XXV

O homem de meia idade, barriga de fora, com muitos pelos ao peito e poucos fios de cabelo, está sentado em uma cadeira sem encosto, apoiado ao balcão do pequeno boteco, de onde se avistam garrafa e copo. Ao seu lado, um garoto pré-adolescente, descalço, também sem camisa, empina a pipa, que de tão alto, parece beijar o céu, tendo como espectadores, as centenas de vítimas do Bairro das Flores.

O garoto está feliz e isso comove a visita, que se aproxima, sem grande alarde.

_ Senhor?!

_ Qui é? – pergunta o homem, aparentemente acanhado com os trajes chiques do camarada.

_ Qui que se qué? Num devu nada pra ninguém, pru quê intá mi enchenu?

_ Acalme-se, quero apenas uma informação. Pode me ajudar?

_ Qui informação? Fali logui, desimbuchi!

_ Onde posso encontrar seu Zé dos Cobres? Preciso muito falar com ele!

_ I quem é u sinhô? Pur acarso é argum aproveitadô, um desses repórti qui apareci aqui e firma nóis?

_ Não! Sou apenas um amigo!Se puder me ajudar, agradeceria!

_ Quar seu nomi?

_ Não reconhece mais as visitas, Tonhão? Esse é o digníssimo doutor Alberto Médici, líder da oposição principiense – interrompe o idoso de cabelos ralos e bigode quase chegando à orelha, saindo dos fundos do bar. _Que honra recebê-lo em meu estabelecimento! – aperta a mão do político. _Não ligue para o Tonhão, ele é apenas mais um bêbado daqui.

_ Bê-bêbadu? Ieu? Naum sinhô, sô muito machu!

_ E o que a macheza tem a ver com a bebida? Só mesmo você para me tirar um sorriso, homem.

_ Qual sua graça, senhor? – pergunta Alberto.

_ João, mas para os íntimos, apenas Bigode!

O líder do PRVP ri.

_ O senhor está atrás do Zé? Pois ele está lá embaixo, diante de seu barraco, como sempre, chorando a morte da família. Coitado desse homem! Tão bom! Não merecia o destino que a ele Deus reservou!

_ Nada acontece por acaso, seu Bigode; minha vinda aqui é uma prova disso! Se me der licença!

_ Toda, doutor! Fique à vontade!

Alberto desce o morro, deixando o velhote encasquetado.

_ Qui essi sujeitu qué aqui?

_ Também queria saber, Tonhão! – coça o bigode com a delicadeza de uma dama.

Alberto atravessa o bairro, em meio à lama. Está comovido com o estado daquele lugar, com as famílias carregando para os caminhões o pouco que tem. A enchente de outrora alagara muitos barracos, o morro não poupou nem os mais velhos, porque à sua frente, os bombeiros resgatam o corpo de um idosa, há dias desaparecida. O odor entorpece a razão, faz qualquer ser, por menor que seja sua fé, acreditar em alguma coisa; e os que se entregam ao desespero, surtam, cometem barbáries e terminam atrás das grades. A revolta está estampada à face daquele povo, está no sangue, não por acaso, os que o reconhecem como político, agridem-no com palavras de baixo calão.

Apesar disso, Alberto não se intimida - como fariam muitos abutres de palanque, apenas abaixa a cabeça. Anda, ainda, por longos minutos, e cada vez mais embrenhado naquele lodaçal de dor, não percebe as forças lhe fugirem; quando estas o ameaçam deixar de vez, senta-se sobre aos escombros de uma casa de palafita e respira bem fundo.

_ O que faz aqui? – cobra Zé dos Cobres, às suas costas. _ Quem é o senhor e por que está à minha procura?

_ Meu nome é Alberto – levanta, se ajeitando, para cumprimentá-lo. _Alberto Médici.

_ O que o senhor quer comigo? – pergunta, ressabiado, diante daquela figura alinhada. _Fiquei sabendo que percorreu todo o Bairro das Flores à minha procura. Em que posso lhe ser útil, senhor?

_ Podemos conversar em um outro lugar, de preferência, a sós, seu Zé dos Cobres?

_ E sobre o que seria nossa conversa? Não o conheço!

_ Acalme-se, Zé, sou da paz. Como já disse, meu nome é Alberto e aqui represento o PRVP, Partido Reden...

