento: a de que o DVD não pararia nas mãos do Governador se cumprisse com sua parte no trato.

_ Vô-você entregará mesmo a única arma que temos contra esse delegadozinho? – surpreende-se Tanaka.

_ Dê-me esse saquê aqui! – George toma dele a garrafa e a entorna. _Está mesmo bom! Pois vá, delegado, chegue de armações, vamos ser práticos, arrebente a arcada dentária daquele peste...

_ Disso eu concordo! – afirma o prefeito, recuperando a garrafa. _Quero sentir o sabor do sangue daquele motoristazinho correr minha boca. Ave! Devo ser parente do Conde Drácula! – ri.

Paineiras se retira do quarto e segue pela escadaria até o leito de Joaquim.

_ Prepare a munição... – pede o vereador. _Depois que Paineiras liquidar Joaquim, simularemos um suicídio.

_ Suicídio de quem? Do Paineiras?

_ E de quem mais seria? Achou mesmo que entregaria o tal DVD? Nem morto! E esse delegadozinho merece mesmo o buraco, quem sabe no inferno ele seja mais útil.

Os dentes de Tanaka espelham os olhares maquiavélicos do vereador.

_ Tem razão. Vivo ele seria um perigo para nós, pois poderia, a qualquer momento, ter um chilique e resolver nos chantagear. Mesmo que não entregássemos o DVD, ele teria muito a contar para a polícia. E se resolvêssemos mesmo entregá-lo, com certeza iríamos juntos! Ia faltar lugar no camburão! Hum! E quanto à Catharine, o que fará? Ela não merecia o mesmo castigo? – atiça.

_ Não, prefeito, ou se esquecera de que se ela morrer, a herança dos Dumont será doada às instituições de caridades da cidade?

_ Às vezes tenho vontade de desistir dessa grana e dar uma sova bem dada nessa mulher. Quer saber, para mim, bastaria vê-la atirada a um buraco, fedendo como a carniça, consumida pelos vermes, que eu já estaria satisfeito. Seria o deleite! Hum! Mulher dos infernos! Só sabe atrapalhar nossos planos.

_ Prepare-se para a grande reviravolta... - retira o terno do encosto da cadeira. Prometo, dessa vez não terá do que reclamar!

_ O que irá fazer, George?

Ele abre a porta e sai, deixando Tanaka intrigado.

Moacir adentra a mansão e para o carro diante do hall de entrada. Quando abre a porta da limusine, tem a sensação de que Catharine não está bem, pois a cor de sua pele assemelha-se a da cera que modula as pétalas de uma flor, daquelas que se vende na feira, sem qualquer trato.

_ A sinhora Intá bein? – arrisca.

Ela lhe vira as costas e entra na casa.

_ Dona Catharini, a sinhora intá percisando de arguma coisa? – insiste, ao vê-la apoiando-se aos móveis. _Intá sentinu argo? Tá branca feitu um fantasma.

_ Não é nada, Moacir! Preciso apenas me deitar um pouco, creio que toda essa confusão tenha me causado uma indisposição.

Sobe alguns degraus da escadaria, segura o corrimão, arfa com dificuldades, fecha os olhos e cai.

_Virge Maria, a muié desmaiô! I agora?

Pegando-a no colo, sente um calor adentrar-lhe o corpo.

_ Intá cum frebi, seus zóio intão até virando di ponta cabeça. Meu Deus do céu, o qui façu agora?

Outro prato desaba da prateleira, seu estouro parece ser ouvido por Ernestina, que perde os sentidos em meio à sala de espera, ao lado do C.T.I., onde está o pobre Joaquim.

_ Ernestina! Ernestina! – Rubens a socorre ao vê-la cair. _Ajudem-me, enfermeiras, ela desfaleceu.

_ERNESTINA... ERNESTINA... Ó, minha boa amiga ERNESTINA... - como se recebesse um aviso, entra em uma espécie de transe e ouve Franceline chamá-la.

_ Se... senhora? Se...senhora? Onde está?

Uma espessa camada de névoa as impede de se verem.

_ Salve Catharine! Salve Catharine! Por favor, boa mulher! Salve minha filha!

_ O que está dizendo, senhora? Não a compreendo! Fale!

