'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 15

"Veja o sol

Dessa manhã tão cinza

A tempestade que chega

É da cor dos teus olhos

Castanhos

Então me abraça forte

E diz mais uma vez

Que já estamos

Distantes de tudo

Temos nosso próprio tempo

Temos nosso próprio tempo

Temos nosso próprio tempo

Não tenho medo do escuro

Mas deixe as luzes

Acesas agora"

(TEMPO PERDIDO - LEGIÃO URBANA)

'Não há nada que o sol não possa curar', dizia minha tia, animadíssima, sempre à minha frente, no banco do velho Chevette que, àquela época, parecia-me bastante espaçoso para acolher a nossa família, nossos brinquedos, além das caixas de isopor do tio com a sua cerveja, nossos refrigerantes, água e sanduíches embalados em papel alumínio, recheados com uma pasta semelhante à massa de cimento, bizarramente deliciosa, composta por maionese misturada ao atum ou sardinha, que unia duas fatias de pão de forma (sem as cascas porque Fernando as odiava) e que se grudavam, uma a outra, como dois tijolos de uma casa em construção.

Éramos em quatro num carro entulhado, apertado, sem ar-condicionado, que roncava, chiava, engasgava, no entanto, continuava a ser valente, sem jamais nos deixar na mão. Éramos quatro dentro de um carro onde havia mais risadas do que em qualquer outro lugar onde já tenha pisado. Meu tio, ao volante, inventava letras para canções que conhecíamos, tornando-as absolutamente patéticas. Todos ríamos, exceto Fernando que se mantinha emburrado, afastado de mim, logo atrás da cadeira do motorista de onde, pelo retrovisor, meu tio jogava uma piscadela cúmplice para mim enquanto pedia desculpas ao filho por ter estragado as músicas lentas as quais ele dedicava a cada uma das garotas enfadonhas que ele havia conquistado.

Camila, Ana Julia, Bete Balanço, Fátima, Polly, Janaína e até mesmo Billie Jean, uma menina baixinha, clara, cabelos curtos e crespos. Usava óculos e se vestia de preto como uma gótica. Tinha piercing nas orelhas e, na boca, um batom tão escuro quanto as unhas. Definitivamente, ela possuía um jeitão esquisito. Não era o tipo dele. Nem sei porque eles tiveram um relacionamento. Se é que se pode classificar uma noite juntos, ambos bêbados, de 'relacionamento'. Seu nome não era esse. Ele a chamava de Billie Jean porque, segundo ele, o filho que ela dizia esperar não era dele. Uma referência ridícula à canção de Michael Jackson a quem eu não idolatrava, já que minha deusa sempre fora e sempre será Madonna, meio que 'Like a Virgin'.

Billie Jean gritou, chorou, esperneou diante de nossa casa (digo, a deles, onde eu me infiltrei) por uma semana exaustiva. Segurava-se às grades do portão principal , o rosto lívido, a voz rouca, desesperada por ter sido expulsa de casa pelo pai que soubera da gravidez. Fernando, covardemente, se negou a conversar com ela sobre o assunto, delegando à minha tia a dura tarefa de levar Billie Jean de volta ao seu lar e conversar com seus pais. O que rolou naquela tarde onde, abraçada à minha tia, Billie Jean se afastou para sempre de nossa calçada, eu não posso imaginar. Sei o que sentira por ela: uma imensa piedade pela moça que nunca mais fora vista nas ruas, bares ou junto ao seu grupo de amigos. Billie Jean e o suposto neto do meu tio haviam sumido, trazendo, de volta à vida do delinquente 'super gato', a tranquilidade dos que brincam com sentimentos alheios sem assumirem seus erros. Creio que a tia errara em muitos pontos na educação de Fernando, deixando-o livre para fazer o que quisesse e com quem quisesse, enquanto me resguardava dos assédios por parte de outros meninos da rua que me sorriam com uma ponta de algo que me irritava profundamente, remoendo meu estômago, causando-me náuseas. Era a Lascívia, a quem eu fora apresentada anos mais tarde e com quem aprendera a conviver...graças ao Fernando.

Sempre Fernando. Fernando pode. Fernando não pode. Fernando faz. Fernando desfaz. Fernando quer isso. Deixa Fernando fazer isso. 'Fernando não pode fazer sempre o que quer. Precisa de limites', era a voz firme assaz amorosa do meu tio ao volante numa das muitas e frustradas tentativas em persuadir minha tia de que ela estaria formando um homem sem responsabilidade. 'Um canalha sem escrúpulos', pensava eu, calada, ouvindo a discussão, sentindo a brisa do mar entrando pela janela aberta, empolgada por já vislumbrar a areia branquinha que se unia a um marzão tão azul quanto os olhos de Fernando que me observava, de

esguelha, abrindo um daqueles sorrisos de triunfo em seu rosto perfeito, os movimentos calculados, única e exclusivamente para atrair, cortejar, conquistar, usar, aniquilar e jogar fora. Aos quatorze, seu lado soturno já havia se formado há tempos enquanto eu, aos dez, ainda era uma criança. Ainda brincava de bonecas enquanto ele me cercava de carinhos, quando de bom humor. Carinhos gostosos de sentir, embora uma voz dentro de mim sussurrasse que seus dedos suaves e habilidosos não deveriam se esconder debaixo de minha calcinha. Então, lembrava-me de minha mãe condenando, apontando o dedo acusador para a TV, em preto e branco, assim que a protagonista babaca da novela beijava o 'mocinho' sem sequer mostrarem a língua.