_ Eu sei o que representam essas iniciais, senhor Alberto. É mais um partidinho político querendo se aproveitar da dor alheia, não é?

_ Não, Zé, estamos aqui para tentar resolver os problemas dessas pessoas, que não são poucas, para isso, precisaremos muito de sua ajuda.

_De minha ajuda? Como assim? – surpreende-se. _ Seja mais claro!

_ Venha comigo e entenderá! Venha! Não tenha medo, só quero o seu bem e o de seu povo! – tranqüiliza-o o político.

_Não temos nada o que conversar – resiste.

_ Temos, sim! Veja o estrago que a chuva fez a essa gente, as casas estão no chão, muitos morreram, inclusive seus familiares. Veio alguém aqui lhes oferecer ajuda? O prefeito cumpriu com a palavra? Deu-lhes mais do que as promessas alçadas ao vento? Não! Ele não está nem aí para vocês...

_...Disso eu sei! – completa. _Pena que muitos não acreditam em mim. Sabe de uma coisa, seu... seu... seu coisa, o mundo seria melhor se não existisse política – a revolta explode por meio das palavras. _Seria muito melhor!

_ Não, Zé, o mundo seria melhor se políticos feito Tanaka e George não existissem; eles são o ranço de uma época controlada pela ditadura, marcada pelo sangue dos inocentes, daqueles que se encorajavam a procurar a imprensa para denunciar todo tipo de mazela, recebendo como prêmio, uma bala na cabeça. Mas, o mundo mudou, hoje somos livres, pelo menos imaginamos, e podemos dizer tudo o que antigamente nos proibiam.

_Sim, e daí? Falar faz diferença? Estamos cansados de falar, de berrar, e ninguém nos ouvir. Quer saber de uma coisa? “A política só serve para dividir o povo. É uma bobagem, pois faz o povo confiar em um homem, que não pode fazer nada por nós. Se você não tiver sua vida, você não tem nada...”.

_ Zé, você repetiu a frase de Bob Marley?31 – impressiona-se com a destreza intelectual do vendedor de ferro velho.

_ E por que a surpresa? Será que só porque moro aqui, junto a esse povão, devo ser considerado inculto, incapaz de ler, escrever ou mesmo imaginar? Pois saiba, leio muito, até demais, porque é por meio da leitura que me desprendo desse planeta e vou... – o choro lhe vem à boca.

_ Vai aonde, Zé? Fale! – insiste, encantado com sua viveza.

Olhando para os cantos, o coitado encontra sua gente de joelhos, pedindo o amparo de Deus, e se comove, ao ponto de preferir o silêncio dos sentimentos à dor das palavras.

_ Fale, homem, sou todo ouvidos.

_...para um mundo melhor que esse, onde não haja fome, sede, cheiro de morte! – completa._ Entende, doutor?

_ Isso é impossível, infelizmente!

_Impossível? – a descrença do político o instiga. _ Por que acha isso?

_ Enquanto houver dinheiro em jogo, poder para ser disputado, o homem jamais olhará para a condição de seus irmãos! Talvez seja o único ser incapaz de abrir os braços e receber um companheiro sem exigir interesses em troca.

_Pois então, o que faz aqui? Não é um desses seres, senhor?

Alberto arregala os olhos e emudece, está completamente extasiado com as palavras do pobre, que de pobre mesmo, só tem a condição social.

_ O bicho comeu sua língua, doutor? – desafia.

_ Certa vez, Alfred de Musset, um poeta francês do século XIX, escreveu: "A política é uma delicada teia de aranha em que lutam inúmeras moscas mutiladas." Essa é a minha resposta, Zé! Sei que é capaz de ler as entrelinhas de minha mensagem!

_ E seremos outras moscas a lutar por um pedaço de carne podre? As varejeiras?

_ Não, seremos as moscas que, mesmo sem parte do corpo, vencerão a aranha, no grande combate pela sobrevivência.

_ E o senhor acredita mesmo nisso?

_Se eu não acreditar, quem acreditará?

_O senhor é boa gente! – sorri, fascinado pela essência do nobre político, em cujas palavras há um toque de sutileza e bom senso. _O que o senhor quer, afinal? Estou pronto para ouvi-lo.

_ Venha comigo e saberá! – Alberto lhe estende as mãos. _Venha! Assim poderei lhe mostrar que a política, como produto da transformação social, ainda é possível. Eu acredito nisso, e você, não?

