'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 5

"Then you took my hand

Transformation began

Commotion where it once was still

Fireworks explode

Front row tickets to the show

This hand I will never let it go

Your hand I will never let it go'

(Your Hand I Will Never Let It Go - Stevie Nicks )

Eu bato na porta antes de entrar. Eu bato ainda que me sinta ridícula, pois sei que ele não vai mais gritar pelo meu nome e me pedir para que me sente ao seu lado e lhe dê um abraço de 'quebrar os ossos'. Eu dou três toques na porta de madeira e, mesmo sem esperanças, eu anseio que ele saiba que sou eu quem vai entrar.

- Bom dia. - Falo baixo, equilibrando em uma das mãos uma bandeja com seu café da manhã. Eu acomodo a bandeja de prata do enxoval da tia, empurrando com a mão livre, os remédios que ocupam grande parte da mesinha de cabeceira. Assim que eu a deixo, sem querer, eu me vejo foscamente refletida na superfície da bandeja. Exalo um rápido suspiro, enxugando, a tempo, uma lágrima que percorre meu rosto que dói ao contato de meus dedos. Penso em como vou esconder do tio os hematomas espalhados pelos meus braços e pescoço ou o olho roxo que mal se se abre antes que ele abra seus olhos e os fixe em mim. - Tio. - Eu murmuro em seu ouvido, afagando seus cabelos lisos e colados ao rosto ainda rosado. Ele suou durante a noite, tadinho e, certamente, delirou. - Acorda, tio. Trouxe o seu café. - Café? Café era o que eu costumava preparar com a ajuda da tia e surpreendê-lo aos domingos, seu dia de descanso. Aquilo era café! Bolachas, pães, geleia e o jornal de sua preferência dobrado ao lado do prato com ovos mexidos. Aquilo sim poderia ser chamado de café. Não essa papa gosmenta com aveia e leite e um copo com água para que ele tome um verdadeiro arsenal de comprimidos de vários tamanhos e cores, todos os dias, pela manhã. Há os que são para mantê-lo ativo. Há os que são para dopá-lo quando ele estiver nervoso. Há os que são para abrir seu apetite. Há, também, os que são para diminuí-lo a fim de que ele não aumente de peso e sobrecarregue a quem o assiste. Há as vitaminas, os laxantes, os diuréticos e os que deveriam retardar o esquecimento. Estes últimos, certamente, não cumprem com o seu propósito porque, a cada dia, ele se vai, aos poucos, bem diante dos meus olhos. Meu olho direito enxerga com dificuldade, mas o que dói mais é a vergonha e a raiva queimando aqui dentro. Talvez seja melhor que ele não me veja assim. Talvez, seja melhor que ele não compreenda o que se passa aqui fora. Talvez, aí dentro, tio, tudo seja mais calmo e tranquilo. - Tio. - Volto a chamá-lo, sentando-me na beirada de sua cama. - Meu tio querido. - Choramigo, recostando minha cabeça em seu peito. Ouço seu coração bater fraquinho como o de um pássaro que cai de uma árvore alta. Quero parar de chorar e não posso. Choro baixo, mas, eu sei que ele me sente. Eu o sinto aqui. Ele está aqui e não está. DOENÇA MALDITA!

Aperto seus braços cobertos pelo flanela do pijama que ele mais gosta.

"Foi sua tia quem me deu no primeiro aniversário em que passamos juntos", dizia ele como se houvesse ganhado na loteria. Seu sorriso iluminava a sala inteira e me fazia pensar que tudo seria eterno, principalmente eles. Meus tios. Meus verdadeiros pais. Mas era tudo mentira. MENTIRA! Eles se vão e eu fico. Que justiça há nisso???

Elevo meu tronco e assoo meu nariz com um papel toalha. Inspiro e expiro, tentando voltar ao normal. Aaah! Eu gargalharia se pudesse. Voltar ao normal. E o que é normal em minha vida? Meu rosto está um desastre. Minhas costelas doem. O homem que mais amo está partindo, embora seu corpo continue aqui, deitado, em perfeito estado, ao meu lado.

- Ei, Capitão. - Minha boca se abre à medida que seus globos oculares se movem. - Abra os olhos, Capitão. Abra! - Exulto de alegria, levando as mãos ao rosto e onde toco, sinto dor, mas nada se compara à felicidade de ver seu sorriso se abrindo lentamente. - Capitão, vamos navegar. O oceano nos espera e o céu está azul da cor do mar. - Repito o que ele sempre dizia antes de mergulhar no Esquecimento. Antes, quando tudo era perfeito. Antes, quando seu sonho era o de velejar, dando ao volta ao mundo, ao lado dela, sua esposa, sua amante e companheira. Ele jamais desistiu deste sonho, mas, a tia desistiu de viver antes do sonho acabar. Ela não lutou pela vida. Ela se entregou...em meus braços.

