'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 14

Calling all angels

I need you near to the ground

I miss you dearly

Can you hear me on your cloud?

All of my life

I've been waiting for someone to love

All of my life

I've been waiting for something to love

(CALLING ALL ANGELS - LENNY KRAVITZ)

Ele permaneceu ao meu lado por quatro dias ininterruptos sem se ausentar por um segundo sequer. Ele se mantivera calado por um tempo, observando-me de longe como se duvidasse de minha capacidade de resistência, para, logo em seguida, grudar-se à minha cama como erva daninha. Ele chorou, implorou por perdão. Contra a minha vontade, ele cuidou das feridas do meu corpo alegando não ter quem o fizesse além dele e, ele estava correto. Meus pais sumiram como pó espanado em dia de vento forte. Ele me fez tomar os remédios prescritos pelo médico a quem ele contou que eu fora estuprada por ladrões, na rua, à noite, voltando do trabalho.

'Não faço ideia, senhor', respondera ele, com lágrimas nos olhos, quando o doutor, ressabiado, perguntara se ele desconfiava de alguém em especial que pudesse ter cometido ato tão brutal contra mim. 'Tem muita gente ruim por aí, doutor', dissera fixando seu olhar arrependido sobre os meus que mal o enxergavam de tão inchados. Naquele instante, jurei fugir de casa assim que saísse daquela maca do hospital onde fora examinada e vasculhada por dentro e por fora, tendo de contar e recontar, em detalhes, o que me acontecera naquela maldita noite, ao policial insensível que fora enviado pela Delegacia de Polícia. Fernando se antecipava quando eu, por não saber o que contar além da verdade, levava um tempo para responder o que já havia sido perguntado. O policial, com seus olhos pesados e flácidos a meio-pau, a farda apertada, botões fora das casas na altura do abdômen volumoso, volta e meia afiava a ponta de seu bigode em desalinho, fios amarelados, possivelmente pelo fumo em excesso, os pelos grossos saltando das narinas dilatadas, anotava o que achava pertinente em seu bloquinho folheado com o auxílio de seu dedo umedecido em sua língua. Fiquei imaginando o quanto de bactérias estariam sobrevivendo de suas entranhas enquanto Fernando o convencia de que eu estaria bem em suas mãos, assim que retornássemos ao que ele chamava de 'nosso lar'.

"Espero que o senhor os ache e os puna', ouvira-o, autoritário, enquanto contava, gota à gota, o soro que se misturava ao sangue em minha veia numa mórbida lentidão. Meus olhos se fechando sem que eu pudesse ter controle sobre eles e quando os abria novamente, lá estava eu, atrelada à maca do quarto do hospital luxuoso pago pelo homem que me jogara às feras e que, agora, parecia agonizar ao meu lado, sentado em uma poltrona, imóvel, encarando-me, calado, zelando por meu sono.

Seus olhos...

Estatelados, fixos em mim, a mão apoiando a testa, a expressão fatigada, as sobrancelhas em desalinho. Chegara a pensar em ajeitá-las quando mergulhei em seu olhar. Seus olhos me diziam tantas coisas nas quais eu gostaria de acreditar. Foram os mesmos olhos que vira antes dele fechar a porta e me condenar à vergonha eterna de ter sido usada por um tempo que não saberia precisar, sem poder reagir. Condenada ao medo de me olhar novamente. De encarar o espelho após desenrolarem as ataduras de minha cabeça apesar de eu afirmar assim que dera entrada na emergência, quase inconsciente, que não teria quebrado um osso sequer.

'Sou é forte como o Sol'.

Era isso que eu berrava, segundos as enfermeiras, quando voltei do sonho que tivera com meu tio. Um sonho lindo do qual jamais deveria ter retornado.