_ Ernestina??? O que faz nessa maca??? – pergunta o vereador George Dumont, ao passar pela recepção do hospital e encontrá-la na sala de observação, na companhia de Moacir. _Fale, criada, o que faz aqui? Cadê Catharine? Fale! – volta-se para o motorista. _O que ela faz aqui, caipira? – aponta para a empregada,

_ Ela intá mal, dotô! A moça da rispição disse qui ela inté dismaiô. Mais num sei pruquê, tudo acunteceu inquanto ieu guardava u carru.

_ Desmaiou? Como assim? Para ela estar em cima de uma cama é porque o acontecido com Catharine é mesmo grave.

_ A bicha tá zoró, olha, tá até virando os “zóio” – Tanaka gargalha, após lhe checar a pupila. _Não tá vendo, deram pra ela um sossega leão.

_ Cale-se, Tanaka! A coisa é séria. Onde está Catharine, caipira?

_Ieu num sei naum dotô, achu qui ela...

_ Essa mistura de jegue com mula não sabe de nada! – reclama o prefeito. _Não seria melhor perguntar à recepcionista?

George se retira. Na recepção, recebe a informação de que a esposa está na unidade intensiva, com a visitação proibida.

_Não poderei vê-la agora? – seus olhos crescem à medida que os da mulher se escondem. _ Que audácia! Com quem pensa estar falando, criatura? Sou o vereador George Du...

_...Tá, tá, tá, todo mundo sabe o seu nome – entrecorta-o o prefeito, amedrontado com a repercussão de um possível escândalo-, portanto, guarde-o para você! – volta-se para a funcionária. _Filha, vem cá – puxa-a para um canto discreto do balcão, não ligue pra ele, sabe como é, está preocupado com a raparig... com a esposa, por isso, todo esse drama. Sabe, sei das regras do hospital e de que uma pessoa em leito intensivo está quase à beira da morte; entretanto, o que poderia ser feito para amenizar a dor de meu “chegado”? – roça o dedão no indicador. _Está precisando de alguma coisa? Talvez umas cinqüenta pratas? Melhor, cem? A vida está difícil, né? E se lhe desse esse agradinho, quebraria o galho pra gente? Vai ser rapidinho. Posso contar com seu vot... quer dizer, apoio?

_ Sabe como é, prefeito, a situação tá crítica lá em casa, e “cem pila” não resolveriam meus problemas, quem sabe duzentas.

_ DUZENTAS PRATAS??? EITA! – impressiona-se com a malandragem da recepcionista e solta um berro, atraindo para si, a atenção dos presentes. _OPS, DESCULPEM, FOI MAL!!! Duzentas pratas? Me deu até sede. Ave! – entorna a garrafa, deliciando-se com as últimas gotas do saquê. _Tá certo, pois tome, sua lambis... querida!

A mulher recebe duas notas de cem e, enrolando-as apressadamente, mete-as no bojo do sutiã.

_ Podemos subir? – pergunta o vereador, inconformado com a situação.

_ Vocês terão exatos vinte minutos para visitarem a paciente.

_ MAIS ISSO É UM ROU... quer dizer, só isso? – Tanaka se exalta. _Por quê?

_ Dentro de vinte minutos, o enfermeiro padrão daquele pavilhão retornará do jantar, e se os encontrar lá, chamará os seguranças.

_ Isso aqui tá pior que lobby de político. O assalto é a mão desarmada! Aff!

_ O que disse, prefeito? – pergunta a mulher, fingindo-se de tola.

_Nada! Nada! Como é bom conhecer pessoas que sabem negociar, não é? – dá um sorriso amarelo.

_Agora vão, vão, o tempo está correndo- alerta.

Ambos caminham em direção ao elevador; ao virar a cabeça para trás, Tanaka percebe o sinal que a recepcionista faz para que o segurança os libere.

_ Em que mundo estamos, né, George? O povo só pensa em lucrar, fazer caixinha com a exploração alheia. Ave! Duzentinha por vinte minutos? Hum! Cem por dez! Isso é ser desonesto demais! Graças a Deus, desse mal eu não morro!

_Cristo, o que faz aqui? – exige Rubens, dentro do C.T.I., bastante atormentado com a presença do jornalista. _Tem noção do risco que trouxe a essas pessoas? Elas estão frágeis, qualquer vírus, por mais inofensivo que seja, poderá levá-las à morte.

