'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 21

Last dance

Last chance, for love

Yes, it's my last chance, for romance, tonight

I need you, by me

Beside me, to guide me

To hold me, to scold me

'Cause when I'm bad

I'm so, so bad

So let's dance, the last dance

Let's dance, the last dance

Let's dance, this last dance tonight

(Last Dance - Donna Summer)

Eu não me lembro de ter visto meu tio tão bem disposto quanto hoje. Logo pela manhã, preparo seu café preto com um 'dedinho' de leite. No pão francês, branquinho, uma fatia generosa de queijo branco, do jeitinho que ele costumava comer quando ainda se sentava à mesa nos tempos em que éramos quatro. No entanto, contrariando todas as minhas expectativas, ele me pede, delicadamente, para lhe preparar ovos com bacon. "Quero entender o que veem de tão bom nisso!", proclama, levando a xícara de porcelana branca com florezinhas vermelhas à boca enquanto seus olhos me sorriem, deixando-me absolutamente inebriada, repleta de felicidade. É um milagre! Ele está aqui, diante de mim, tamborilando os dedos afoitos no tampo da mesa como quem aguarda alguma atitude. "Os ovos com bacon", avisa-me ele pondo sua mão sobre a minha para que eu sinta o seu amor por mim. "Não se apresse. Temos tempo". De imediato, eu me levanto, ainda tonta pela emoção, tropeçando no pé da cadeira, alcançando a geladeira. Fernando, logo atrás de mim, encostando seu tórax em minhas costas, toma de meus braços os ingredientes. Eu me viro, meio que incomodada e o vejo abrindo, lentamente, um sorriso que me faria corar há alguns meses. Agora tudo mudou. Não sei o que sinto e não quero pensar em nada além de cuidar do meu tio que parece entender cada palavra do jornal aberto à sua frente, ainda que o mesmo esteja de cabeça para baixo. Deus. Que dia estranho. Se for um sonho, não me acordem, por favor, por favor, por favor.

"Hummm!", ouço o som de aprovação de meu tio quando, enfim, ele prova do bacon que faz 'crack' entre seus dentes brancos enquanto ele revira os olhos, num êxtase gastronômico. Eu, particularmente, não gosto de bacon, embora nunca o tenha comido. Parece-me bastante gorduroso, porém, Fernando e seu pai se fartam durante uma conversa animada como dois grandes bons amigos o fariam. Um chute na boca do estômago é o que levo quando os vejo rir dos comentários que Fernando tece sobre o restaurante e seus clientes e tudo o que se passa entre os funcionários. Talvez, eu esteja com ciúmes ou inveja. Talvez não seja somente isso. A cena é tão perfeita que chega a me assustar.

- Senta mais perto, meu anjo. - Pede meu tio, arrastando a cadeira ao seu lado para junto de si, onde me sento meio que sem jeito. - Vc herdou de mim o gosto pela culinária.

- Que isso, tio! - Retruco , rindo e roncando ao mesmo tempo. Fernando ri do jeito que rio, o que me faria arrancar a laranja da fruteira e arremessá-la em seu nariz, caso eu não houvesse crescido o suficiente para me conter. - Quem me dera cozinhar como o senhor. - Digo, ruborizando. - Mais café?! - Arregalo os olhos, insegura, erguendo o bule, levando-o à sua xícara antes mesmo de ouvir sua resposta. Seus olhos brilham quando se encontram com os meus. Por um milissegundo, eu enxergo o medo. Paraliso. - Bosta! - Exclamo, mais nervosa do que irritada. O café transborda para fora da xícara. O pires se enche do líquido marrom e quente. A mancha na toalha se espalha como sangue, porém, Fernando se mantem macabramente calmo como um crocodilo à espreita de sua presa, cruzando as mãos atrás da nuca. Eu logo me ergo da cadeira a fim de limpar o estrago que fiz, mas - novamente - Fernando se adianta, sugando a umidade espalhando papel-toalha sobre o tecido antes branco. Ele, com a voz suave, diz que devo me acalmar e tomar do meu café e comer do pão que ainda, segundo ele, "Tá quentinho". Eu o obedeço, calada, tentando entender o porquê de estar me sentindo triste quando tudo parece estar voltando ao normal. Fernando leva o pai até a sala de estar enquanto termino de lavar a louça e arrumar a cozinha. Ouço, recostada à pia, a voz grave e bem disposta do meu tio e os risos de Fernando que se gruda a ele como uma goma de mascar usada. A água sai da torneira lavando minhas mãos. Isso me hipnotiza, tirando-me dali por instantes. Minha cabeça se esvazia. Meu coração se comprime. Inspiro profundamente enquanto fecho a torneira. A água para de cair. Uma lufada de vento morno chega às minhas costas através da porta aberta que dá para os fundos da casa.

