"É ASSIM QUE DEVE SER" - CAPÍTULO 18

EEEE

Começa como de costume, estou caminhando em um corredor apertado, abafado, escuro, cheirando a éter. Por entre as portas entreabertas, vejo todos os tipos de doentes e suas doenças. São aberrações o que vejo. Não queria estar lá, mas, assim que fecho os olhos quando vc se despede de mim, tudo tem início. Não posso descrever aqui, com detalhes o que vejo por quase todas as noites. É extremamente constrangedor, surreal, repugnante. Não sei o que é pior: estar acordado e sentir que estou perdendo, pouco a pouco, minhas habilidades motoras, o que me tem dificultado - e muito - a escrever neste diário, ou fechar olhos e mergulhar neste pesadelo que, de tão real, deixam marcas em meu corpo. As mesmas marcas que te intrigam quando me dá banho ou troca a minha roupa. Não sou eu, filha. Não são feitas por mim. Quando a vejo se desesperar diante do que vc julga ser fruto de possíveis acessos de raiva causados pelo Alzheimer, faço o possível e o impossível para te explicar o que se passa comigo durante as noites em que vc precisa sair para o trabalho e me deixar com aquela menina que nada mais faz além de mascar chicletes com a boca aberta, sentada na poltrona onde sua tia costumava ler seus livros estranhos noite adentro. Eu quero te explicar e vc não me permite falar quando procuro, em desespero, as palavras que fogem de mim como o Diabo, da cruz. Por que não usa seu dom e termina com o meu sofrimento? Por que não consegue captar o que tento lhe dizer? Desvende esse pesadelo comigo, Giulia. Há algo nele que me parece bastante significativo. Tente me ouvir da próxima vez. Se houver uma próxima. Eu não estou atordoado pelo uso de medicamentos contínuos. Eu estou atormentado por viver no inferno neste e no Outro Mundo. Vc precisa me ouvir, embora minha voz já não soe tão firme e desembaraçada quanto antes. Porém, ainda consiga elaborar frases inteiras, conquanto pareçam desconexas quando vc as escuta. Quando estou submerso na banheira e vc se debruça na beirada do mármore e me olha com os olhos cheios de lágrimas, desisto da ideia de lhe contar o que tenho vivido do Outro Lado. "Por que faria isso? Qual o benefício de lhe pôr sobre os ombros já curvados por tantas obrigações e decepções, preocupações que gerariam mais sofrimento a vc? Então, eu me calo e sorrio, ouvindo-a mentir sobre o seu dia de trabalho no "Italia Mia". Vc realmente acredita que eu creio em tudo o que inventa? Vc acha que não a vejo no trabalho onde dança com amargura no olhar? Vc realmente pensa que não vejo como ele a trata?

Não sei bem quando isso começou. Creio que veio como bônus. 'Compre um Alzheimer e leve, de graça, o dom que escolher'. Deveria ser engraçado, mas não é. Não quero ver o que tenho visto. E tenho visto mais do que gostaria. Ver e não poder reagir é uma tremenda injustiça. Talvez a doença tenha disparado algum dispositivo em meu cérebro ou talvez eu já tenha nascido com os tais dons amplamente propagados e reverenciados por sua tia que falava com os mortos e mantinha com eles mais intimidade do que deveria. Talvez seja mais um castigo dos Céus por eu não ter tirado vc daqui quando ainda havia tempo. Mas, o que eu poderia alegar? Como iria explicar aos seus pais que vc correria menos riscos com eles do que aqui, conosco? Nós praticamente te arrancamos deles, Giulia. Um erro que eu cometi pressionado por sua tia, mas, eu cometi. Eu deveria tê-la enfrentado, mas não consegui. E, por isso, eu me culpo e a culpa somente é aliviada quando escrevo. Minhas mãos estão doendo. Não sei que dia é hoje. Como se isso fizesse alguma diferença. Gosto quando está aqui comigo, meu anjo. Ao menos, está longe dele. Estou com dificuldades em me recordar do ponto onde parei. Está chovendo. Ouço trovões. Lembra de quando vc e ele pulavam em nossa cama porque tinham medo dos estrondos? Disso eu me recordo perfeitamente. Ficávamos os quatro sobre o mesmo colchão. Sua tia o abraçava e vc, se grudava a mim como um chiclete. Como o chiclete da mocinha loira que finge cuidar de mim quando vc se ausenta. Abusada ela. Quando se vê sozinha aqui no meu quarto, ele veste todas as roupas de sua tia, ainda guardadas no armário. É abusada, mas é de confiança. Não rouba nada. Os vestidos de sua tia realmente causam um encanto especial. São vestidos de fada. Minha fada se foi. Por que eu ainda estou aqui te dando tanto trabalho? Por que nesta casa todos parecem ter algum tipo de maldição? Por que não nos livramos dos vestidos dela? Isso não é saudável.