Eu ergo seu tronco, segurando-o pelos axilas. Ele é pesado, apesar de tentar se mover somente por me ajudar. São movimentos quase imperceptíveis, mas eu os sinto. Eu sinto a vida querendo voltar ao meu tio quando o toco. Porém, há algo maior e mais poderoso que o arranca de mim e de si mesmo. A custo, ele se recosta à cabeceira da cama, os braços estirados ao longo do tronco, as mãos inertes, caídas sobre as cobertas. Os olhos abertos e fixos nos meus.

É o melhor momento de todos. É o único momento em que ele realmente me enxerga. Assim que acorda, ele retorna do Mundo dos Esquecidos e me enxerga. Meu tio está de volta por minutos preciosos e eu não posso perder esta oportunidade. Então, eu me agarro a ele e o abraço com força e digo o quanto eu o amo. Digo que eu jamais o abandonarei. Digo que ainda quero velejar pelos mares ao seu lado. Prometo que vou arrancá-lo do mundo escuro onde ele habita. Prometo o que não posso cumprir. Foda-se. O que eu poderia dizer a ele? Que espere a morte entrar pela porta do quarto e o leve consigo? Conto as novidades do mundo lá fora. Eu conto e falo e rio e me esforço para que ele continue aqui, comigo, mas, eu não faço nada certo porque ele está chorando. Não move um músculo de seu rosto, mas de seus lindos olhos azuis, duas lágrimas escorrem lentamente. Eu, rapidamente, as enxugo com os meus dedos e digo que tudo vai passar.

- Seu rosto. - Ouço sua voz entaramelada sair com extrema dificuldade de sua garganta seca. Vejo seu indicador se elevar. Ele aponta para o meu olho e eu posso quase afirmar que ele balançou a cabeça num gesto de extrema decepção. Não sei se digo a verdade. Não sei se minto como das outras vezes. Estou ofegando. Feliz por ter ouvido sua voz após tanto tempo em silêncio. Triste por ele me ver assim. Ele que cuidou tantas vezes dos meus machucados. Ele que me defendia das perseguições e ataques do filho que parecia me odiar assim que fui adotada pela família. Ele que sempre tentou me alertar sobre algo que jamais chegou a dizer. A Doença o calou ou ele preferiu desistir de lutar contra o inevitável: a péssima índole do único filho. - Co...mo?