"Acorda."

Um sussurro. Os pelos de minha nuca se eriçam, então tremo a cabeça num gesto sem controle. Meu coração dispara, embora eu não sinta medo. De esguelha, vejo um vulto que passa por mim e rodeia a mesa como uma criança travessa, evaporando-se diante dos meus olhos incrédulos. Ofegando, chego à sala onde vejo pai e filho sentados, um ao lado do outro, afundados no sofá em veludo verde musgo. Olho para os dois que me lançam olhares completamente antagônicos. Em um, eu vejo a Luz. No outro, a Treva.

***

- Sua tia gosta da Scarlett apesar de negar. - Confidencia ele devorando as pipocas que se espalham pelo edredom de sua cama onde estou deitada ao seu lado. As mãos trêmulas, a boca aberta, ávida por falar como se ele não pudesse perder um segundo sequer de sua milagrosa recuperação. Ele usa o verbo no tempo presente, no entanto, ele já não está entre nós. - Sua tia sempre diz gostar mais de Melanie. - Continua ele, os olhos vidrados na tela da TV. Estamos assistindo, pele enésima vez, ao filme "E o vento Levou", seu predileto. - Mas há mais em sua tia, a fúria de Scarlett O'Hara do que a doçura e a subserviência de Melanie, embora Celeste seja doce quando quer ser. - Diz ele, num tom nostálgico, ruminando, alheio à minha presença e à do filho que não nos deixa a sós por um segundo sequer, sentado num dos cantos do cômodo ao qual chamávamos de "Sala de Cinema" antes de se transformar no escritório de Fernando que se espalha na poltrona de couro com o espaldar alto. Ao contrário do pai, seus olhos incidem sobre mim. Um olhar cínico, o corpo relaxado, a cabeça apoiada na mão que despenteia o cabelo. - A boa e meiga Melanie. - Insiste meu tio, despertando-me do transe a que fora induzida, então, volto minha atenção ao tio que baixa o tom de voz por achar que sua esposa falecida, a qualquer momento, poderá cruzar o umbral da porta, discordando do que ele diz em seguida, aguçando minha curiosidade.

- Sua tia parece frágil, mas não é. É forte e determinada. - Declara ele, baixando os olhos, as mãos catando os piruás, levando-os à boca onde são massacrados por seus dentes fortes e sadios graças a mim que os escovo, ao menos, quatro vezes por dia. - Uma Scarlett O'Hara impulsiva, reativa, vingativa. - Vou arregalando meus olhos, inclinando meu tronco para trás, surpreendida com o que ele vai falando sem pensar. - Não mede esforços para atingir seus objetivos. Principalmente quando é para o bem dele. - Erguendo a cabeça, meu tio lança um olhar frio ao filho que não se incomoda já que abre um meio sorriso, cruzando os pés sobre a mesinha de centro, retangular, em madeira maciça. Uma provocação já que sou eu quem lustra o local onde ele apoia a porra de seus coturnos sujos. - Vc sabe o que ela queria, não sabe? - Meu tio quer saber. Fernando encolhe os ombros, em silêncio. - Vc sabe! Sabe sim! - Meu tio se exalta, repetindo por dezenas de vezes a mesma acusação como que possuído por um bêbado encrenqueiro daqueles que buscam por brigas onde quer que esteja. - Diz que sabe!