_Mas... mas não é do-do-dona Catharine Dumont!!! – profere, abismado, identificando o corpo. _ É o motorista!

_O que faz aqui? – pega-o pela gola da camisa, com os olhos grandes e vermelhos.

_É do jornal, não é? Como um urubu, quer ser o primeiro a se servir da carne fresca! Pois não deixarei! Fora daqui! Fora! César – grita por um dos residentes -, acione a segurança.

_Não, não é preciso, eu já estou indo! – diz Pietro, soltando-se. _ Joaquim está morto, é isso mesmo?

_Fora! Fora daqui! Vá! – ordena o médico, visivelmente emocionado.

_E onde está dona Catharine? Por favor, me diga! Não vá me dizer que... que...ela também morreu? Não estou aqui como jornalista, apenas como um amigo.

As palavras do rapaz inquietam o médico, que se cala.

_ A-MI-GO? –estranha ele, perguntando a si mesmo. _ SERÁ?

_ ELA MORREU? RESPONDA-ME!- exige o rapaz.

_ Amigo de dona Catharine Dumont? O senhor?

_ Não dê ouvidos a ele, doutor, deve estar blefando! Meu irmão também é jornalista e já me ensinou a arte de se enganar as pessoas com pérolas desse tipo – afirma o residente, achegando-se -, porque, o que realmente importa à imprensa é o furo de reportagem.

_Não...não...juro! – Pietro tenta se justificar._ Eu...eu...

_Por favor, saia! – reitera o médico.

A comoção do jovem redator com a possível perda da descendente de Franceline ganha a atenção de Rubens, que o acompanha à distância, até ele deixar o C.T.I.

_ Como quer que eu registre o óbito? – questiona outra residente, estranhando o fato dele não retirar os olhos do jornalista. _Doutor, está me ouvindo?

_ Sim, sim, Stela! Parada cardiorrespiratória, ocorrida às – olha para o relógio -18h12 do dia 18 de janeiro. _Amigo de Catharine? – confidencia-se. _Que estranho, nunca soube que ela tivesse amigo que não fosse da alta sociedade. Muito estranho!

_ Posso levar o obituário à secretaria, doutor?

Ele faz um sim com a cabeça.

_ Você não resistiu, não é? – volta-se para o motorista. _Todas as injustiças que sofrera ainda virão à tona, e quando isso ocorrer, estarei lá, diante de seus algozes, pronto para exigir Justiça. Minha voz ecoará dentro da multidão, assim como o trovão! Tenha certeza – seus olhos se compadecem, seu nome não será esquecido; entrará para a História como o de um mártir.

_ Por que ele não respondeu? Isso quer dizer que ela ainda esteja viva, só pode ser!– intriga-se Pietro, desnorteado, tentando ligar os fatos. _Ela deve estar viva! Isso! Ela está viva! Claro! Mas onde?
Sem rumo, caminha para o elevador, que se abre, trazendo Tanaka e George.

_ O que está fazendo aqui, rapaz? Quem lhe autorizou a subir? – pergunta o vereador, visivelmente alterado.

_ Xi! Esse sujeitinho de novo? Ninguém merece! Aff! – resmunga o prefeito._ Acho melhor reclamar com os mantenedores, o lugar anda muito mal frequentado.

Com os lábios trêmulos, o noticiarista não encontra palavras para se justificar.

__________
31 Robert Nesta Marley, mais conhecido como Bob Marley, foi um cantor, guitarrista e compositor jamaicano, o mais conhecido músico de reggae de todos os tempos, famoso por popularizar o gênero. Grande parte do seu trabalho lidava com os problemas dos pobres e oprimidos.
Alberto arregala os olhos e emudece, está completamente extasiado com as palavras do pobre, que de pobre mesmo, só tem a condição social.

XXVI

Doutor Paineiras Ken vistoria os reparos realizados pela Secretaria de Estado da Segurança Pública na delegacia de Vila dos Princípios. Todos os vidros, estilhaçados após o embate entre os manifestantes pró-vereador George Dumont e a polícia do município foram repostos, as grades das celas reforçadas, o gabinete do delegado reformado e pintado com cores neutras. Até a mesa foi trocada, assim como o computador e a impressora. Na verdade, aquilo não era um simples verniz para enganar a população, mas uma gigantesca reforma, o que em tese, impressionava pela rapidez. Há quem dissesse que o superfaturamento estaria por todos os cantos; se o Tribunal de Contas do Estado resolvesse puxar o fio do novelo, muitos poderiam parar atrás das grades! Será? E desde quando corrupção dá cadeia nas terras de Cabral? No mínimo alguns dias, para que a farsa seja encenada e a plebe mantida no cabresto.