'Jamais quebrei um osso sequer', sussurrara orgulhosa, olhos roxos, a visão turva, um sorriso dolorido, a cada uma delas que me encaravam entre a piedade e o desejo de que os criminosos sofressem o mesmo que eu. 'Não há de ser agora que vou quebrar!', afirmava, afofando com a mão livre as almofadas extremamente desconfortáveis, porém limpas e cheirosas. Não cheiravam à Lavanda, mas, eu não poderia me queixar do tratamento que recebera de cada uma delas. Até mesmo das mais novas que se engraçavam com Fernando que não lhes dava a menor atenção, os olhos sempre fixos em mim como se não quisesse me perder de vista por um só segundo. Aquilo não me assustou tampouco me sensibilizou. Continuava sem lhe dirigir a palavra. Para mim, ele era o condutor do ônibus e eu a passageira obediente que acatava à ordem expressa na placa, logo acima de sua cabeça: "FALE AO MOTORISTA SOMENTE O INDISPENSÁVEL".

Assim o fizera.

'Espero que cortem os bagos deles', confessara a enfermeira-chefe, baixinha e roliça, hábil, gentil, com as mãos de fada. Dominava a arte da 'punção venosa periférica', ou seja, enfiar aquela porcaria de agulha na minha pele lotada de hematomas. Notando minha apatia e o pavor quando levava minha mão ao olho direito suturado acima dos cílios ou ao canto esquerdo da boca, costurado, as pontas duras do pontos espetando meus dedos, ela, com extrema doçura e sabedoria, dissera-me que eu não ficaria com nenhuma sequela e continuaria linda, assim como meu irmão.

'Não sou linda', rebatera com o coração batendo em descompasso. 'Não sou digna de sua bondade', esclarecia, aos prantos. Não poderia confessar a ela com que tipo de mulher ela estaria lidando, conquanto não poderia deixar que ela pensasse estar cuidando de uma moça tão nobre quanto uma de suas filhas que, certamente, já estariam terminando os estudos, noivas ou casadas, com filhos e felizes. 'Eu fiz por merecer'. Antes de me repreender, ela caminhou lenta, porém firmemente em direção a Fernando que, convulsivamente, pusera-se a chorar. A cabeça afundada entre os joelhos. As mãos na nuca. Um choro seco e tão intenso que seu corpo se sacudia por inteiro. Sua boca aberta não emitia som algum. Apenas estremecia-se todo, puxando os fios de seu cabelo que eu tanto amava acariciar. Não se permitiu ser sedado porque, se o fizesse, dormiria e, caso dormisse, não poderia tomar conta de mim. Os olhos pequeninos e risonhos da senhorinha passeavam dos dele até os meus e, então, retornavam aos dele, as mãos rechonchudas afagavam sua bochecha com um carinho maternal. Então, ele sorria, enxugando as próprias lágrimas. O mesmo sorriso que vira na noite em que ele me tratara como uma princesa, quando nos beijamos naquele carro. Na noite que deveria ter sido especial.

E foi.

A noite que jamais sairia de minha mente. Seu sorriso displicente, seu terno em Oxford, as luzes do restaurante, o cheiro de molho ao sugo, o vinho que me fora servido. As mãos do garçom a quem eu devo desculpas...

- Quando vou sair daqui?

- Amanhã, após as dez. - Diz a mulher que me trata como se eu fosse uma garota honrada. Ela me beija na testa e me deseja felicidades ao lado do homem que me ama. Tive vontade de lhe contar a verdade. De lhe pedir ajuda. De fugir dali com ela. Lembro-me do pai do homem que supostamente me ama. Desisto de tudo, voltando a me deitar na cama, fixando o teto cor de 'burro quando foge'. Por que as cores dos quartos de hospitais têm essas cores em tons pastéis? Hummm...me deu fome. Meu estômago ronca. Eu inspiro, sentindo uma leve pontada nas duas costelas fraturadas. Emito um gemido. Fernando se ergue, tocando meu braço. Eu me desvencilho de seu toque, quase perdendo o acesso venoso por culpa dele que, ao fitar o meu olhar enraivecido, magoado, recolhe-se de volta à poltrona. Eu o odeio, mas sinto tanta pena! Já não dorme há dias. A roupa amassada, olheiras profundas ao redor dos olhos, a barba por fazer...PUTA MERDA!

Desvio meu olhar desconcertado que se cruza com o dele. Em seu rosto, um sorriso triste vai surgindo, as covinhas, os caninos sempre brancos lhe conferindo um ar de menino desamparado. Com a voz rouca, ele me pergunta se quero alguma coisa para comer ou beber. Eu me viro de costas para ele sem nada dizer. Não me lembro de ter ficado sem falar com ele desde que o conhecera, ainda aos dez anos. Quando brigávamos, ele sempre dava um jeitinho de me fazer rir e 'quebrar o gelo'. Então, nos abraçávamos e jurávamos que jamais nos separaríamos...