- Tio, para! - Imploro, com a mão em seu queixo, virando seu rosto para mim. Quero que me veja sorrir e que volte à realidade. - Essa é a parte que o senhor mais gosta. - Aponto o indicador para a tela borrada de vermelho e rosa, num fundo azul, onde Scarlett, faminta, devora uma cenoura com raiz e tudo. - Olha pra mim. Tá tudo bem. - Sinto-me ridícula ao copiar o que as personagens dos filmes costumam fazer, mas, ainda assim, o faço. - Shhh. - Cochicho em seu ouvido como um pneu esvaziando-se, afagando nervosamente seus cabelos. Seus olhos esbugalhados encontram os meus. - Para, tio. Por favor. Se acalma. - Seu olhar vai da raiva ao espanto e do espanto à desorientação numa fração de segundos quando beijo sua testa e murmuro. - Eu tô aqui. Não vou deixar que nada aconteça de ruim ao senhor. Eu tô aqui. - Ele se aquieta, recostando-se à cabeceira da cama. Eu o acompanho, aconchegando-me em seu peito. O coração descompassado, a voz soturna que vibra em meu ouvido.

- Não é comigo que vc deve se preocupar. - Avisa ele, cerrando os olhos, mergulhando em seu mundo silencioso e solitário. - Vc é boba, filha. Muito boba. - Ele abana a cabeça num desconsolo ainda de olhos fechados. - Se acha esperta, mas é boba. Muito boba.

- Tio. - Choramingo, magoada, afastando-me dele, engolindo em seco, os olhos se enchendo d'água. O nariz esquentando como o bico de uma chaleira no fogão. - Não fala assim. - Desvio meus olhos tristes a Fernando que franze as sobrancelhas num claro sinal de reprovação. De qual lado ele está? Do meu ou do lado de seu pai? Não faço ideia porque logo minha visão se embaça. Elevo o queixo, piscando diversas vezes, segurando as lágrimas quando ele, de súbito, se ergue da poltrona, ajeitando a blusa social, penteando os fios do cabelo com os dedos e, com sua habitual irreverência, beija o topo da cabeça do pai que o segue com um olhar repleto de revolta até que ele cruze o batente da porta.

- Vc não vai conseguir. - Declara, entredentes, meu tio enquanto Fernando gira nos calcanhares e retorna. Eu conheço aquele olhar bizarro, a inexpressividade em seu semblante, a raiva contida. Num repente, ele se inclina em minha direção, beijando-me nos lábios. Uma demonstração patética de intimidade que estamos longe de ter. Ele sorri, afastando-se de costas. - Não vai! Não vai mesmo! - Adverte meu tio, deixando-me confusa. Que porra é essa que Fernando deve ou não saber? Vai ou não fazer? Sem nada responder, mantendo o sorriso um tanto sarcástico no rosto, ele pisca para mim, enruga a testa, abrindo bem aqueles olhos azuis, imprimindo leveza ao semblante quando, esclarece.

- Não se preocupa, amor. Se precisar demorar, deixa que eu cuido dele.

***

Foi ele, o filhinho do papai, quem me dispensou, logo, vou aproveitar e deixá-los a sós. Nesta noite, não vou sair feito louca do 'California' e tomar um ônibus super mega lotado somente por chegar a casa mais cedo. Não. Não desta vez. Fernando, o filho prestativo, atencioso, valoroso e sempre presente, hoje, fará as honras. Talvez, daqui por diante até banho ele dê em seu pai ou o barbeie a cada três dias respeitando a sensibilidade de sua pele ou ainda troque a sua fralda quando ele gritar por seu nome, praguejando, usando de palavrões que até eu mesma desconheço, em uma de suas crises de mau humor. Ah, não! Imagine! Ao lado do filho, o pai se alegra. Afinal, o bom filho a casa torna e, certamente, Fernando haverá de se lembrar de todos esses detalhes já que presenciara a tudo durante esses anos de uma displicência absurdamente desumana.

FODA-SE!

Eu vou caminhar devagar e curtir as vitrines das lojas que passam por mim como borrões quando estou com pressa, ou seja, sempre. Eu sempre quis comprar esse sapatinho plataforma, mas estou economizando pra fugir com meu tio dali. Ah, diabos! O que digo??? Agora que tudo parece ter voltado ao seu devido lugar, meu tio não vai mais querer sair do lado de seu filhinho companheiro, cachaceiro, miserável.