O delegado estava eufórico, parecia criança em dia de aniversário, pronto para abrir os presentes e estrear os brinquedos.

_ Isso está muito bom, Tadeu! – diz ao mestre de obras. _Muito bom! E meu gabinete então? É a sala que pedi a Deus, aliás, que eu sempre mereci, porque vou lhe dizer uma coisa, a que eu tinha antes do tumulto era de dar nojo. Aff! Para alguma coisa serviu aquele motoristazinho, o tal de Joaquim... - um sorriso malicioso contrasta com os olhares de encanto.

_ E o motorista, doutor, que fim deu? – pergunta.

O celular do oficial interrompe a conversa.

_Quero minha grana já, doutor! – cobra Zelão o delegado. _Não brinque com minha paciência, ela tem limite e o senhor bem sabe o que acontece quando perco a cabeça.

_ Um minuto... um minuto! Deixe-me atender o celular, Tadeu! É coisa braba, quer dizer, é o Secretário da Segurança... Sabe como é, não sabe? Gente importante como eu não tem paz nem para admirar uma obra de arte como a sua.

_ Secretário da Segurança? Eita, bem dizem, este delegado é mesmo forte com o povo da política – confidencia-se o pedreiro.

_ Pois está me ameaçando, seu infeliz? – sussurra o delegado, afastando-se._ Como quer receber algo se o serviço não foi realizado como deveria? Incompetente! Era só despachar aquele motoristazinho para os quintos dos infernos, mas nem isso conseguiu fazer. Tive de limpar toda a sujeira que ficou. E agora tem a cara de pau de vir me ameaçar? Pois eu deveria é lhe dar um tiro na testa, sua besta!

_ Cuidado, delegado! Quem mata um é capaz de matar outros tantos sem qualquer remorso. Olha que faço engolir cada uma dessas palavras a pé-de-cabra.

_ Pois venha, se for homem! Calhorda. VEEENHA!!! – a saliva se acumula nos cantos da boca.

Zelão debocha.

_ Tá achando graça de tudo isso, tá?

_Meia-noite, doutor! Se a grana não estiver em minhas mãos até meia-noite, o senhor acordará com formigas na boca, a sete palmos abaixo da terra. MEIA-NOITE! Nem um minuto a mais!

_ Eu não vou lhe dar um centavo, nosso acordo não saiu do papel – resiste o delegado.

_MEIA-NOITE! –repete, com a voz transitando entre o sarcasmo e a ira. _MEIA- NOITE!

Desliga a ligação.

_ Caramba! E agora, o que vou fazer? Onde vou arranjar esse dinheiro? Esse Zelão é louco e do jeito que está, é mesmo capaz de dar cabo de minha vida. Hum! É duro dever para pobre! Que gente! E tudo por culpa daquele prefeito beberrão. Mas isso não vai ficar assim, ah, não vai não, principalmente agora que eu sei que a tal esposa do vereador George não é uma Dumont. Vou acabar com toda aquela gentalha, um a um, e ainda vou sair por cima da carne seca, levando uns trocos. Ah se vou! – diz, esmurrando as palmas da mão.

_ Responda-me: quem o autorizou a subir? – inquire George, ao espantado jornalista Pietro Ferrara, no hospital.

_ Não sabia que o senhor havia comprado o hospital. Que eu saiba, aqui é uma instituição de saúde aberta à população.

_ À população? – debocha o prefeito. _Desde quando pobre tem dinheiro para bancar estadia em hospital de luxo? Veja, veja, isso aqui está mais com cara de SPA que de hospital. Quer enganar a quem, seu... seu...? Ô bicho atrevido!

_ Respeite-me, prefeito! Não sou de sua laia, portanto, guarde esse tratamento para seus comparsas.

_ Mas eu vou quebrar a cara desse sujeitinho... Me segure, George, tô fervendo de ódio. Ai, Jesus! Preciso de um gole – vem-lhe à lembrança que a garrafa está vazia, o que o desespera. _Meu saquê! Meu saquê acabou... É o início da terceira guerra mundial! Socorro!