'Mulher decente não faz isso!', declarava, autoritária, seus olhos pequenos acinzentados fixos nos meus, a raiva contorcendo suas feições, o tronco curvado em minha direção, o nariz afilado quase a tocar o meu, a voz com um sibilar severo como o de um chocalho de cobra me alertava: 'Isso é feio. É pecado. Boas meninas não fazem isso. Deus castiga.'

Isso tudo por um beijo sem línguas??? O que a senhora diria, 'mamãe', se eu contasse o que vira num dos botecos fétidos onde a senhora me obrigava a ir em busca do meu pai? Posso dizer que vira a língua asquerosa dele dentro da boca de uma vadia pinguça, esquelética, cabelos tingidos numa coloração 'palha de milho'?

Acho que não. Esquece.

Àquela ocasião, pensara que Deus já havia me castigado por ter deixado que as mãos de um adulto me tocassem enquanto eu os ouvia lá do quarto escuro onde ele me prendera. Logo ali, a porta entreaberta, meus pais passando de um lado para o outro, levando nas mãos pratos com torresmos e a porra da linguiça fatiada, oleosa, entupidora de artérias; copos cheios até o topo espumando, derramando pingos de cerveja num piso escorregadio onde um tio meu levara um tombo. Um tio tão alcoólatra e desvairado quanto o meu pai e tão culpado quanto o verme, um amigo que trouxera do inferno direto à reunião familiar. Um amigo sujo que me acariciava, antes de atingir seus sórdidos objetivos. Meus pais, tios, avós, todos alheios à minha ausência. Como uma família inteira cujos gritinhos eufóricos eu ouvia, de pé, quietinha, diante do homem sem entranhas, poderia ter fechado os olhos ao que acontecia naquela merda de quarto grudado à sala onde dançavam, cantavam como loucos? Eu a via pela fresta da porta. Eu queria chamar por minha mãe, mas, não poderia imaginar que corria risco.

Eu era tão inocente.

'O que acontece em Vegas, fica em Vegas'. Esta é uma das máximas de Fernando e, o que acontecera

naquele quarto escuro entre mim e o verme escroto que me tocara de uma forma mais do que abusiva, ficara naquele quarto, onde Dayse, olhos estupefatos, arregalados, muda, observara a tudo sem poder gritar por socorro. Tenho saudades de Dayse, minha melhor amiga e única boneca.

Então, veio Fernando...

Seu toque não era como o do 'monstro do quarto escuro' e, igualmente, não despertava em mim as mesmas repulsivas reações. Ainda assim, eu sabia que havia algo de errado no fato de ser tocada daquela forma por um irmão. É. Aos meus olhos, éramos irmãos e amigos inseparáveis. Uma dupla dinâmica como 'Batman e Robin' até o dia em que ele passara dos toques sutis de seus dedos ao uso entorpecedor de sua língua em partes do meu corpo já bastante desenvolvidas. Talvez, por este motivo, eu odeie o Batman??? Batman que sempre tem o que quer, quando quer e como quer. Batman que conquista as mulheres para, logo em seguida, abandoná-las. EU ODEIO A PORRA DO BATMAN! Gosto mais do Robin que jamais 'saíra do armário' por não querer magoar seu amigo, expondo seu amor, sua necessidade de estar sempre ao lado do Homem-Morcego insensível. Robin, assim como eu, sempre fora o coadjuvante. Céus! Nunca soubera a idade de Robin! Era tão jovem quanto eu? Passava pela puberdade?

Outra merda de fase pela qual temos de passar: a Puberdade. Ela atrai, desperta, amplia desejos. E, a puberdade ao lado de Fernando não poderia ser igual às demais. Não. Fernando tudo pode quando Fernando tudo quer. Logo, passamos, ele e eu, para uma nova fase do jogo que ele mesmo criara e ao qual dera o nome idiota de: "O que é seu é meu. O que é meu é seu". Com a desculpa de me proteger dos ataques íntimos de seres que me aprisionavam durante as constantes crises de 'Paralisia do Sono', com o consentimento dos meus tios que nele confiavam, Fernando, passava as noites deitado ao meu lado, na mesma cama, onde fora, aos poucos, me fazendo descobrir outra sensação completamente fora do meu universo infantojuvenil: o prazer.