- Quanto é? - Indago à vendedora da boutique onde não ouso pisar. O interior dela é quase tão chique quanto o vasto salão do 'Italia Mia' e a mocinha que está me olhando de cima a baixo parece ter algo contra mim porque retorce seu cenho como se estivesse olhando para alguém sem pés. Alguém incapaz de usar a porra da sandália de corda, com salto plataforma, trançada até o tornozelo. - O preço, meu amor??? - Repito carregando nos 'erres' para que ela erga a cabeça e pare de olhar a barra do meu vestido em godê, com alças, branco, um pouco acima dos joelhos. Não sei porque hoje me bateu aquela vontade de ser feminina. Uma vontade que havia sido jogada a sete palmos e enterrada junto à minha juventude e ao prazer em viver. Talvez, quem sabe, tenha sido pelo ma.ra.vi.lho.so filho do meu tio? O grande mega bluster hiper Fernando, o filho pródigo. - QUANTO?! - Arregalo os olhos prestes a voar sobre ela que dá dois passos para trás, reagindo à minha mão levada, dramaticamente, ao peito quando a confronto, com a voz esganiçada. - Tudo isso por um par de sapatos??? - Ela ergue uma das sobrancelhas, vitoriosa, recostando-se ao balcão, ajeitando o canto das unhas, um sorriso irônico nascendo no canto da boca besuntada com 'Vermelho Excitante'. Ridícula! Acha que não sei onde mora ou quantas conduções tem de tomar até chegar aqui? Acha que não sei que ganha por comissão e que essa roupinha maravilhosa que está vestindo não é sua, porém da loja??? - Pegue dois pares. - Ordeno, mantendo minha voz fria, embora minhas narinas estejam infladas. Vou dizendo enquanto lhe mostro o indicador e o polegar. - Um preto e um rosa!

- Rosa não temos. - Resmunga ela quando já estou acomodada à cadeira desconfortável em frente a um espelho reclinável, posicionado no chão da loja.

- Então me traga um violeta, azul, bege, exceto...- Dou uma pausa, fuzilando-a com meu olhar de desprezo, o dedo em riste. Então, eu bufo ouvindo as palavras saírem por entre meus dentes trincados. - O vermelho. Odeio vermelho. - Atesto, mirando sua boca tão carnuda quanto a minha. - Vai ficar aí parada? Não precisa da comissão? - POR SAN JUAN DIEGO! Sei que estou sendo grosseira e não gosto disso, no entanto, há momentos em que ser grosseira é a única opção. - O bege fica na bolsa. - Explico, num tom mais amigável após ter pago pela mercadoria e lhe deixado uma boa gorjeta. - Porque o preto, meu bem, vai nos meus pés a.go.ra!

***

Saio esfuziante da loja. As tiras pretas enroladas em minhas pernas até um pouco abaixo do joelho.U-AU! Pareço uma deusa grega prestes a castigar um de seus mortais viris com quem ela se deita. As coxas de fora, a maresia que me convida a passear na orla. Sinto-me radiante! Vou me requebrando ao som da música que sai dos meus fones de ouvidos. Estou mega satisfeita por ter comprado algo para mim, embora eu me pergunte para quem eu quero me mostrar. Eu sei, eu sei. Eu devo querer ficar bonita por mim e para mim, mas não funciona assim. Não mesmo! ACORDA! NÃO ROLA! Eu quero viver intensamente agora que meu tio está bem. Eu mereço viver intensamente um grande amor. Um amor de verdade, não o que conhecera até agora. Não um amor que me escraviza, me entristece, me põe para baixo. Quero um amor maior, como diz a música. "Amor maior que eu!". Quero rir ao lado dele. Quero rir com ele, dele, por ele. Quero conversar até o dia clarear. Quero que ele me beije e me deixe sem fôlego. Quero que ele me ame a ponto de não precisar transar comigo para se satisfazer. Quero que ele me ame a ponto de aceitar e se sentir feliz, na cama, por estar comigo, mesmo que as únicas partes do meu corpo que ele veja, fora das cobertas, sejam a minha nuca arrepiada e os fios de meu cabelo atrapalhando sua visão. Quero pegar no sono com ele sem medo de acordar com seu membro dentro de mim como um ser doentio, psicótico, sem alma ou coração. Eu quero amar e ser amada. Ai, eu quero...