_ Deixe de fricotes, Tanaka! – repreende o vereador, que dá um passo em direção a Pietro, após analisá-lo com veemência. _O que está fazendo aqui?

_Nada...- desconversa. _Apenas uma reportagem sobre as novas acomodações do hospital, cujos serviços de hotelaria oferecidos, podem comparar-se ao dos grandes da capital, como o Albert Einstein e o Fleury.

_ O senhor é muito esperto, pelo menos se acha. Por acaso tem noção de com quem está mexendo?

_ Com o nobre e honrado vereador George Dumont, homem que preza pelo povo, que ama estender a mão aos mais humildes e que, após muita insistência junto ao Governador, conseguiu um novo Posto de Saúde à cidade ou...não seria isso?

A vontade do edil era a dar uma sova no rapaz, mas desiste da pretensão, pois o jovem editor é muito bom com as palavras, de um sarcasmo penetrante, que invade a razão e a paralisa como o veneno de cobra.
_Você não vai ver logo aquela pest...digo, sua esposa? – indaga Tanaka, com um pouco de dor de cabeça.

_ Sua esposa? AQUI??? – Pietro faz-se de surpreso. _Não sabia!

_ Não mesmo? – dá outro passo em sua direção. _Que jornalista é você que não tem acesso às informações mais elementares de nossa sociedade?– seus olhos crescem à medida que os dele se acanham. _Fale, o que faz aqui?

_ Eu?!! Eu vim...

George, não mais se aguentando, o agarra pela gola da camisa e exige:

_ Responda-me, “vermezinho de redação”, com quem pensa estar lidando? Com um desses otários acostumados com lábia farta de adjetivos? Saiba cretino, na “escola da vida” em que você estuda, sou professor há anos.

_ Doutor, solte-me, está me machucando – pede Pietro, imprensado agora contra a parede.

_ O que faz aqui? – FAAALE!!!!

_ Esse é dos meus – comemora Tanaka, espalmando as costas do esposo de Catharine. _Acabe com esse sujeitinho, não tenha dó, meta-lhe um soco bem dado nas fuças.

_ FAAAALE!!!

O noticiarista resiste em silêncio.

_ Ele veio buscar este documento, vereador! – acode Stela, a residente da equipe do doutor Rubens Arraia, com o obituário de Joaquim em mãos, ao perceber que daquele desaguisado explodiria uma bomba capaz de aniquilar a um dos combatentes. _Algum problema nisso? – vira-se para Pietro e diz: _Já não disse para me esperar na recepção? São regras da casa, querido! Poxa! Posso até ser demitida se o pegarem aqui.

_Querido? - estranha o prefeito, pressionando a cabeça para ver se a dor passava._ Não venha me dizer que esse safado é seu...

__... Isso mesmo! – interrompe-o com firmeza. _Somos noivos, como adivinhou, prefeito?

_ Sem alianças? – dispara George, correndo os olhos pelas mãos de ambos.

_ Nossa! Estou surpresa! Alianças? Que coisa mais antiquada, vereador! Em que século vivem? – devolve o disparo recebido à dupla. _Ninguém mais precisa estampar uma argola de ouro no dedo para demonstrar um compromisso, como faziam nossos avôs, não é mesmo?

Ressabiado, George solta o rapaz e coça o cavanhaque enquanto analisa com cautela cada palavra pronunciada pela jovem; já Pietro, apesar da farsa arquitetada pela garota, tenta manter o nervosismo sobre controle, o que parece não ser completamente possível.

_ Certamente, querida! – joga o braço sobre ombro dela. _Tudo esclarecido, podemos partir, senhores?

_ Vo-vo-cê é mesmo noiva desse...desse baitola? – desacredita Tanaka. _Ele tem um jeitinho esquisito, todo “ui-ui”... Já percebeu como ele anda? Parece um daqueles bambis da Parada Gay da Capital.

_ Homofobia é crime, prefeito – adverte o noticiarista.

_ Homofóbico... EU? Imagine! A maioria dos meus primos é fruti...quer dizer, de bem com a vida, ops, da galera...quer dizer...bem... você entendeu!

_Então cuidado com as aparências, prefeito! Nem tudo que aparenta ser, é! Isso também se aplica ao senhor...