Sua tia também não era tão saudável quanto aparentava. Passava da alegria e suavidade à insanidade e fúria em fração de segundos. Vcs dois jamais a viram assim, 'surtando'. Eu me trancava com ela no quarto com isolamento acústico onde vc ensaiava para as aulas de Ballet, de modo que ela poderia gritar e me xingar o quanto quisesse sem que vcs nos ouvissem. Eram momentos terríveis. Momentos que eu jamais compartilhei com quem quer que fosse. Ela partiu como a mulher amorosa, serena e diáfana como nós a conhecíamos. Seu lado mais obscuro cabia somente a mim conhecer. Cabia a mim frear seus impulsos, seus pensamentos e atos que iam de encontro ao que eu achava correto e, ainda assim, eu nada fazia para impedi-la de alcançar seus objetivos.

Ela não era má. De maneira alguma. Ela, de fato, te amava. Amava tanto que a escolhera para substituir a filha que perdemos, como se isso fosse possível. Tudo nela mudou após a morte de Isabella. Tudo nela mudou quando Fernando completara seus sete anos. Dizem que essa idade é uma idade onde todas as boas e más tendências afloram. Tudo de bom ou de mau que há na criança, vem à superfície. Sou obrigado a concordar com quem inventou essa teoria.

Ele sempre está em meu sonho. Um sonho recorrente onde ele corre atrás de mim, usando as mãos e os pés, como uma fera; um quadrúpede. Há uma porta logo adiante e, em frente à porta, sua tia me aguarda de braços abertos. Chego mais perto. Quero abraçá-la e dizer que estou com saudades. Pedir que fiquemos juntos, no entanto, quando me aproximo, seu rosto, gradualmente, se transforma. A pele alva e lisa se comprime em volta dos olhos. Rugas se aprofundam. As mechas grisalhas surgem no cabelo da cor do sol. O queixo dela cresce, a pele começa a desmanchar, seus dentes brancos aparecem pelo buraco na bochecha, então, percebo que ela não está envelhecendo mas, sim, se decompondo. Apavorado tento encontrar outra saída em outra porta. Há várias delas. Eu as abro temendo ser pego por ele que não se parece com ele, embora eu tenha a certeza de que é ele. O fato dele correr como um gorila me causa aflição, medo e repulsa. Ele corre como um gorila, mas sem a furiosa dignidade de um gorila. É algo pior. É lascivo, demoníaco, insidioso e, quando está prestes a me tocar com suas unhas imensas e negras, eu empurro a última porta à minha frente. Ele, por vezes, chega a me lanhar com suas garras. São as tais marcas que vc vê em meu corpo quando me dá banho. Aquelas que te intrigam e que te fazem pensar que foram causadas por mim mesmo. Perceba a profundidade do ferimento, Giulia. É vc quem corta as minhas unhas. Por Deus! Como eu, com as unhas aparadas, poderia causar aquele estrago em minha pele?

Quando ultrapasso a porta, instantaneamente, sou obrigado a fechar meus olhos tamanha a claridade que vem de seu interior. A luz afasta a criatura que me aguarda, n lado escuro do corredor cheirando a amônia e morte. Dentro da luz, estou a salvo, embora, não queira seguir adiante porque, se eu seguir, não retornarei à cama. Eu não quero ir agora, filha. Não posso te deixar sozinha.

Uau! Esse foi dos bons! Levou mais tempo entre o relâmpago e o trovão. Eu te ensinei essa técnica? Aprendi em um filme. Contei ou não contei? Ah! Deixa pra lá.