Quero lavar meu rosto porque estou chorando em frente à fachada espelhada de algum restaurante ou boteco...sei lá. É tão fofinha a entrada de tijolinhos num tom de cinza, a porta da entrada principal de madeira, num arco, rústica. Espero que exista um banheiro nessa pocilga. Não posso continuar a ter esses chiliques de menininha rica desprotegida que nada conhece da vida. Eu sou a porra de uma ex-prostituta, streaper, dançarina 'number one' da boate mais procurada por homens tão imbecis quanto carentes desta cidade! DIABOS! Eu sou "Tiffany-Twisted" do "Hotel California", meu bem! Eu não choro, não sinto, não sofro. Eu sou um robô programado para dançar, tirar a roupa e chorar às escondidas quando sou usada pelo verme do 'Filho Pródigo' que agora deve estar comendo, cantando ou assistindo a algum filme ao lado de seu pai. MEU TIO!!!

- A vida é uma merda! Eu não quero a porra dessa sandália! - Decido ao sair do banheiro. O rosto lavado, o tronco curvado, agachada ao lado da cozinha do restaurante que, a julgar pelo fraco movimento de garçons deve estar fechando suas portas. Eles se despedem uns dos outros, passando por mim, desconfiados, como se jamais tivessem visto uma mulher em frente à porta do banheiro, acocorada, enraivecida, lutando contra a porra do cadarço que não quer se desenroscar, deixando-me livre das tiras de uma deusa falida. Uma Medusa derrotada. É o que sou. Uma cópia barata de Medusa! Aquela que fora castigada por não ceder aos caprichos de um deus tirânico e ninfomaníaco. Medusa que fora castigada por outra deusa louca, egoísta, mesquinha, invejosa, filha-da-puta que a condenara à solidão pelo resto de sua vida imortal, transformando-a num monstro com cobras na cabeça e dentes de javali. - PRO INFERNO! - Ergo-me, de súbito, após dar um laço no nó que não desatou. - Donna Summer! - Palpito, arregalando os olhos, ao ouvir os primeiros acordes da música que aprendera a gostar desde pequena, ainda na casa de meus pais...os biológicos. - "Last Dance". - Sorrio, ao identificar a canção que se inicia, devagar, como um lindo sonho de verão e, se intensifica, aos poucos. - "Last chance for love". - Canto com ela, caminhando, vagarosamente até a pista de dança minúscula porém aconchegante que me chama para si, com suas luzes coloridas incidindo sobre o piso liso e desgastado. Há espelhos nas paredes ao meu redor por onde enxergo meu reflexo mergulhado na penumbra. O expediente está terminando. Já não há clientes ou garçons. Logo adiante, uma senhora conversa com a vassoura que varre parte do assoalho em madeira. Preciso ir embora antes que me expulsem daqui, no entanto, a música me prende a esse lugar e meu coração bate mais forte a cada nota mais aguda que sai da possante laringe da diva dos anos 70. Dancei muito essa música quando adolescente. Dancei diante do espelho do quarto que meu tio reformara somente por mim porque era de seu desejo que eu me tornasse uma bailarina e cá estou eu, como uma árvore ao sabor do vento, inclinando minha cabeça de um lado para o outro, leve, solta, aguardando o momento em que Donna 'bota pra quebrar', fazendo com que todos venham até a pista para a 'Última Dança"; o que, obviamente, não vai acontecer, mesmo porque já não há mais uma alma viva na casa além de mim e da senhorinha que apoia as duas mãos no cabo da vassoura e o queixo sobre as mãos, observando-me à distância. Envergonhada, eu paro de me balançar feito um coqueiro sob a ação de uma brisa mansa. A senhora desperta de seu transe e volta a varrer, logo, eu volto a ser um coqueiro. As luzes da pista se apagam. Donna Summer pede que seu amor a abrace. Que a controle porque, quando ela quer ser má, ela é má, meu bem. E eu também porque a parte dançante já se iniciou.