- Nada, tio. - Respondo, forçando um sorriso. - Eu sou estabanada. Daqui a pouco some. - Mantenho o sorriso, o que faz meu olho doer. Até ontem, eu enxergava com riqueza de detalhes. Até ontem, Fernando me tratou com carinho. Até ontem. - Eu levei um tombo, tio. - Minto, apressando-me a lhe dar a primeira colherada da papinha. Ele revira os olhos diante do prato de porcelana branca e do mingau fumegante. Eu rio. Ele sempre me fez rir. E, ainda o faz. - Só um pouco, tio. - Peço, soprando a colher, enquanto aguardo sua boca abrir. Sufoco um soluço quando vejo seus lábios trêmulos se abrindo, forçando o queixo a se entortar, a cabeça a balançar em movimentos involuntários e injustos. Após minutos de esforço, ele, enfim, alcança a colher já bem próxima à sua boca. Isso é injusto. Uma puta injustiça. Lembro-me do orador que sempre entusiasmou os colegas de turma, as festas aqui em casa. Sua dicção era perfeita. Suas palavras fluíam, encantando a todos que, perplexos, não tiravam os olhos do homem que falava do futuro com tanta esperança que arrancava suspiros tímidos dos mais pessimistas. Do homem que sempre enaltecia a amiga, a mãe de seus filhos, a mulher que o ajudara a construir um pequeno império a partir de um modesto bar numa das ruas do Centro, perto das docas. "Italia Mia", proclamava com orgulho, o peito estufado. Ah, tio, se o senhor soubesse que já não há uma de suas três filiais...- Só mais uma. A última. Prometo! - Imito um aviãozinho com a colher que se depara com sua boca fechada. Ele franze os lábios e comprime os olhos. Já sei. Essa é a maneira que ele encontrou de me dizer que não dá mais. - Ok. Agora os remédios. - Aviso, limpando os cantos de sua boca. Ele suspira lentamente e sinto um pouco de sua vida sair de seus pulmões. Ele sofre e isso me faz odiar seja lá quem tenha feito isso a ele. Por que os bons precisam sofrer e deixar a Terra enquanto os maus permanecem aqui? Deixo o guardanapo na bandeja e pego o copo e um canudo. Engulo em seco, mas a garganta continua embargada. Não é fácil ver alguém como ele não conseguir tomar um copo d'água sem que ela escorra de sua boca, molhando sua roupa, deixando-o constrangido. Não sei a quem odiar, mas odeio. - Mais um, tio. - Ele me olha com severidade e engole a última pílula. - Acabou. - Desisto de sorrir e ajeito seu pijama, penteando com os dedos seus cabelos lavados e cheirando à Lavanda. "Isso me faz sentir sua tia por perto", disse-me ele, durante o banho, quando ainda conseguia articular as palavras sem se esquecer delas. Eu os lavo todos os dias, pois todos os dias, ele precisa de um bom banho e óleo vegetal pelo corpo todo, principalmente em suas costas. Eu mesma dou o seu banho. Ele não queria, a princípio. Protestava, dizendo que era algo que um filho deveria fazer. Algo que alguém mais forte do que eu deveria fazer. Eu o entendia perfeitamente. Mais até do que gostaria, então mentia. Eu dizia que Fernando estava trabalhando muito e que vivia se queixando por não poder ser útil. Por não poder estar mais próximo a ele. Eu mentia. Eu mentia descaradamente. Fernando sempre o evitou. Mesmo antes da doença, Fernando o evitava. Havia algo no ar quando eles se entreolhavam. Algo que, sequer meus 'grandes poderes' de merda não conseguiam captar. Algo que o tio desconfiava. Algo que Fernando escondia. - Prontinho. - Beijo o topo de sua cabeça e me inclino para apanhar a bandeja. Antes que eu suspire aliviada e fuja dali, ele pigarreia, porque não consegue falar. Não consegue me perguntar o que houve com os meus olhos. Ele me toca. Sua mão está sobre a minha, então eu o ouço aqui, dentro de minha cabeça. Não o ouço. Eu o sinto. Essa merda de faculdade, maldição, sei lá o quê, me confunde o tempo todo. Sou burra demais para entender o que a tia tão bem me explicou. "É como um fósforo riscado, meu anjo. As imagens vem e vão como as chamas de um fósforo riscado". Eu ainda ouço o tom suave de sua voz. Ainda sinto o toque de sua boca em meu rosto. Ainda aspiro o aroma de lavanda que dela exalava. Eu sinto que ela está presente, mas, não quero ter esperanças. Talvez, ela não queira falar comigo. Talvez, ela esteja decepcionada comigo, com o que faço, com o que deixo que façam comigo. Talvez, ela saiba que eu não sou mais seu anjo inocente. Talvez, ela perceba que não sou tão dependente dele a ponto de suportar uma vida assim. Talvez ela saiba que eu me escondo atrás de desculpas somente por não querer admitir que não sou boa. Que gosto do que faço. Que gosto do que o filho dela faz a mim. Eu poderia dizer que ainda estou aqui pelo meu tio ou porque meus pais me expulsaram de casa. Mas, creio que ela sabe que eu me deixo manipular por Fernando por que eu o amo e gosto de ser tratada como uma qualquer. Se assim não fosse, como explicar o fato de continuar ao seu lado depois de ter apanhado ontem? Depois de ter sido humilhada em frente aos seus amigos de bar? Oferecida a eles como uma bebida ou uma porção de batatas fritas? Assim que chegamos à nossa casa, ele me bateu, mas apanhou também. Eu lhe dei uns bons chutes antes de ser atingida, em cheio. O fato é que a porra de um soco dele me nocauteia em dois segundos. Não é justo. Nada é justo. Ele me tratar assim não é justo. O tio estar nesta porra de cama quase sem vida não é justo. A tia não falar comigo porque não sou mais o seu 'anjinho', não é justo. Daria tudo para revê-la mais uma vez. Umazinha só...

- Foi...e...le? - Eu o sinto apertar a minha mão. Meu tio está apertando a minha mão esquerda com a sua direita e seus olhos me desafiam a dizer a verdade. Somente a verdade.