No pesadelo, sua tia está chorando, culpando-me por não cuidar dele. Por não amá-lo como eu o amava antes de vc chegar. Ela me condena à solidão, porém, diz que me ama. O vestido que cobre seu corpo esquálido está imundo e molhado, colado à sua pele. Seus pés estão descalços, seus cabelos desalinhados. Será que sofre? Será que o que vejo é fruto de minha imaginação? Ao contrário de sua tia, eu sempre me mantive afastado do sobrenatural. Mesmo quando nossa filha morreu, eu preferi acreditar que somos como poeiras ao vento, como canta aquele cara da banda "Kansas". "Dusty in the wind". É o que somos. "Poeiras ao Vento". É o que deveríamos ser e não essa complexidade de espíritos eternos lutando uns contra os outros, intervindo no mundo dos que estão aqui na Terra! Como vc mesma diria: Por San Juan Diego! Que merda é essa? A gente não pode simplesmente desaparecer após sofrer tanto por aqui? A ideia de Eternidade sempre me tirou o fôlego. Não ter fim é demais para mim.

Sua tia me diz que eu prometi cuidar dele. Ela diz que eu devo prosseguir com o plano traçado, mas eu não quero fazer isso, filha. Eu te amo e eu não fiz parte do pacto. Eu nada tenho a ver com aquele acordo. Nada.

Vc acredita em mim?

Giulia, seus pais não são tão terríveis quanto parecem. Nós oferecemos dinheiro a eles. Não. Na verdade, sua tia fez a oferta. Eles estavam necessitados, logo, aceitaram. Não se vende uma filha. Eu sei. Deus! Onde está a Justiça nisso tudo?! O que ela quer fazer com vc é feio, tosco, mesquinho e fatalmente fadado ao fracasso. Ninguém tem o poder de prever o futuro! Não se brinca a vida de um ser humano dessa maneira! Eu preciso parar com tudo isso antes que seja tarde. Vou falar com ela. Isso não pode ficar assim.

Ele é meu filho, porém, não é confiável. Diferente do rapaz que a encontrou jogada como um trapo no chão e a levou ao hospital.

Preciso me lembrar de onde guardei meu dinheiro. Eu polpei moeda por moeda durante os anos em que suei a camisa para construir o que hoje é dele. O plano era levá-los à praia de Kokomo, em Curaçao. Um paraíso. Bastante parecido com a praia do meu pesadelo. Mas, não deu. A Escuridão chegou antes de eu sentir a areia afundando por entre meus dedos.

O dinheiro. Assim que me recordar de onde eu o deixei, vou te contar. Esse dinheiro é todo seu agora. Pegue-o e saia dessa casa. Não se importe comigo. Ainda posso gritar e me defender seja lá do que for.

Fernando tem vindo aqui me observar. Para diante de mim, recostado à parede, a um certa distância. Finjo dormir porque não gosto do tom da voz que ele usa quando fala comigo. É soturno.

Que merda de pai que eu sou!? Tendo medo do próprio filho. Isso tem que acabar. Ele sai daqui e vai até o seu quarto. Vc dorme tranquila enquanto ele senta na poltrona ao lado de sua cama e fica lá, por horas, olhando vc, fascinado, paralisado, possuído.

Possuído. Sua tia costumava usar muito essa expressão. Parecia gostar dela.

Pessoas como vc são fáceis de se induzir. O que eu fiz durante toda a minha vida que não dediquei tempo a fim de abrir seus olhos? O fato é que me afeiçoei a vc de uma maneira avassaladora. Eu não me sinto o seu tio postiço. Sinto-me o seu pai, com todos os deveres que um pai devotado ao bem de sua filha precisa ter.

Fernando, ontem, veio me visitar novamente, após sair do seu quarto. Ele te tocou de forma repulsiva e vc não acordou. Antes de tomar da água que ele te oferece, Giulia, veja se há resquícios no fundo do copo. Não confie cegamente nele.

Por que eu vejo isso se não posso fazer nada para impedi-lo?