Esqueço-me de onde estou e simplesmente jogo meus quadris de um lado para o outro, ritmicamente. Animada, elevo os braços e, por fim, meu pescoço gira, pra lá e pra cá, freneticamente. Meu cabelo solto cobre, como uma cortina que se abre e se fecha sem controle, meu sorriso de uma felicidade passageira. Isso é insano! Mal sei como vim parar aqui ou porque vim parar aqui.

- Oooooh I need you! - Uivo a letra, movendo os lábios. Eu não só danço. Eu danço e interpreto. Aqui, eu sou a versão comportada de "Tiffany-Twisted". - Beside me, to guide me! - Aponto o indicador para o meu reflexo no escuro enquanto apoio a outra mão na cintura e rio de mim mesma imitando-a, de olhos fechados. Não é como estar no palco da boate diante de muitos homens. É como costumava ser quando eu ainda não havia sido tocada. Sou transportada à minha adolescência, vivenciando cada batida da canção em uníssono com as batidas do meu coração que vibra intensamente. As luzes coloridas voltam a piscar. É quando abro os olhos e o vejo, logo atrás de mim. Um vulto. Um corpo esguio sem rosto. - Let's dance. Last chance for love. - Digo a ele através do espelho sem parar de me mover como uma minhoca convulsionando. É fantástico! Não sinto vergonha dele. E por que teria? Ele estende seu braço para mim. Um convite? Uma chance? Seu rosto.Viro-me para ele, de súbito. Consigo ver seu rosto azulado. Um sorriso encantador. Mais alto do que eu. Muito mais. Mais alto do que Fernando. Por que diabos estou pensando no quão alto ele é? Pego ou não pego em sua mão acima de minha cabeça.

- O que quer?! - Grito mais alto do que a cantora que me incita a girar, a cantar, a amar. - Não entendi! - Grito uma segunda vez. Ele repete o mesmo gesto com a mão direita próxima à minha testa. Isso me irrita porque não leio pensamentos. Seria mais fácil se ele me dissesse o que quer, ao invés de fazer círculos no ar com o indicador.

- Segura a minha mão. - Diz ele, inclinando-se para mim. Uau! Sua barba por fazer me faz cócegas. - Vamos dançar!

- Não! - Exclamo, rindo, o corpo denunciando minha insegurança e excitação quando ele encosta a ponta de seu nariz afilado em minha bochecha. A voz grave sussurra.

- Confia em mim. - Penso que vou entrar em combustão instantânea assim que nossas mãos se encontram. - Vc consegue. - Incentiva-me ele.

O Tempo para e a magia tem início.

Ele me faz girar em torno de mim mesma por quatro vezes seguidas. Eu me movo em câmera lenta. Ele também. Já não há mais espelhos ou luzes. Giro na ponta dos pés como nas aulas de Ballet. Seu rosto colorido é o meu ponto de referência a cada pirueta. Seus olhos piscam lentamente enquanto abre um sorriso cheio de ternura. Donna Summer para de cantar e o único som que ouço é o do meu coração ribombando em minha garganta. Nossos corpos estão unidos. Ele me acompanha, movendo-se com uma graciosidade máscula, forte, segura, então percebo que seu coração está tão acelerado quanto o meu. É ele quem me guia. Suas mãos se unem acima do meu bumbum. As minhas se unem em sua nuca. Aspiro seu perfume, retesando meus músculos. Sei que estamos dançando, no entanto, não ouço nada além dos meus pensamentos. Ele me puxa para si. Sorrio sem que ele me veja porque estou gostando de estar bem próxima a ele. É uma sensação que jamais sentira antes. Um mergulho num mar bravio. Sua mão me alcança. Estou a salvo em seu bote. O sol brilha lá no alto. O vento fresco me seca. Se eu puder fazer um pedido, peço que essa sensação jamais termine. A paz se mistura à ansiedade com perfeição. Por quanto tempo ficamos dançando sem música? Não faço ideia. Só não deixem que isso pare, por favor por favor por favor. Estamos dançando. Fernando e eu jamais dançamos em todos esses anos. Estou corando. Creio que ele está sentindo o 'bum bum bum' do meu coração contra o seu peito. Por que ele continua a dançar sem música? De onde ele surgiu? Eu o conheço? Eu morri e estou no céu. Vc é um anjo? Não me solta. Por favor, não me deixa! Eu não quero acordar.