Ele me viciara a ter seus dedos, suas mãos, sua boca, sua língua em várias partes do meu corpo. Ele me fizera crer em suas promessas de que jamais repetiria com outras garotas, o que fazia em mim. 'Vc é a única e sempre será', com a voz grave de um adolescente que já havia passado da fase de mudanças, murmurava em meu ouvido, apreciando o meu corpo se contorcendo sob a ação de seu toque. Dizia serem normais as minhas reações, o que acalmava a minha angústia, serenava minha vergonha quando encostava seus lábios quentes nos meus, prometendo-me que eu jamais seria de outro além dele. Com o tempo, percebera que não se tratava de uma promessa, mas de um aviso.

Uma ameaça.

Então ele partira para outro estado. Fora estudar numa das melhores universidades do país onde permanecera por quatro longos e torturantes anos sem enviar a mim uma carta sequer, certo de que, quando retornasse, eu ainda estaria ali, pura, intocada, esperando por ele.

E ele estava certo. Eu o esperei, mantendo comigo nosso segredo, nossos joguinhos. E eu me pergunto: Para quê?

Eu mesma respondo: Para ser estuprada, aos quinze, por ele, que retornara no dia que deveria ser um dos mais felizes da minha vida.

Mas...isso eu já contei.

***

Cerro meus olhos, aspirando a maresia, os cabelos esvoaçando, tapando a minha visão num momento crucial de fome extrema. Tento evitar a lambança, mas é tarde demais. Tomates-cereja escapam de minha boca pelas laterais enquanto luto, abanando a cabeça, a fim de não engolir meus próprios fios de cabelo que se grudam ao creme divino transbordando, lentamente, pela beirada dos pães unidos, como calda de chocolate.

'O filho da puta sabe cozinhar!', penso, brigando com o papel acoplado que envolve o sanduíche, impedindo-me de dar a segunda mordida. Dou assim mesmo. Parte do papel vem junto aos outros ingredientes da iguaria que ele mesmo preparou em casa antes de sairmos. Um "Caprese" bem montado com muçarela de búfala, folhas de manjericão, azeite extremamente virgem, sal e pimenta-do-reino na medida certa. Mastigo sentindo o gosto de cada item, cuspindo o pedaço do papel na areia.

Arrependo-me porque meu tio me ensinara a manter a areia limpa. Com as mãos ocupadas segurando o sanduíche do qual não largo de jeito algum, estico a ponta do pé e, com agilidade e destreza de uma bailarina, meus dedos resgatam o papel babado, trazendo-o de volta à toalha. Havia sempre um saquinho para lixo (ou melhor, 'detritos', segundo o meu tio) quando vínhamos para cá onde estou sentada de frente para o mar, pernas cruzadas, a boca cheia, o estômago quase satisfeito, já de olho no segundo pacotinho saboroso e rechonchudo ao meu lado, acondicionado numa vasilha térmica. O pensamento em Pedro, meu professor de Ballet chega até mim como as gaivotas sobrevoando as ondas que se jogam contra a areia. A culpa ocupa parte do meu estômago ainda faminto.

- Merda. - Grunho, cravando os dentes no que resta do pão. - Por que desisti de dançar? - Sinto os olhos da criança da barraca ao lado da nossa vidrados em mim. - Quer? - Ofereço o sanduíche sem tirá-lo da boca. Ela faz cara de nojo. Eu a ignoro, voltando minha atenção ao vendedor de picolé, costas bronzeadas e curvadas sob o peso do isopor ainda cheio. Penso em como ele deve sustentar sua família vendendo picolés no verão. E quanto ao restante do ano? E se chover? De onde ele vai tirar a grana? Será que tem filhos? É feliz? Parece que sim porque está sempre sorrindo, cantando. Mas ele precisa sorrir. Ninguém gosta de gente com a 'cara amarrada'. - Bosta! - Distraída, mastigo outro pedaço do papel. A menininha ri. Eu o engulo dessa vez. - Engraçado, né? - Dirijo-me a ela, congelando em meu rosto um sorriso macabro. Ela se esconde entre os pais, alheios à sua presença. Arrependo-me, voltando no tempo quando igualmente fora esquecida. Ela me observa por sobre os ombros da mãe que não para de falar. Aceno amistosamente. Ela me mostra a língua. - Vá pro inferno. - Digo movendo a boca sem emitir som algum. Criança é um saco! Será que eu fui assim?

Ah...foda-se!

O vento retira os fios do meu cabelo que cobrem meu rosto. Eles tremulam como uma bandeira hasteada em meio a um furacão tropical, quando, irritada, num relance, jogo minha cabeça para trás, vislumbrando o céu azul afofado por nuvens brancas e esparsas. Os fios do cabelos se abrem como o leque de uma espanhola. Lambo os dedos melados e quase posso ouvir minha tia ralhando comigo, os braços finos e delicados estendidos em minha direção, na mão um guardanapo de papel retirado de sua bolsa mágica. Havia de um tudo ali naquela bolsa, exceto limites para Fernando a quem ela parecia adorar como a um deus.