- Não. - Falo entre risos cortados. - Eu caí no chão, tio. De verdade. - Minto outra vez, narrando, euforicamente, o que adoraria ser a verdade. - Eu estava distraída e o senhor sabe que gosto de pular os degraus de dois em dois, daí, eu vi o Fernando chegar do trabalho. Ele passou pela porta e vinha direto na direção de seu quarto. O senhor dorme quando ele chega. Eu não queria...eu não poderia deixar que ele atrapalhasse o seu sono, tio. A culpa foi minha. Eu o puxei para trás e ele, sem querer, quando se virou para mim, atingiu meu olho com o seu cotovelo. Putz! Bateu direto no meu olho antes de eu cair no chão como uma banana podre. - Rio. Rio tanto de curvar o tronco, dando tapas em minhas coxas. Rio porque ele não está acreditando em nada do que digo e nada do que eu disser vai tirar de sua mente a imagem de sua filha - aquela a quem ele tanto protegeu - espancada por seu filho de sangue. - Tio! Foi ridículo! - Arquejo, desviando meus olhos úmidos dele que cerra os seus, expressando pesar. Seguro o choro e termino, já de pé, com a bandeja nas mãos. - E antes de cair, eu rodopiei no piso do corredor e quase quebro os dentes, me esborrachando com a cara no chão. - Ele não se move. Não abre os olhos de onde escorrem lágrimas pesadas. Eu deveria me calar e sair dali, mas eu me obrigo a continuar a falar feito uma idiota. - Caí. Caí feio, tio. Quase quebrei os dentes. Imagina??? - Ponho de volta a bandeja de onde a tirei porque o vejo tombando o corpo para o lado. Ele chora em silêncio contra o travesseiro. Deus! É terrível ver o homem que me contava histórias antes de eu dormir, não ter forças para se cobrir sozinho. - Tio? - Ele se encolhe para o lado oposto ao meu. Ele está em posição fetal, assustado e consumido. Parte de suas costas estão descobertas, então, eu noto a vermelhidão na pele fina e delicada daquela região. Um prenúncio das escaras de decúbito. O médico já havia me alertado que isso poderia acontecer pelo fato de estar há tanto tempo acamado. - Vou cuidar do senhor, meu tio. - Afirmo baixinho, deitada atrás dele, passando a mão, de leve, em sua pele, imaginando que herdei os poderes de minha tia. Estúpida! Eu não sou da família. Não tenho o sangue deles. Não há como herdar nada dele ou dela. Nada que eu possa fazer vai mudar o destino do meu tio. Porém, poderá amenizar e eu farei de tudo...tudo o que for preciso para que ele tenha o melhor tratamento até que...- Hoje é dia de Fisioterapia, tio.- Cochicho em seu ouvido. Ouço um ruído que mais pareço um urro de raiva. Dou uma risada em seu pescoço, estreitando os olhos. Dói novamente. Essa porra não vai sair do meu rosto tão cedo. - Vamos lá, Capitão. O senhor precisa se exercitar pra poder andar novamente e me levar pra velejar por aí. - Agarro-me ao seu ombro, encostando meu rosto ao dele. Ele resmunga algo que não consigo distinguir. - Eu sei, tio. Eu sei que o senhor queria ir com ela. Quem sabe ainda realize esse sonho, tio? - Sua mão alcança a minha pousada em seu ombro. Seu coração bate descompassadamente. Então, eu me empolgo. Preciso dizer algo de bom. Algo que o faça querer viver, lutar, permanecer aqui por mais tempo. - Quem sabe, tio, ela o está esperando? Torcendo pro senhor se recuperar e, enfim, viajar com ela ao redor do mundo? Quem sabe, tio? - Seu diafragma se move em descompasso. Ele chora...de saudades. Eu os vejo através dele. Eu os vejo jovens, bonitos e cheios de vida. Eu os vejo no campus da faculdade. Eu os vejo deitados na grama do campus. Meu tio colhe uma margarida do canteiro com uma placa onde está escrito 'É PROIBIDO TOCAR'. Eu a ouço sorrir. Eu a vejo com a margarida em seus cabelos longos, da cor do sol. Eles se abraçam. Ele a beija com tanta doçura e paixão! - Ela o espera, tio. - Digo com o rosto molhado pelas lágrimas que não cessam. - Mas ela o quer forte, corajoso, sem medo. Ela quer o homem com quem casou. Faça tudo o que tem de ser feito , tio. Tome os remédios, coma as refeições. Obedeça a terapeuta e pense...pense, planeje a viagem. - Murmuro em seu ouvido. Ergo-me um pouco mais e o vejo dormindo com um sorriso lindo estampado em seu rosto plácido. Cubro seu corpo encolhido e engatinho para trás até sair da cama. Pego a bandeja e, na ponta dos pés, chego ao batente da porta. 'Ele dorme em paz.', penso antes de sair do quarto. 'É assim que deve ser'.

Assim que chego ao corredor, meu coração acelera, meus pelos se eriçam e uma gostosa sensação de calor me toma por completo. A custo, mantenho a bandeja em minhas mãos trêmulas. Sinto o rosto lavado de lágrimas e já não me importo em escondê-las.

Não sei quanto tempo estou paralisada aqui, sentindo seu abraço sereno e reconfortante. Quero abraçá-la também. Quero dizer a ela o quanto a amo e o quanto ela me faz falta. Quero que ela me perdoe pelo mal que faço. Pelo bem que deixei de fazer. Quero que ela me entenda, mas eu não sei me explicar. Minha cabeça lateja, mas a sensação é gostosa. Há tanto o que ser dito em tão pouco tempo e eu só consigo dizer:

- Tia, me perdoa...

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 29/03/2020
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