- Uau! - Exclamo surpresa e um tanto decepcionada por ter acabado. Minha cabeça pendendo para trás, meu tronco em seu braço, nossas mãos unidas, como setas apontando para o teto, minha perna esquerda estendida, atrás da direita como num passo de Tango. - Por San Juan Diego. - Murmuro quando ele me traz de volta, num solavanco de tirar o meu fôlego. Quase engulo parte de meu cabelo que açoita a minha face. Estou ofegando. Não pelo cansaço, mas pela emoção. Estou tão confusa. Mal sei o meu nome.

- Giulia? - Pergunta ele, encostando sua testa na minha. Sua boca. Hummm...deve ser macia; seu beijo, um estouro!

- Como sabe??? - Interrogo-o, descolando seu corpo do meu. Eu me odeio por isso, mas é preciso. A figura do meu tio me veio à mente. Sinto-me egoísta por estar aqui enquanto ele deve estar lá em casa, à minha espera. - Como sabe??? - Estreito os olhos, desconfiada, as mãos enrolando como corda, meu cabelo em total desalinho, amarrando-o num coque mal feito no topo da cabeça.

- Aqui. - Diz ele, deslizando o dedo abusado do pescoço até o ossinho da minha traqueia. - Se este não for seu nome, é o da sua filha. - Argumenta ele, observando o colar de ouro com meu nome em itálico. Reviro os olhos e tento esconder o quão patética eu sou em pensar que ele lê pensamentos.

- Claro! - Atesto rindo, de cabeça baixa. - Sou Giulia. E vc? - Ele toca na ponta do meu queixo, fazendo-me olhar em seus olhos. Ainda não consigo distinguir a cor deles, mas, parecem-me castanhos.

- São acinzentados.

- O quê? - Dou um passo atrás, ressabiada.

- Os olhos. - Explica ele, enrugando a testa, encolhendo os ombros. A senhora da vassoura avisa que já está indo embora. Ele a atende, assentindo com a cabeça e volta a olhar, curiosamente, para mim.

- Que olhos??? - Surpreendo-me com sua expressão de uma serenidade afrontosa.

- Os meus!

- Como sabe??? - Dou um passo à frente, os punhos cerrados.

- Seu nome?

- Não! - Reviro os olhos, enfadada, irritada. - Dos olhos!

- São meus. - Replica ele, soltando uma sonora gargalhada. - Isso é papo de bêbado. - Complementa ainda rindo.

- Diabos! Quem é vc? O que quer de mim? Como sabe que pensei na cor de seus olhos??? - Dou mais um passo em sua direção. Nossos lábios estão bem próximos. Seu perfume é amadeirado. Seus dentes, brancos e bem alinhados. - O que quer de mim? - A voz sai fraca, lenta. Quase um suspiro.

- Quero o seu bem. Somente o seu bem.

- Seu nome...- Aguardo, amedrontada. - Me diz o seu nome. - Alheio ao meu medo, ele estende seu braço. O polegar e o indicador tocam meu lóbulo esquerdo. Sinto-me fraca. Ele massageia a minha orelha. Isso me leva a algum lugar longe daqui. A luz da pista se apaga novamente. As luzes do restaurante se acendem por alguns instantes. Tempo suficiente para enxergar suas pupilas se dilatando. São, de fato, acinzentados os olhos que me encaram incisivamente quando as lâmpadas fluorescentes se apagam de vez. Fecho os olhos. A escuridão. O rugido do vento frio. O uivo de um lobo solitário. Vejo-me no topo de um penhasco. A barra do meu vestido longo e branco, suja de lama. Meus cabelos pesados e fartos são soprados para frente, cobrindo a minha visão. Uma súbita vontade de chorar. Um aperto no peito. Uma mão que se desprende da minha. Ouço um grito de horror. Horrorizada, percebo que é o meu próprio grito. Um último olhar. - Eu te conheço? - Ele me segura em seus braços quando minhas pernas bambas não me querem sustentar. - Eu te conheço. - Afirmo com o resto de voz que me sobra.