U-au! Um deus grego de curvas perfeitas saindo do mar, caminhando sinuosamente em minha direção. Engasgo, tossindo, quando ele sacode os cabelos já sem corte, como um cãozinho feliz. Olhando para baixo, ele sorri, displicentemente convencido, o que indica que ele sabe que eu o estou reparando, então, ele, de súbito, para, desliza os dedos pelas mechas molhadas e alonga os braços, retesando os músculos, o tórax se expande. O calção de banho desce uns dois centímetros quando ele seca a barriga que mais parece com um tabuleiro do 'Jogo da Velha'. Meus olhos escorregam para a linha em "V", logo acima do que a bermuda esconde. Não posso negar que isso ainda me perturba. Seu corpo sempre me atraíra, no entanto, desde que toda aquela porcaria aconteceu comigo, ele me tem respeitado, falado o essencial, sem me tocar. Foram as condições impostas para que eu permanecesse em sua casa. BAH! Como se eu tivesse outra opção. Tá! Mas...foi bem bacana ouvi-lo implorar para que eu o ajudasse a cuidar de seu pai. Um pai que ele parece esquecer. Está mais do que claro que daquela casa eu não arredo o pé. Não sem o meu tio. Logo, lá permaneci, no quarto de hóspedes, como uma total estranha durante quase dois meses, até que precisei de sua ajuda, numa noite em que o tio acordara, arfando, suado, olhos esbugalhados, sem se recordar do motivo pelo qual sentira medo. 'Não foi um sonho. Não foi um sonho', repetia, aflito, os braços descoordenados, os punhos cerrados golpeando o ar como se quisesse se defender de um ataque iminente. Fernando já se encontrava no quarto, naquele momento, então, em silêncio, ajudara-me a vigiar o sono do pai logo que eu, pacientemente, administrei seus remédios, acariciando sua testa umedecida pelo suor. A partir de então, Fernando tem me ajudado bastante nos cuidados com o tio, o que me faz suspirar pateticamente, agora, ao desviar meus olhos para o lado quando ele, ajoelhado, me pergunta.

- Gostoso?

- Quem??? - Ele ri para dentro, baixa a cabeça, balançando-a, para, logo em seguida, levantá-la de novo. Seus olhos azuis da cor do mar estão sobre mim novamente.

- O sanduíche!

- Ah, tá! - Pigarreio, limpando a garganta. - O sanduíche.

- Era o seu predileto no tempo em que o pai ainda...- Ele ergue o canto da boca, então, não sei se ele está se recordando de bons momentos ao lado do pai ou se está tentando me comover dando uma de 'bom filho'. - Faltou o presunto.

- Uh-hum. - Dou de ombros. - Percebi. - Comento, prendendo a respiração, engolindo o último pedaço, amassando, inquieta, o que sobrou. Esfrego, rispidamente, o guardanapo de papel em minha boca, juntando tudo para depositá-lo no saco plástico, amarrado em uma das alças do guarda-sol com as cores do arco-íris que poderia estar mais próximo a mim, mas...não está. Ele não para de me observar, logo, sou obrigada a me levantar. Retiro o meu bumbum da toalha, girando meu corpo a fim de alcançar a porra do saco. Ouço-o puxar o ar por entre os dentes numa vulgar manifestação de apreço. Seu sorriso cafajeste some assim que ele observa minha expressão severa, as narinas dilatadas, quando volto a me sentar, encolhendo-me como um gongolo. - Muito bom. Uma maravilha! Poderia vender. Ganharia uma fortuna. - Digo, constrangida, com a cabeça entre os joelhos flexionados, o queixo batendo no peito, a língua vasculhando o interior de minha boca onde ainda restam 'detritos', como diria meu tio que, certamente, saberia conduzir essa conversinha sem sentido.

- Eles já são vendidos no restaurante.

- Não me diga! - Zombo, observando a minha barriga. Devo ter engordado uns dois quilos. Inspiro, seguro o ar nos pulmões e a encolho. - Que coisa não?

- Giulia. - Ele me chama, mas finjo não ouvir.

- Vc cozinha bem! - Exclamo, incomodada, porque sei que ele quer voltar a um assunto que me machuca. - Sabe que puxou isso do meu tio, né? - Advirto-o, erguendo a cabeça. Dou de cara com seu tórax molhado, provavelmente, salgado. Isso só poderia ser constatado se eu o lambesse, coisa que está há quilômetros de acontecer. Atônita, baixo a cabeça. Minha voz sai abafada. - Saiba que quem cozinha bem naquela casa é o meu tio!

- Vc quer dizer... - Ele faz uma pausa. - O meu pai?

- Não! - Grito contra meu peito, enfurnando ainda mais a cabeça entre os joelhos, comportando-me da maneira mais infantil que posso conceber. - É O MEU TIO!

- Não. - Sua voz doce faz meu coração disparar quando diz. - É o seu pai.

- É o meu pai. - Repito, segurando o choro. - Vc sabe cozinhar tão bem quanto ele. - Assumo.

- Eu sei. Sou bom nisso e em muitas outras coisas.