'Nem mesmo a Morte pode nos separar', ouço as palavras antes de perceber que estavam saindo de minha própria boca. Era o que prometíamos um ao outro, unindo nossos dedos mínimos. Diabos, ele me ouviu. Permaneço encolhida, coberta com a porra de um lençol fino, de um verde cor de bile, o que me deixa com frio enquanto choro baixinho. Ele me ouve. A poltrona é arrastada. Seus tênis rangem pelo chão encerado conforme caminha ao redor da cama. Meu peito dói...por dentro. Cerro os olhos porque sei que ele está de pé, diante de mim. Fica ali por minutos e, quando estou a ponto de explodir de raiva ou saudades, ele, num rápido gesto com os braços, expande o tórax, retirando o casaco de couro preto, cobrindo o meu corpo com ele. Sinto suas mãos, uma em cada lado dos meus ombros, ajeitando-o, acariciando minha pele sob o casaco, pedindo perdão, procurando por palavras como se houvesse algo a ser dito. Volto à noite em que ele fechara a porta do carro do carona e, lá de dentro, eu, idiota, imaginava que seríamos felizes para sempre. Que ele havia mudado. Que meu tio havia se enganado. Choro sem controle. Ele tenta me abraçar. Digo 'Não'. Volto à adega, as mãos dos monstros em meu corpo, os membros, a brutalidade, onde gritei 'NÃO' por tantas vezes até perder a voz.

'NÃO', grito contra o travesseiro. Ele se afasta e eu pego no sono de tanto chorar. Acordo, fixando minha atenção no teto. A lâmpada retangular, fluorescente. A sensação de estar presa, a claustrofobia, uma longa inspiração e solto o ar pela boca. Odeio esse teto.

Se eu fosse o dono deste hospital, pintaria as paredes de rosa, o teto de azul cravejado de estrelinhas amarelas que brilham durante a noite. As janelas seriam de um rosa mais escuro do que as paredes e as macas seriam violeta. Sim! Indubitavelmente, seriam Violeta! E, em cada uma delas, teriam placas com os nomes dos pacientes em itálico, as letrinhas salpicadas de purpurina. Acima de nossas cabeças, um globo espelhado de discoteca, daquelas que ficavam penduradas acima da cabeça de John Travolta, no filme "Os embalos de Sábado à Noite" enquanto ele se contorcia na pista de dança feito minhoca com coceira no cu.

Esse seria o hospital ideal...

De onde saí quatro dias após o estupro coletivo.

Posso dizer 'coletivo' quando há somente dois estupradores?

FODA-SE. EU SAÍ E ESTOU VIVA!

***

'Dê lembranças ao seu irmão', ouço uma voz conhecida, intrigada quero parar, no entanto, estou sendo empurrada por Fernando que guia a cadeira de rodas onde me sento, de maneira tão veloz quanto dirige seu carro. Contorço meu tronco, olhando para trás, a enfermeira-chefe, com muito esforço, nos alcança. Fernando se mostra impaciente, porém me obedece quando, enfim, falo com ele, pedindo com frieza na voz.

- Quero me despedir dela.

- Ok. - Assente, cruzando os braços, recostando-se à parede próxima à Administração. Reviro os olhos, inspirando profundamente. A enfermeira, arfante, aproxima-se de braços abertos, sorriso franco e os cabelos brancos um tanto em desalinho. Girando a cadeira com as mãos nas rodas, eu o encaro, estreitando meus olhos irados. - O quê? - Ele encolhe os ombros, na defensiva.

- Seria muito pedir que nos deixasse a sós? - Ele inclina a cabeça com um leve sorriso, as ruguinhas se formando em volta dos olhos vívidos num riso mudo. Está deslocado e contrariado, mas jamais dará o braço a torcer. Ele se deixa abraçar pela boa senhora que o beija no topo da cabeça. Ela ordena, animadamente, que ele cuide bem de mim. - Vai, Fernando. - Digo, olhando para o chão, liso e quase transparente de tão limpo. Lembro-me dos copos sobre a mesa do restaurante, a garrafa de vinho, a mão que me servira a taça. - VAI!