- Sim e não. - Em seu colo, enlaço seu pescoço. Seu olhar é incrivelmente límpido, penetrante.

- Não entendi! - Rosno, entredentes. - Conheço ou não conheço???-- Ele faz que sim com a cabeça e eu não consigo tirar os meus olhos de sua boca. Seu beijo deve ser um estouro. Eu já disse isso. Eu sei. É que, no momento, nada mais me ocorre além da vontade em experimentar o seu beijo. - Fala logo! Sim ou não???

- Já disse que sim. - Ele é tão sério e decidido. Gosto disso em homens. Por que meu coração está doendo, cheio de culpa e saudade? Por que eu estou em seu colo? Por que eu sinto que preciso te pedir perdão? - Não precisa. - Cochicha ele em meu ouvido e eu arquejo de espanto quando junto uma peça a outra, implorando.

- Seu nome!

- Carlos. - Diz ele, beijando minha bochecha enquanto afundo minha cabeça no espaço morno entre seu pescoço e ombro. Quero dizer tanta coisa agora que finalmente o encontrei, mas estou perdendo os sentidos, a razão. A noção de Tempo e Espaço me largaram faz tempo. Só quero estar em seus braços onde encontro o perdão pelo mal que desconheço ter feito. É tão profundo, dolorido, antigo. Já não sou mais eu quem suplica.

- Perdão.

- Perdão? - Caminhando vigorosamente, ele abre um sorriso tímido. Meu sangue borbulha quente, subindo do estômago até a garganta, logo, ele me aperta contra o seu peito como se eu fosse algo valioso do qual ele não quer se apartar. Os dois primeiros botões da camisa branca, abertos. A voz rouca pergunta. - Por quê?

- Não sei. - Respondo contra sua pele, minhas mãos em sua gola, meus olhos pesados. - Não sei. - Repito, apagando-me, aos poucos, como a chama de uma vela. A sensação de plenitude me invade quando ultrapassamos o portal em arco. Ele permanece em silêncio, mas seus lábios roçam o meu pescoço. Eu o permito. Eu o desejo. Não sei aonde ele vai me levar e, sinceramente, não estou preocupada porque o que está acontecendo não é por acaso. Não é estranha a impressão de se conhecer alguém que jamais vimos antes? - Preciso ver meu tio. - O cheirinho de Sândalo invade minhas narinas, o que me deixa tonta, minha voz entaramelada, repete por repetir, pois já estou sumindo. - Eu preciso...ver...meu tio.

- Eu vou te levar. Fica tranquila. - É bom ouvir a voz dele. Ela me acalma. Sinto que posso descansar em seus braços. "Estou segura". Este é o último pensamento que me ocorre antes de cerrar os olhos, porém, os ouvidos ainda estão atentos ao que ele diz, titubeante. - Não hoje. Hoje não. Amanhã, eu te levo. Hoje não. - Ainda tento recobrar a lucidez. Afinal de contas, eu não bebi e não fumei. Por que diabos estou tão mole assim? Eu preciso voltar. Eu sei que eu preciso. - Giulia, amanhã. - Fora do meu corpo, eu ouço com perfeição o tom de sua voz. Há compaixão, seriedade e uma boa pitada de tristeza. - Amanhã. Eu sei que vc o ama, mas há coisas que não podemos mudar. Apenas, aceitar. - Eu me vejo dentro de seu carro, no banco do carona. Estou dormindo como um anjo quando ele, bate a porta do seu lado, lançando ao meu corpo meio que desconjuntado, um olhar, no mínimo, enigmático. - É a vida. -Sussurra ele, pesaroso. - É assim que deve ser.

'É assim que deve ser'.

Que diabos ele quis dizer com isso?

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 14/07/2020
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