__ Salve Catharine! Salve Catharine! Eu lhe imploro! – repete, em meio a gemidos de aflição. – Ela precisa de você!

Uma ventania surge do nada, fazendo com que parte a névoa ceda; momento em que a emprega vê a esposa de George muito adoecida sobre a cama, com o corpo queimando em febre, os lábios arroxeados, a face seca marcada por cicatrizes profundas... Um cadáver em vida! Assustada, cobre o rosto com as mãos e grita.

_ Ernestina, sou eu, doutor Rubens! Acalme-se! –resgata-a da hipnose. _Acalme-se!

_ Doutor Rubens? Onde estou?

_ Sua pressão caiu e você sofreu um desmaio.

_ Preciso ir, preciso!

_ Não! Ficará em observação por algumas horas, ainda não se encontra totalmente recuperada.

Ao se levantar, cai novamente.

_ Não disse, ainda não está bem!

_ O senhor precisa salvar Catharine... Por favor, eu lhe imploro! – as mãos trepidantes o agarram, parecem antever uma tragédia.

_ O que está dizendo? – assusta-se.

_ Não sei como lhe explicar, mas dona Catharine corre risco, eu sei... parece loucura, mas...mas eu sinto, algo de mal irá lhe acontecer, se não intervirmos imediatamente. Por favor, salve-a, o senhor precisa, ela é sua filha! SUA FILHA!

Rubens engole a saliva a seco, fixa bem os olhos dela e cobra num misto de indignação e surpresa:

_ Co-co-como você sabe disso? O... o...envelope estava la-lacrado!

_ Tudo aquilo que se abre, pode ser lacrado novamente, basta a delicadeza de uma pomba.

_ Cristo! Você-você-você sabe de tudo? Não podia ter feito isso! A história é minha, apenas minha, e não sua! – os olhos marejam. _Como pôde, Ernestina?

_ Falaremos disso em breve, agora deve partir, ela está na mansão. Vá, homem, antes que seja tarde demais!

À espreita, recolhido a um canto do corredor, está Paineiras, perplexo com a revelação.

_ Então Dona Catharine é filha do tal médico? Se isso for verdade, ela não é uma Dumont. E se não for uma Dumont, seu poder inexiste, assim como o de George, pelos menos politicamente dizendo – constata completamente perplexo. _Acho que encontrei a chave que me abrirá as portas da mansão do inferno, onde me encontro aprisionado desde que o conteúdo daquele DVD veio à tona – um sorriso vingativo engole seu rosto.

Mesmo desorientado com a revelação da empregada, Rubens vai à procura da única descendente. Tal é o desespero que passa por Paineiras sem reconhecê-lo, atravessa dois ou três corredores, até encontrar um elevador.

Moacir carrega Catharine nos braços até o sofá. Apavorado, anda de um lado para o outro, mas nada lhe vem à cabeça para resolver o problema. Aos poucos, sem que ele notasse, a mulher voltava à consciência.

_ Meu Jisus, o qui devu fazê? Ai, i si ela morri aqui, ieu vô pra cadea iguar ao probi du Joaquim... Vô ligá pra Ernestina – pega o telefone, quando se atenta para o fato de que não possui o número do celular dela. _Achu qui vô inté o hospitar, arguém há di mi ajudá!

Pega a chave da limusine, abre a porta e dá de cara com o vereador, que o investiga:

_ O que quer? Por que derruba esses olhos atordoados sobre mim? Aconteceu alguma coisa?

_A...a...a...a...do-do-dona Ca-Ca-Catharini...

Impaciente, empurra-o para o lado e entra na casa; ao avistar a esposa que agora vomitava sangue sobre o sofá, não contém o espanto:

_CATHARINE??? MAS...MAS...O QUE ESTÁ ACONTECENDO???

Sem rumo, o sangue corre o chão, causando, enfim, algum sentimento àquele coração petrificado.
__________
25 Novelas exibida pela Rede Globo em 1989, de autoria de Lauro César Muniz. Contava a A trajetória de Sassá Mutema, um boia-fria que chegou ao poder e mobilizou o Brasil no ano das primeiras eleições diretas depois da ditadura, misturando ficção e realidade.

26 La Rochefoucauld foi um pensador francês do século XVII que escreveu em forma de aforismos, seu ponto de vista e analítico da moral que perpassa as relações humanas, sendo um primeiro esboço de psicologia que viria no século seguinte a ser feita dentro dos moldes empíricos.


**Continue lendo - capítulos 23 e 24:
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