- Tô indo! - Erguendo os braços, ele sorri novamente, piscando para mim. Gira nos calcanhares, caminhando, atraente e sedutor, olha para trás, de relance e ao chegar à porta de saída, ele me dá um aceno rápido e simpático. Eu o conheço muito bem para entender que todo aquele ritual que deixa as atendentes afogueadas, dependuradas no mármore onde os pacientes dão entrada, significa que, de uma forma ou de outra, ele vai descobrir o que fora impedido de ouvir.

- Ele é um ótimo rapaz. - Sou atraída pela voz doce e segura de Heidi. Este é o seu nome, bordado em azul, no jaleco tão branco quanto os pratos da mesa que não foram tocados. - Será um ótimo marido. - Ela sorri, exalando um suspiro.

- A senhora acha? - Retruco, levando minha mão à boca, tentando esconder o esboço de um sorriso sarcástico. - Pode ser. - Finjo concordar, beijando suas mãos que seguram as minhas enquanto complemento. - Certamente, ele será um ótimo marido.- Suas mãos macias gostam de cozinhar, de afagar, de curar. Cerro meus olhos e estou sentada à mesa de jantar, entre suas duas filhas, o marido carrancudo, um menininho lindo, negro, olhos castanhos e límpidos. Ele está distante em seu mundinho, seu corpinho balança ritmicamente para frente e para trás. Parece estar em transe. Heidi, ao seu lado, pacientemente, espera que ele abra a boca e tome a sopa na colher erguida. O homem carrancudo resmunga, xingando a criança. "Retardado" é o que ele diz. Heidi permanece calada, pesarosa. Porém, uma das filhas, a que parece ser a mais nova, arrasta a cadeira para trás, ficando de pé, afrontando o pai quando diz que seu irmão não é um retardado. "Ele é autista. É o que o seu filho é! Um autista! Um ser humano especial, melhor do que muitos nesta mesa!"

O pai empurra o prato para longe de si, socando a mesa com os punhos cerrados, Olha para o lado. A criança toma a sopa. Heidi faz tremer a colher em sua mão. O pai, num só golpe, empurra o garotinho em sua cadeirinha com apoio para pratos. As filhas acodem Heidi que leva a mão ao peito. Uma dor aguda. Uma agulhada que a impede de respirar. Ela aponta para o filho, jogado sobre o chão frio, ainda preso à cadeirinha. A cabeça contra o piso. Uma poça de sangue que se alarga lentamente, traçando um caminho macabro até os pés da filha que o acolhe em seus braços, enquanto amaldiçoa o pai, aos berros. O homem carrancudo gira lentamente o pescoço, os olhos esbugalhados, gritos, lamentos, Heidi sobre o corpo inerte do filho, as mãos cobertas de vermelho. Os olhos negros e cheios de ódio do homem carrancudo se fixam num ponto. Estremeço quando sinto que o ponto sou eu.

- ME AJUDA! - Grita ele para mim.

Por segundos, prendo o ar nos pulmões, o coração acelera, o pânico ameaça tomar conta de mim. Quero voltar antes que ele me toque. Seu dedo alongado, desfigurado está a um centímetro do meu rosto quando, graças à eficácia de Heidi, preocupada, arrepia meus pelos, auscultando meu coração com a porra da ponta gelada do esfigmomanômetro sempre adornando seu pescoço como se fora um colar de pérolas.

- Meu Deus! - Murmuro, tremendo-me toda, cobrindo o rosto, curvando meu tronco, chorando, tentando convencer a enfermeira-chefe, com a voz entrecortada por soluços, de que estou bem. Ela me pergunta se costumo me 'ausentar' com facilidade. Minto, dizendo que não. Ela não parece acreditar. Eu não a encaro enquanto ela pressiona firmemente seus dedos contra meu pulso até sentir a minha pulsação.