Ele tem vindo com frequência. Isso deve ter algum significado. Dessa vez, tomei coragem e olhei em seus olhos. Havia ternura neles. Ele me confessou que te amava e que não queria te machucar ou magoar. Ele chorou com suas mãos entre as minhas, confessando-se arrependido por ter feito algo que não quis revelar. Pouco pude falar. Tentei com todas as minhas forças, lembrar a ele tudo o que lhe ensinei quando mais novo, mas as palavras se perdem dentro de mim, então me irrito e acabo por me calar. Ele se aproximou de mim e, embora estivesse cheiroso - como sempre - e houvesse simpatia em seu sorriso, senti uma pitada de insanidade no brilho de seus olhos. O mesmo brilho que estivera presente no dia em que ele matara seus gatinhos. Ele se inclinou sobre o meu corpo, apoiando-se em seus braços, cada um deles ao lado do meu tronco. Dou graças por não ler mentes como sua tia porque quando nossos olhos se encontraram, eu me arrepiei dos pés à cabeça e uma questão absurda, a partir de então, dominara meus pensamentos. Agora, tal pensamento me foge à memória.

Que diabos de doença é essa que me faz esquecer de coisas que fiz ontem e mantem em perfeito estado as memórias de quando eu ainda era uma criança? Eu preciso me lembrar. Era algo de extrema importância. Algo que me remexe o estômago. Enfim, quando eu me lembrar, vou escrever aqui e vc vai saber de tudo e, talvez, possa impedir.

Fernando, quando mais novo, lutara contra suas más tendências. Eu presenciei várias de suas crises de arrependimento quando desprezava as meninas que se deixavam envolver por ele. Celeste dizia que nosso filho era carismático e que não poderíamos culpá-lo por isso. Celeste sempre o apoia, ainda que saiba o mal que lhe causa. As tais meninas ficavam miando como gatas no cio em frente ao nosso portão. Por que não se valorizam? Por que vc deixa que ele te trate dessa maneira? Reaja!

Eu o via, sem que ele me visse, sentado no chão, próximo ao porão, com algum pobre filhote de gato ou algum passarinho com as asas quebradas, após o que ele chamava de "Experimentos". Em dias bons, após um rompante de arrependimento, ele os libertava antes de maltratá-los diante dos olhos passivos de Celeste. O problema é que os dias, em sua maioria, eram ruins e, certamente, ele realizava seus 'experimentos' frequentemente. A dor alheia lhe causa prazer. Não creio em seu remorso.

Há algo nele que o impele ao desregramento. Algo que se alimenta de suas más tendências. Meu filho nascera com boa índole. Eu posso afirmar. Eu estava lá quando ele veio ao mundo. Eu o peguei em meu colo enquanto a enfermeira cortava seu cordão umbilical. Eu não tirava meus olhos encantados e aflitos de cima dele com medo de que ele fosse entregue aos pais errados, por engano. Eu o entreguei à sua tia quando o trouxeram limpinho, envolvido em sua manta como um charutinho com a cabecinha coberta por fios azulados de tão escuros.

Os dias seguintes foram um aglomerado de lágrimas, sorrisos, lamentações, explosões de ira, mais lágrimas de arrependimento e preocupações descabidas. Fernando fora um bebê que não dera trabalho algum. Dormia a noite inteira e, quando acordava choramingando, sugando seu dedinho, eu o levava à mãe para que ela o amamentasse. Ele sorria para mim e meu coração se enchia de júbilo. Eu, pai! Um sonho realizado. Tudo seria perfeito se Celeste não houvesse mudado. Ela passara a não suportar a presença do filho a tal ponto que se negava a amamentá-lo. Por conta disso, seu leite secara, logo, coubera a mim alimentá-lo. A mamadeira jamais substituiria o peito da mãe, no entanto, esses momentos de intimidade entre nós dois nos aproximara tanto que eu passava os dias contando os minutos para chegar logo a casa, tomar um banho e me sentar, com ele em meu colo, na cadeira de balanço onde contava-lhe histórias de minha infância até que ele pegasse no sono.

Seu sorriso era tão franco e inocente!

Ela, francamente debilitada, recostada à porta do quarto de Fernando via-nos de longe e, quando eu o oferecia a ela para que o acolhesse em seus braços, ela, de imediato, recuava como se houvesse uma cobra peçonhenta em meus braços. Eu havia lhe dito que poderia ser o início de uma depressão. Afinal, nesta época, as mulheres são tomadas por um turbilhão de sensações produzidas por excesso de alguns hormônios ou pela falta de outros. Ainda que eu lhe explicasse tudo e tentasse reanimá-la, ele se deixara abater e da cama não se levantava. Não o queria por perto.