- Ha ha ha ha ha.

- Giulia. - Ele volta ame chamar.

- Dá pra parar de repetir meu nome? - Ergo a cabeça, revirando os olhos úmidos - Ou tá difícil? - Sinto-me estúpida ante o silêncio constrangedor que se instala entre nós dois. Solto o ar contra o vento, fitando o horizonte, inclinando-me para a esquerda, já que ele continua agachado à minha frente como um cão que aguarda por instruções de seu dono. Sua loção pós-barba se infiltra em minhas narinas, os pingos do cabelo que ele volta a sacudir atingem meu rosto, olhos, então eu bufo. Ele ri quando eu, piscando freneticamente como as luzes de uma árvore de Natal, pergunto, olhando-o nos olhos. - Se incomoda em sair da minha frente? Eu tô tentando...- Antes mesmo de terminar o que iria dizer, ele se joga contra a toalha esticada sobre a areia deitando-se sobre a lateral do corpo, apoiando-se em seu cotovelo. A mão direita apoia a cabeça enquanto a esquerda, livre, brinca com a bolinha de frescobol. SÉRIO??? Vc realmente achou que nós iríamos jogar como quando éramos criança??? Vc realmente pensou nisso quando jogou essas raquetes no porta-malas??? - Não quero jogar! - Afirmo, atormentada pelo movimento contínuo da bola que sobe e desce seguindo os estímulos de sua mão hábil. Ele ri para si mesmo e eu o odeio quando faz isso. É afrontosamente pretensioso. - E não adianta usar de chantagem barata dizendo que eu tô com medo de perder porque isso não funciona há séculos, meu bem.

- Há séculos a gente não joga. - Comenta ele, com seriedade na voz. A mão segura a bola no ar. O riso some. Os olhos se fixam na bola. - Tenho saudades de nós dois.

- Pode parar. - Nossos olhares se cruzam. - Nem mais um pio.

- Sério. Deixa eu falar. - Jurando ter visto um lampejo de arrependimento em seu semblante, eu me desarmo, cruzando as pernas, as mãos nos joelhos, o tronco curvado, ouvidos atentos, olhos no horizonte, eu resmungo.

- Não quero. - Ele percebe a relutância em meu rosto e sorri.

- Tenho saudades de como a gente era. De como a gente jogava, brincava, brigava. - Confessa ele, baixando os olhos e o braço, a mão larga a bola. A bola rola sobre a toalha até encostar em minha coxa. Com os olhos marejados, agora grudados na bola, eu ouço sua voz baixa, repleta de amargura, prosseguir.

- Daria tudo pra voltar no tempo e consertar o que fiz.

- Shhh! - Aviso, erguendo uma mão espalmada diante de seu rosto. - Não toca no assunto!

- A gente precisa falar.

- Não. - Interrompo. - Não precisa porra nenhuma. Fica quieto e não estraga o momento. Vc já falou demais. Já fez demais. Aliás. - Faço uma breve pausa, lançando-lhe meu olhar magoado. - O teu erro foi exatamente esse: não ter limites. Sempre fez tudo o que quis, quando quis, como quis e com quem quis. Sempre teve um otário que acreditasse nesse teu jeitinho de bom moço. No caso...- Outra pausa. Com o olhar ainda mais magoado, a voz titubeando, digo. - Eu. - Baixo a cabeça, evitando chorar.

- Ei. - Sua voz é macia. O tom que usa é conciliador. - Posso falar?

- Pra quê? Pra estragar tudo? - Levo as mãos ao rosto, cobrindo-o, quando, num suspiro, peço. - Não. Não fala. - Seu indicador toca minha pele. Instintivamente, eu o repudio, arrastando-me para o lado oposto ao dele. Sua mão se apoia na toalha. A minha a esmaga como se o fizesse a uma barata. - Não ouse me tocar novamente. - Ameaço-o, entredentes.

- Ok. - Ele ri outra vez, com um pequeno ronco. - Eu acho...

- Vc não tem que achar nada. Fica quieto. Tô curtindo o mar. - Cerro os olhos, levantando o indicador, ordeno. - Ouça o som das ondas...

- Eu tenho direito à defesa! - Argumenta, arrastando-se na toalha até chegar bem próximo a mim. Tão próximo que sinto seu hálito quente...agradável...sedutor. - Deixa eu falar. Eu preciso me defender!

- Ah, meu bem. - Eu bufo uma risada, jogando a cabeça para trás. - Ora, me poupe! Direito à defesa. - Volto a abraçar os joelhos quando digo a mim mesma. - Direito à defesa. - Repito, olhando para ele, os olhos em chamas, a voz três oitavas acima, balançando a cabeça a cada palavra dita. - Vc sempre usa seu direito à defesa pra fazer merda em cima de merda! - Faço outra pausa, olho para o casal ao lado que se prepara para ir embora. Baixo o tom de voz e sorrio para a garotinha que me acena, de longe. - Agora acabou, meu bem. Acabou! Presta a atenção! - Volto a fuzilar Fernando com os olhos, encarando aquele sorrisinho cínico se abrindo, os caninos à mostra, as covinhas, seus olhos atentos. - A-CA-BOU! Entendeu ou quer que desenhe??? - Giro a cabeça. Os fios do meu cabelo se tornam um emaranhado grotesco lutando entre si graças à ação de uma rajada súbita de um vento morno, então, sem paciência, eu os enrolo num coque medonho no topo da cabeça. - Acabou! - Repito, voltando a minha atenção ao horizonte, cerrando os punhos, louca para socar a cara dele.