- Querida. - Diz ela. - Vc precisa ser forte e tentar esquecer essa tragédia que aconteceu em sua vida. - Ergo os olhos úmidos e, somente então, percebo o sotaque alemão em suas palavras. Suas bochechas rosadas, os cabelos esbranquiçados que, um dia, foram loiros. Nossos olhos se encontram. Ela sorri. - Vc é nova, linda. Tem um coração enorme e é muito inteligente. - Afirma ela, enxugando minhas lágrimas. - Tenho certeza de que será muito feliz ainda com o homem com quem se casar. - Arrependo-me das palavras que escapam de minha boca ainda ressentida pelo corte profundo, já cicatrizado.

- A senhora é feliz em seu casamento? - Ela baixa os olhos, francamente constrangida, escondendo as mãos nos bolsos do jaleco. - Me perdoa! - Imploro, erguendo-me da cadeira, enlaçando-a pela cintura, escutando as batidas aceleradas de seu coração machucado. - Eu não deveria ter perguntado.

- Deveria sim. - Sussurra ela em meu ouvido. - Eu não fui feliz. Escolhi o homem errado para ser o pai de meus filhos. - A imagem de seu filho se estampa em minha tela mental. Lágrimas escorrem dos meus olhos enquanto a ouço falar baixinho, alheia ao burburinho que nos cerca. - Ele foi um homem mau, cheio de preconceitos que me afastou do meu bem mais precioso.

- Entendo...- Digo contra seu ombro coberto pelo pano umedecido por minhas lágrimas. O homem está morto e ainda a persegue. Lanço um olhar desconfiado ao chão. Vejo seus pés, os pés do morto logo aqui, ao lado dos nossos pés. Um odor nauseabundo invade minhas narinas. A carne podre de suas pernas. Os vermes que se alimentam da carne podre de suas pernas, SOME.DA.MINHA.FRENTE. - A senhora já o esqueceu? - Pergunto, gaguejando.

- Ainda não. Por pior que ele tenha sido, nunca nos faltou comida à mesa e ele jamais levantou a mão para me bater. O que ele fez, fez levado pelo alcoolismo. - Consternada, ela me afasta com suas mãos em meus ombros, olhando fixamente para meus olhos. Atrás dela, o morto impedido de tocá-la por uma luz branca e intensa que a circunda. Ela me faz sentar de volta à cadeira. Sorrindo, explica ser norma do hospital que eu saia carregada, ainda que esteja perfeita. Diz que já o perdoou, mas o sente por perto, à noite, durante suas orações. O homem carrancudo, fedido e em decomposição parece chorar, expressando arrependimento. Voltando meus olhos mais apiedados do que aterrorizados a ela, eu recomendo quando a ouço se lamentar por não saber o que fazer para que ele siga o seu caminho.

- Fale alto. - Disparo, ofegante, olhando por sobre seus ombros. Lá está ele. Uma sombra coberta por andrajos e vermes. Aflita, repito. - Fale alto enquanto reza. Diga alto que o perdoa. Não se importe com o que suas filhas vão pensar. Fale alto. - A boca entreaberta de Heidi, seus olhos atentos aguardam mais instruções, ao mesmo tempo em que o morto se afasta, aos poucos, evaporando como fumaça negra. - Diga em voz alta que o perdoa. Que ele siga seu caminho. Que não o odeia. Que o filho de vcs o espera do Outro Lado e que a vida, após a morte, deve continuar. - Sob seu olhar perplexo, eu apoio meus braços no espaldar da cadeira, inspirando e expirando, sentindo minhas forças se esvaírem.

- Obrigada. - Revigoro-me com a energia que passa de suas mãos pousadas em minha cabeça, seu beijo em meus cabelos limpos.

Então, do nada, eu a vejo soltar um gritinho eufórico, voltando a enfiar as mãos nos bolsos do jaleco, modificando, por completo, a expressão em seu semblante, agora, iluminado. - Quase ia me esquecendo. - Diz ela, olhando para o teto, balançando seu corpo rechonchudo, retirando de um dos bolsos, um pequeno pacote. - Achei! - Ela saltita como milho de pipoca numa panela quente. Eu rio enquanto ela, em silêncio, abre o zíper de minha mochila acomodada entre as minhas pernas, depositando o embrulho lá dentro. Ela fecha o zíper e inclinando-se até mim, estreitando os olhos risonhos, cochicha aos meus ouvidos. - Seu irmão confiou isso a mim.