"Tenho medo", era isso que ela gritava, expulsando a mim e ao filho, em meu colo, do nosso quarto. Foram dias tristes. Eu assumi o papel dela. Eu cuidei de Fernando. Eu me afeiçoei àquele bebezinho lindo, cujos olhos vívidos, já bastante claros e os cabelos da mesma cor dos de Celeste, me fascinavam. Então, após quase dois meses de seu nascimento, recebemos em nossa casa, um padre que eu não chegara a conhecer antes daquele dia, ao contrário de Celeste que o acolhera com um sorriso de entusiasmo em seu rosto pálido, os olhos rodeados por profundas olheiras. No terraço, Celeste e o tal homem conversaram por um bom tempo. Eu tentei fazer parte da conversa, no entanto, sua tia, educadamente, me pedira para cuidar de Fernando. Uma desculpa esfarrapada para deixá-los a sós. Se o homem não fosse tão feio quanto sinistro, eu não teria saído dali. Era tão alto que suas costas se curvavam para frente. Não havia cabelos em sua cabeça disforme, os dentes amarelados, os olhos negros e pequeninos estavam sempre à espreita como se um urso feroz estivesse prestes a saltar sobre ele. Sua batina preta colava-se às costas, ressaltando os ossos da coluna vertebral com um sério desvio na cervical. Seu sorriso era torto graças à cicatriz que se iniciava no canto da boca e seguia até a maçã do rosto macilento, coberto por uma oleosidade que se misturava ao suor. Seu aspecto doentio causava-me asco e compaixão. Sua voz quase inaudível sibilava quando viera ao quarto de Fernando, abençoá-lo. Eu disse que não havia necessidade, porém, sua tia, com um olhar, me fizera dar espaço ao homem cujos dedos alongados e unhas sujas tocaria em meu filho se eu não o tivesse segurado pelos punhos. "Não toque nele, por favor", com seriedade na voz e no olhar eu impus limites ao homem de preto cujos olhos percorriam o corpinho indefeso de Fernando como uma hiena cercando os restos deixados pelos leões. O homem de preto proferia palavras em Latim. Por muito pouco, eu não lhe dei um soco naquela cara ensebada. Por Deus! Nosso filho não precisa de um exorcista e sim de sua mãe! E Celeste não precisava de padres mas de um bom médico que a tirasse daquela letargia revoltante.

Coincidência ou não, enfim, minha Celeste havia retornado quando o padre partira, desaparecendo diante de nossos olhos aturdidos antes de cruzar o batente da porta da sala de estar. Evaporou-se com a fumaça negra de um pneu queimado. Ela sorrira como se tudo aquilo fosse absolutamente normal. Eu fingi não ter visto o que vira, embora ainda me lembre do horror que aquela imagem me provocara.

A partir daquele dia, Celeste ressurgira, radiante, confiante, pronta para exercer a Maternidade. Pronta para criar um menino doce, alegre, educado, porém, sem limites.

O que eu proibia, ela admitia. Discutíamos bastante por conta disso, mas eu a amava muito e, diante de suas palavras doces e de seus carinhos, eu nada poderia negar. Ela me tinha em suas mãos e sabia disso.

Da noite para o dia, eu vira Celeste desabrochar como uma rosa rara. Seus dias eram dedicados a ele e somente a ele. Logo, eu passei a ser um intruso entre os dois. Ela fazia questão de me manter distante dele enquanto realizava rituais exóticos em seu quarto. "Incensos e cânticos são para purificar sua alma", explicava ela enquanto espanava, no rosto de nosso filho, a fumaça espessa com a ponta de uma pena de avestruz ou que diabo de ave ela havia depenado. A criança tossia, mas ela persistia em seu objetivo que até então, eu desconhecia.

Esse ritual tão macabro quanto inútil perdurou por anos até que ele completasse sete anos de vida. Então, tudo mudou...

para pior.

O Fernando que vc conhece hoje é fruto das esquisitices de sua tia e do comportamento adquirido por ele desde os sete anos de idade.

Foi quando ela começou a procurar por uma amiga 'especial' para ele. Alguém que o completasse. Alguém que o a amasse a ponto de se esquecer de sua própria vida e se dedicar somente a ele. Eu jamais me atrevera a perguntar o significado da palavra "especial".