_ O que quer dizer com isso sua... sua...

_ Pode me chamar de Stela, ou se preferir , também poderá me chamar de mulher íntegra, honesta, incapaz de afanar os cofres públicos em benefício próprio.

_Que petulância é essa? – brada. _ Aí que dor de cabeça...

_Quer um analgésico? – oferece a residente, procurando-o em seus bolsos.

_Prefiro um saq... ops, um comprimido basta. Melhor, agora não, comprimido faz mal para a saúde e eu sou um homem que só faz uso de produtos naturais.

_ De preferência, fermentados! - Pietro não se contém e cai na risada.

_Por que está rindo, seu filhote de cruz-credo, eguinha pocotó de quinta categoria?

_Desculpe! Não tenho aqui! Me enganei – diz Stela._ Agora vamos, preciso lhe entregar o documento.

_ Estou ansioso para entregá-lo – o jornalista comente uma gafe, já dentro do elevador, com as portas cerrando.

_ Que mulherzinha infeliz! Deve ser mesmo noiva daquele... Hum! Viu como me tratou? Sua educação é tão rasteira como a dele. Ah se eu pudesse, sacaria de uma arma e os mandaria visitar o diabo com passagem só de ida.

_ Eles estão mentindo – sentencia George, sisudo.

_ E como sabe disso?

_ Ela não disse que ele havia estado aqui para buscar um documento? Pois então, a última frase dele, com as portas do elevador fechando, contraria tal afirmação.

_ É verdade, agora me lembro! Hum! - Preciso dar uns goles, a falta do saquê já está me corroendo a razão. _Ave! Que goela seca, seca! – pensa._ Vou dar cabo desse verme e será agora...

_ Você não fará nada por enquanto, apenas observe-o de perto! Esse sujeito, como você mesmo diz, está nos armando alguma. Agora venha, vamos dar uma olhada em Catharine, estou louco para saber como ela está.

_ Oh, George, é impressão minha ou você está comovi...

_ ...Estou apenas fazendo meu papel de esposo sofrido!

O celular de Tanaka toca.

_ Fale, Adelaide! O que você quer, minha filha?

Depois de tomar conhecimento do assunto, solta um berro.

_ O quê? O delegadozinho está sentado em minha cadeira, logo naquela que ganhei de uns compadres da Yakuza32? Mande ele picar a mula de lá já!

_ Eu já tentei, prefeito, mas ele disse que só sairá de sua sala quando o senhor chegar – diz a secretária, aflita.

_ O que está acontecendo? – pergunta George, diante do pânico do amigo.

A tensão é tamanha que o prefeito o ignora.

_Que desaforado! Mande os seguranças jogá-lo à sarjeta! É cada uma! Quem ele pensa que é?

_ Eles até tentaram, mas o delegado com nome de planta disse que lhes daria voz de prisão. A coisa está pegando fogo aqui, doutor!

_ Que petulância! Tô indo para aí... Prepare umas duas ou três caixas de saquê, vou precisar, porque o pau vai comer! Ah, isso vai, ou não me chamo TANAKA SANTUKU!

_ Que barulho é esse? – Rubens abre a porta do C.T.I. e dá de encontro com os dois protagonistas da politicalha local.

_ Quem é você e por que fez aquilo por mim? – questiona o jornalista à residente, ainda no elevador.

_ Digamos que eu seja seu anjo da guarda. Acredita em anjos da guarda?

Pietro emite um sorriso quase imperceptível.

_ Pois eles existem!

_ Digamos então que eles existam, no meu caso, qual a intenção deles me ajudarem?

_ Anjos da guarda não têm respostas, apenas cumprem ordens superiores.

_ Que loucura! – passa as mãos pelos fartos fios de cabelo. _Isso é algum tipo de brincadeira? Eu estou meio que...

_ Perdido?

_ Sim!

_ Percebemos!

_ Como assim? Estou começando a ficar com medo.

_ Venha comigo e entenderá tudo.

A porta do elevador se abre.

_ Que andar é esse?

_ Acalme-se! Logo saberá... Venha! Temos pouco tempo! Logo o vereador e seu cão de guarda chegarão.

O salto do sapato da mulher ecoa pelo extenso e silencioso corredor.

_ Que lugar é esse?

A ansiedade de Pietro o impede de ler uma pequena plaqueta, logo na entrada da ala, com os dizeres “Oncologia”.