- Irmão???

- Uh-hum. - Sorrio ao notar sua empolgação e as maçãs de seu rosto rubras como seus lábios que continuam a se movimentar, eletrizados. - Ele disse ser seu irmão quando a trouxe pra cá. - Meu coração está prestes a saltar pela boca. Meus olhos se enchem d'água. As mãos apertam as rodas da cadeira até que as pontas de meus dedos fiquem brancas de tanta angústia e ansiedade. Fala tudo. Fala tudo. FALA, PELO AMOR DE DEUS!

- Não foi o Fernando quem me trouxe???

- Não! - Ela ergue o queixo, acenando para a porta de saída, onde, supostamente, Fernando me aguarda, remoendo seu ódio, seu ciúme doentio, sua...- Não foi o bonitão lá não. - Ela abre os olhos desmesuradamente como se soubesse de algo que eu mesma desconheço. - Foi um outro bonitão, com a voz grave que me fez tremer dos pés à cabeça. Olhos negros e um sorriso lindo, tímido! - Com as duas mãos sobre o peito, espero que ele exploda somente após ela terminar a sessão de tortura. Então, ela finalmente fala o que o meu coração já sabia. - Ele me fez prometer entregar isso a vc, assim que se recuperasse. Queria pagar por seu tratamento, o que eu recusei de imediato, pois Fernando já o havia feito. Não sei o que há aí dentro, meu bem, mas, seja lá o que for, é muito especial para ele. - Estou tendo um daqueles acessos de risos sobre os quais não tenho controle. O que a faz rir também. Assim que ela se refaz, revirando os olhos, abanando-se com as mãos espalmadas, continua. - Infelizmente, não me lembro do nome daquele homem, mas jamais vou me esquecer da forma como ele entrou na Sala de Emergência, segurando vc em seus braços, os olhos assustados, a voz embargada, implorando por socorro. Meu bem. - Ela cerra os olhos e, com a mão no peito, declara. - Aquele homem te ama!

- Ama. - Repito, abobalhada, exalando um suspiro de esperança que aquece a minha alma. Heidi me tira do transe quando, apressadamente, arruma minha roupa, prende com um elástico meus cabelos num rabo de cavalo e me alerta com ares de governanta e seu sotaque germânico ainda mais carregado.

- Agora guarde isso com cuidado e não deixe que o bonitão que VEM CHEGANDO saiba de nossa conversinha. Disse a ele que vc chegou aqui trazida pela ambulância que a encontrou jogada numa das ruas escuras do centro da cidade. Entendeu??? - Assinto com a cabeça quando sinto a cadeira sacolejar, empurrando meu corpo para frente. - Muito cuidado com a nossa paciente, mein junges! - Aconselha Heidi a Fernando que, pela pressão de suas mãos sobre as manoplas da cadeira de rodas, está prestes a atropelar a enfermeira. Ele me gira tão rápido que preciso segurar firme nos braços da cadeira para não ser ejetada do assento. Dou graças por ele estar atrás de mim e não perceber o sorriso largo que não quer desgrudar do meu rosto. Não me preocupo em como viverei daqui para frente ou como serei tratada por ele ao chegarmos a casa. Ou se terei condições de cuidar do tio como antes. A única frase que, certamente, ocupará os meus pensamentos e me dará forças para continuar é saber...

Quem é esse homem?

***

No carro, calada, recosto minha cabeça no encosto de couro e, mergulhando nas memórias daquele dia nefasto, chego ao ponto onde tudo parece fazer sentido. Ouço Fernando passar as marchas, arranhando-as de propósito. Não ouso sorrir, mas, por dentro, borboletas batem suas asinhas em meu estômago quando, num borrão de cores e imagens distorcidas, me ponho a pensar:

Se não foi o Fernando quem me levou ao hospital, quem o fez? Quem me procurou pelo restaurante, abrindo portas, erguendo-me do chão, beijando o topo de minha cabeça, os cabelos secos de sangue, a voz suave, impregnada de dor que me dizia, exalando um suspiro eloquente, cheio de compaixão.

"Enfim, te encontrei"?

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 19/05/2020
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