Eu, como Pilatos, lavara as mãos. Já não suportava as sandices de sua tia e seu apego fora do normal ao filho que passara a ser o centro de seu universo.

Este fora o meu erro. Deixar que a vida seguisse seu rumo e não reagir. Apesar do assombro de Fernando ao adentrar a igreja naquele dia em que nos encontramos pela primeira vez, sentia que a vida estava entrando nos eixos. Estávamos sentados na terceira fileira de cadeiras retangulares em madeira, diante do altar, quando notei a excitação de Celeste. Ela ansiava estar com vc assim que, durante a homilia, sua boneca (aquela que vc não largava de jeito algum) caíra no chão. Ela não percebera que eu a havia percebido. Segurou-me pelo braço, impedindo-me de ir ao encontro de sua boneca caída na nave da igreja, pois a própria Celeste quisera-o fazer. Ela foi ao seu encontro naquele domingo chuvoso e frio. Ela se agachou e tomou em seus braços a boneca e vc...aah! Vc a olhou com seus olhinhos tristes e a boquinha mais rubra que encantara não somente a ela como a mim também. "Enfim te encontrei!", sua tia dissera quando lhe estendera a mão e vc, sorridente e sempre falante, viera ao nosso banco, sentara-se entre mim e Celeste que a acolhera como mãe a partir de então. Vc falou durante a missa inteira e me fazia rir de seus questionamentos a respeito do Crucificado. Ainda me lembro de quando erguera a voz, pedindo que tirassem Jesus da Cruz.

"Ele tá sofrendo. Tirem Ele de lá!", fora o que vc ordenou, num repente. Alguns riram. Outros a reprovaram. Sua tia trocara de lugar com Fernando que passara a ficar ao seu lado dali por diante. Ele não a via como uma irmã. Ele a via como uma rival. Algo absolutamente normal para um garotinho de dez anos ante a sapequice de uma menininha de seis. O fato é que, a partir dali, vc jamais saíra de nossas vidas. Celeste fora modificando seus atos e, aos poucos, afastando-se de Fernando à medida em que se aproximava de vc. Ela realmente te amava e, creio que havia abandonado a ideia estapafúrdia de encontrar alguém 'especial' para Fernando, mesmo porque, ele parecia te odiar.

Parecia.

Até seus doze anos porque, então, ele fizera questão de te proteger dos seus ataques de "Terror Noturno". Vcs se tornaram inseparáveis e retirar Fernando de seu quarto durante aquelas noites infernais era algo incogitável. Celeste...sempre Celeste delegara a ele todos os direitos de estar contigo, ainda que eu visse em seus olhos, Giulia, um certo temor.

Mas, isso pode ter sido coisa de minha cabeça. Meu corpo já estava cansado de tanto trabalhar, pois estávamos prestes a inaugurar a primeira filial do "Italia Mia".

Olhando para trás, penso que, se eu não tivesse me ausentado tanto do lar, as coisas não estariam como agora se encontram. Eu fui omisso. Vira tudo acontecendo em minha própria casa e nada fizera. Eram apenas especulações o que hoje reconheço como verdade.

Vc era a garota "especial" a quem Celeste procurou por muito tempo. A garotinha de cabelos encaracolados que mudaria a vida de Fernando quando o momento certo chegasse.

"Padre Pietro não estava errado", Celeste, sonolenta, repetia quando os ouvia rindo em seu quarto, antes de pegar no sono.

Que o Padre Pietro queime no inferno.

E é para lá que eu irei quando abandonar esse corpo que definha a cada dia. Eu mereço. Por minha omissão.

Preciso me lembrar onde escondi as minhas economias. Estão tão escondidos que sequer eu as encontro. Celeste me avisava que dinheiro se guarda em banco e não debaixo do colchão.

Claro! Debaixo do colchão!

Vou esperar vc chegar e lhe contar tudo. E se puder me dar um forcinha, levante o colchão. O que achar, é todo seu. Vc não está sozinha, meu anjo. Ainda estou aqui, embora, por vezes, eu viaje.

O que houve ali, naquela adega, fora abominável! Se eu pudesse, teria acabado com aqueles monstros com minhas próprias mãos.

Eu até tentei

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 21/06/2020
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