- Uma partida? - Sugere ele, despretensiosamente.

- O quê??? - Giro meu pescoço em sua direção com tanta violência que ouvimos o estalo. Ele ri. Eu ergo o punho cerrado. Ele ri mais alto. Meu coração dá um salto. Seus dentes são perfeitos. Sua arcada é corretíssima. A língua rosada, a porra do Pomo-de-Adão que não para de se mover. - Partida??? Que partida, garoto ridículo???

- Antes, precisa me perdoar. - Seu riso some. Sua expressão é séria quando retira os fios da franja de minha testa para ver meu rosto por inteiro. Estou pateticamente imobilizada, com seus dedos em meu queixo. Sua voz rouca me hipnotiza. - Eu sei o que fiz. Eu me arrependo de tudo. Tudo mesmo. Vc precisa acreditar. - Tento mover o queixo. Ele firma sua mão em minha pele, mas, dessa vez, ele não me machuca. - Eu te amo. Sempre te amei.

- Do seu jeito. - Interrompo. Ele ergue a sobrancelha. Eu me calo. Ele continua.

- Não importa o jeito. Eu te amo. Vc é tudo o que tenho. Desde que vc entrou na minha vida, eu não penso em outra mulher. Eu não tenho outras. Eu poderia ter quem eu quisesse, mas não quero outra. É só vc. Nunca houve outra. Nunca vai existir outra.

- Claro. - Retruco, baixando os olhos. - Quem faria o que vc me obriga a fazer?

- Perdão. - Suplica ele, num sussurro. - Eu sou um merda. Eu faço vc sofrer. Eu sei. Eu quero parar. Juro que quero. Quero para de beber, de ter ciúmes, de enlouquecer, mas, sem vc eu não consigo. Me ajuda. - Olho em seus olhos e quero acreditar em cada palavra que sai de sua boca. Ele enxuga as lágrimas em meu rosto e com suavidade na voz, continua. - A gente nasceu um pro outro, baby. - Reviro os olhos, contrariada. - Ok! - Limpando a garganta, ele prossegue. - Giulia. - Assinto. - Vc nasceu pra mim. Eu nasci pra vc.

- Isso é letra de música, palerma. - Resmungo, engolindo o nó na garganta. - Patético.

- Da nossa música!

- Rá! - Solto o ar pela boca aberta, a cabeça balança vagarosamente enquanto choramingo. - Desde quando a gente tem uma música, Fernando? A gente nunca dançou juntos.

- Nunca é tarde pra começar. Somos tão jovens! - Antes que ele comece a recitar Renato Russo, eu, sorrindo, permito que ele segure minhas mãos. - Deixa eu te mostrar que eu mudei. Confia em mim.

- Ninguém muda da noite pro dia, Fernando.

- Cala a porra da boca e me escuta. - Abro a boca para mandá-lo ao inferno, mas desisto. Revirando os olhos, eu rosno.

- Fala. - Sua coxa se encosta à minha. Isso está fora de nosso acordo, então, aviso. - De Longe! Por favor!. - Ele se afasta, agastado. Sorrio, vingativa. - Vai...fala.

- Vc é minha. Eu sou seu. Nada muda isso. Nunca mudou. Não vai mudar. Eu errei. Eu pedi perdão. Eu mudei. Me deixa provar. Não posso ficar sem falar com vc. Sem tocar em vc. Sem ver o seu sorriso todos os dias. Sem ouvir sua gargalhada gostosa. Sem ouvir sua voz irritante me chamando, me xingando. - Ele ri do meu riso e, com a expressão de quem acaba de tragar um baseado, me observa, ajoelhado diante de mim. Ele não move um músculo sequer enquanto me examina com a cara de babaca. Isso me assusta. Se ele não falar alguma coisa AGORA, eu o empurro. - Vc é linda e eu, um otário. Me perdoa. - Ele beija minha testa e volta a fixar seus olhos nos meus. - Perdoa por tudo.

Reflito em silêncio sem conseguir desviar a atenção daquele rosto que aprendera a amar e a odiar. Ele não se move, o que me agrada. Vê-lo com as mãos unidas com se estivesse em oração, de joelhos sobre a areia, implorando pelo meu perdão é algo inusitado. Estendo um pouco mais o silêncio. É bom que ele queime a pele dos joelhos e sinta um pouquinho da grandiosa dor que me causou. Suas feições se contraem num ricto de dor, o que é previsível porque sei que ele está prestes a abrir o seu melhor sorriso. Aquele que me faz esquecer de tudo e perdoar todas as merdas que ele comete. - Eu juro que vou mudar.