_ O lugar em que apenas os “afortunados” têm acesso; uma C.T.I. exclusiva àqueles que sofrem de um mal por vezes maior do que o que atingem os pacientes da ala em que você estava.

Param diante do quarto 1109.

_ Aqui estamos. Agora entenderá o porquê de tê-lo ajudado.

A porta se abre. Catharine, ictérica, sobrevive com o auxílio de um respirador. Gotículas de sangue são visíveis nos trajes que veste e espantam pela coloração viva. Por um instante, é como se estivesse morta em um corpo vivo. Perplexo, o jornalista cai em uma espécie de letargia; quer uma explicação, pelo menos racional, para tudo que tem lhe acontecido nas últimas horas.

_Sua sorte foi que o vereador e o prefeito erraram o andar. Se eles tivessem vindo para cá, certamente esse momento dificilmente aconteceria.

_ Moça - diz, restabelecendo-se, sou grato por tudo que fez por mim, mas até agora não entendo nada do que diz, é como se a cada palavra que proferisse, um novo enigma se lançasse ao vento. Seja objetiva, o que tudo isso significa?

_Dona Catharine Dumont está com os dias contados, sofre de uma grave enfermidade! Percebeu onde estamos? Ouviu algum gemido, qualquer barulhinho que fosse? Veja! – da-lhe uma prancheta. ¬_Agora entendeu?

_ C.T.I. ONCOLÓGICA? – aterroriza-se. _Então...

_Não bastasse a doença letal que carrega, ela ainda sofre agressões de todos os tipos, se não como explicar essas marcas?
Mostra-lhe o colo de Catharine.

_Meu Deus! Será possível? – os olhos de Pietro parecem querer saltar à face. _ Isso é obra daquele...daquele vereador?

_ E de quem mais seria? Sei que é jornalista, já fui sua entrevistada na inauguração dessa ala, há alguns anos. Certamente não se lembra! Mas eu me lembrei assim que o vi. Conheço seu caráter, seu profissionalismo, sua coragem, por isso, delate à comunidade principiense o que sofre essa mulher e o tipo de homem que ela abriga debaixo de seu teto – a indignação de Stela é voraz.

_ Como quer que eu faça isso? Sou apenas um simples jornalista. Sim, honesto, mas apenas um simples jornalista.

_ Você precisa nos ajudar...

_ “Nos ajudar”? A quem se refere? Há outra pessoa por trás de você, não há? Não é possível nutrir tanto apreço por essa mulher sem que ao menos tenha lhe conhecido de alguma forma.

Stela perde a cor.

_ Quem está com você? Por favor, me fale!

O interrogatório de Pietro é interrompido por um gemido de Catharine.

_ O homem que a espanca é o mesmo que ocupa uma cadeira legislativa e se apregoa o defensor dos fracos e oprimidos. Blasfêmia! Ele não pode se eleger prefeito, imagine se o for? Como vereador, muitas dores ignorou. Como prefeito, fartar-se-á apenas das benesses emanadas dos cofres públicos, relegando os mais humildes ao esquecimento e à dor eterna, onde jaz sua filha e em breve sua esposa – desabafa a residente.

_ Moça...moça... – ele tenta contê-la, mas é em vão.

_ Catharine sofreu diante de Alana, a filha, também nesse corredor, há algum tempo. Enquanto o esposo buscava apoio político, ela chorava diante do corpo frágil da filha, sob olhares de todos, pedindo a Deus que salvasse sua menina. E quando Alana parecia perder o vigor, eis que ela surgia, com uma força deveras maior, que a elevava à condição de uma semideusa, como se isso fosse possível. Era comovente! Não havia quem não se penalizasse! Aliás, havia! O vereador não sentia nada ao visitar a filha, era como se ela nada fosse dele... Imagine o ser mais frio que já tenha entrevistado e multiplique-o por milhões de vezes, este era George Dumont – a ira de Stela é descomunal._ Assistíamos indignados aquilo...

_ Moça... moça... – pega-a pelos braços – pare! PARE! Onde quer chegar com tudo isso?

_À JUSTIÇA! – responde doutor Rubens, ao abrir a porta, para a surpresa de Pietro.

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32 Yakuza é uma famosa e tradicional máfia japonesa, conhecida internacionalmente por seus crimes violentos e por seu rigoroso código de postura e honra.

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