- Ai, garoto! É a milésima vez que repete isso. - Bufo, escondendo meu rosto afogueado entre os joelhos. - Sai da minha frente! - Como um cachorrinho, ele me obedece. O mar manso me convida a um mergulho. - Não quero mais falar sobre isso.

- Então perdoa? - Seus olhos me seguem quando eu me levanto da toalha, expondo-me ao sol ameno do fim de tarde. - Giuliaaa! - Lamenta ele, erguendo-se, num pulo.

- Ah! Vá pro inferno! - Grito enquanto caminho em direção à água. Ele me segue como um cão farejador. - Fernando, me deixa! A gente já conversou!

- Perdoa. - Ele insiste. Eu me viro no exato momento em que seu olhar escorrega como serpente pelo meu traseiro.

- Fernando! - Seus olhos encontram os meus. - Vc é ridículo! Sabia???

- Sabia. - Eu me volto para o mar. Ele volta a me seguir enquanto implora. - Perdoa.

- Lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá! - Caminho, confusa, atordoada, comovida, tapando os ouvidos com as mãos, sem me importar com os banhistas que parecem aguardar pelo desfecho da cena desprezível. - Cala a boca, Fernando!

- Uma partida!

- O QUÊ??? - Giro meu corpo em sua direção. O sol incide sobre meus olhos aturdidos. - Não entendi!

- Uma partida! - Propõe ele, inclinando levemente a cabeça para o lado. Como uma imã, sua voz me atrai. Estou novamente diante dele. O vento seca suas mechas sedosas, as sobrancelhas em desalinho que eu, instintivamente, com os dedos, penteio. - Só uma partida. - Antes de retirar minha mão de seu rosto, já arrependida, ele a agarra no ar. Estamos conectados como quando éramos crianças. A água morna em nossos pés, o sol em nossa pele. Seus olhos se estreitam num desafio. A velha rixa diante dos tios para ver quem seria o melhor. Eu sempre perdia porque não o queria triste, afastado de nós. - Giulia. - Pede ele, num gemido. - Umazinha só.

- Garoto...- Suspiro fantasmagoricamente.

- O que foi, amor?

Expiro, sentindo uma dor no peito, uma saudade do que ainda não vivi. Sua mão ainda segura a minha. Meus olhos perdem o foco. Sua voz se perde no vento contra minha pele. Já não estou na praia. Sinto a verdade em suas palavras. Vejo-o no quarto, chorando, bebendo, pensando, deitado em nossa antiga cama. Sinto seu arrependimento ou penso sentir. Já não sei de nada. Só o que desejo é me esquecer daquela noite de horror. Ouço sua risada infantil, vejo seus pulos de alegria diante dos pais que o aplaudem sentados logo aqui, na beira da praia. Ele é mau, é louco, é devasso, é minha única família. É meu único amigo. Um amigo torto. - Não mente pra mim. - Imploro, puxando minha mão, desfazendo a conexão.

- Nunca mais. - Balbucia ele contra a minha boca.

- Jura?

- Juro. - Sorrindo, ele agita o dedo mínimo diante do meu nariz. - 'De bem'? - Reviro os olhos, lembrando-me de quando a tia no obrigava a nos reconciliar, juntando nossos dedos mínimos ao mesmo tempo em que, num tom grave, deixando para trás as desavenças, em comum acordo, dizíamos: "De bem", selando nosso pacto de paz. - "De bem'??? - Ele sacode nossos dedos unidos.

- Ai, eu não acredito! - Exclamo, eufórica. - Isso muito infantil! - Mordendo o canto da boca, eu concordo, sentindo a eletricidade que sempre nos uniu percorrer a minha nuca. - Isso é...

- Patético?

- Sim. - Rindo, eu confirmo. - 'De bem'.

- Pronta pra perder? - Ele me desafia, com as mãos na cintura e a expressão que mais amo em seu semblante: a do cara legal que me trata como uma garota normal. - Giulia!

- O que vc quer, garoto??? - Ajeito o meu biquini enquanto aguardo meu coração voltar ao meu peito. - NÃO GRITA NA MINHA CABEÇA! - De súbito, berro, espalmando minhas mãos em seu peito bronzeado. Ele dá dois passos para trás, sorrindo. Puta merda. - FALA! O QUE VC QUER?

- Te vencer numa partida de frescobol!

- Sei. - zombo dele, rindo ironicamente. - Vc vencendo? - Ele assente, mordendo a ponta da língua. Eu torço para que eu não esteja ruborizando o que, provavelmente está acontecendo porque ele me fita, embevecido. - Pega a porra das raquetes e que os jogos comecem!!! - Ele hesita, surpreso. - JÁ!

Eu o vejo correr até a barraca. Aprecio cada parte de seu corpo, de seu jeito moleque de ser. Do rapaz que deveria ter sido. Do homem que ainda pode ser. Olho para o céu e vejo a primeira estrelinha lá no fundo. Peço a ela que ele, de fato, tenha mudado porque eu estou, de fato, disposta a lhe dar outra chance. Eu sei. Pode parecer loucura...ou não! Foram dois meses separados. Dois meses em que ele pudera refletir. Eu vi. Eu senti. Eu não posso estar inventando. Posso? Afundo meus pés na areia molhada enquanto ele, lá longe, agachado, de costas para mim, parece procurar por algo embaixo da cadeira de praia. Empolgada, olho para os lados, enchendo meu peito de ar. O Sudoeste passa por mim. Um zumbido intenso e ininterrupto no interior do meu ouvido como quando se mudam as estações de um rádio me deixa zonza. Um arrepio na nuca. A praia está quase deserta. Pais e filhos se dirigindo ao calçadão. Vendedores ambulantes, acolá, assobiam, batucando no isopor vazio. Uma repentina vontade de mergulhar toma conta de mim, então, afoita, giro nos calcanhares e disparo, saltitando, em direção às marolas, de olhos cerrados. Um, dois, três passos apressados. Respingos da água salgada em meu corpo.

- WOOHOO! - Ergo os dois braços, prestes a mergulhar.

Impulsiono meu corpo para cima. Alinho a cabeça ao braços esticados.

Um estrondo. Um súbito impacto na minha cabeça. A adrenalina me pinicando dos pés à cabeça. Um 'Ai meu Deus'. Cambaleando, eu rolo na areia como um pneu que se solta de carro em movimento. Quando, enfim, paro, não consigo pensar, a cabeça dói. A bunda dói. Os olhos ardem, então, alivio a pressão liberando as únicas palavras que fazem sentido naquele momento.

- PUTA QUE PARIU! - Apoio meus braços na areia e me ergo, confusa, empanada como um pedaço de bife. - Não vê por onde anda???

Meus olhos travam nos do homem que se chocara contra mim. O silêncio que se segue é ensurdecedor. Levo a mão ao peito sem me importar com a areia em meu rosto ou em minha bunda. Meu coração bate na garganta. Sinto o ar gelado do oceano invadir minha boca aberta. Posso contar as batidas do meu coração, a pulsação das veias em meu pescoço. A boca está aberta, mas o som está preso dentro do peito. Nos olhos dele, um misto de susto, confusão, alegria, tristeza e algo mais. Quero gritar por seu nome, abraçá-lo, socar a cara dele. Uma avalanche de sensações toma conta de mim e não me deixa perceber o pânico transtornando seu semblante ao encontrar, num gracioso e ligeiro girar de pescoço, o que o transtorna, à nossa esquerda.

- Pedro! - Cuspo seu nome, ávida por explicações, louca para matar as saudades do amigo e professor que me ensinara a Arte de Dançar. - Pedro! - Chamo por ele uma segunda vez enquanto o vejo, como em um pesadelo, se afastar de mim, balançando a cabeça, os olhos desorientados, os braços esticados, enxotando-me como se não me conhecesse. A cada passo que dou em sua direção, ele recua, sem nada dizer. Ele parece prestes a dizer alguma coisa, mas hesita. Acompanho seu olhar aterrorizado, então, compreendo a origem de seu medo. - O que ele fez? - Sussurro, angustiada, apressando meus passos à medida em que ele se afasta. Ele me pede perdão, com lágrimas nos olhos e, me dando as costas, corre com a agilidade e rapidez de uma gazela, virando um borrão em movimento. - PARA!

Meu grito atrai Fernando que traz consigo as raquetes debaixo do braço e a bolinha na mão direita. Sorrindo, ele me pergunta se vira um fantasma. Seu sorriso some, repentinamente, quando observa meu rosto. Larga tudo, assim que percebe minha lividez. Ele me abraça enquanto traço um plano em minha mente atordoada. Fingindo estar tonta, peço que pegue um copo d'água no isopor. Verdadeiramente preocupado, sem ter visto nada, ele retorna à barraca enquanto eu, estreitando meus olhos, apuro a minha visão. Aqueço meus músculos, saltitando como um pugilista, preparando-me para correr. Ouço a voz do meu tio, gritando contra o vento, o braço esticado, apito na boca.

'Perna alta! Braço dobrado! VAI!'

Disparo como uma bala disposta a vencer a disputa. Só que, desta vez, meu oponente não é Fernando que grita por mim enquanto me distancio dele a cada passada larga que dou. Não vou parar até que eu alcance Pedro e descubra a verdade. Até que eu possa entender o que ouvira num flash quando nossos dedos se tocaram por segundos.

'Me deixa viver!'

Esta frase não sai da minha cabeça enquanto corro, arfando, sem capacidade para raciocinar. E é exatamente ela que me impulsiona a prosseguir, mesmo que o Horror corra ao meu lado, advertindo-me de que a verdade poderá me levar ao meu amado e maligno amigo de infância.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 26/05/2020
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