´É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 23

O mio Signore

In questo mondo

Io non ho avuto tanto

Eppure sono contento

Sono contento

O mio Signore

Io ti ringrazio

Di ogni cose che ho avuto

Grazie per tutto quello

Che tu hai fatto per me, per me

Però se questa sera

Posso farti una preghiera

Fa che domani

Fa che domani

Lei ritorni da me

(O Mio Signore - Mario Baez)

Era ele quem me levava às aulas de Ballet. Todas as segundas, quartas e sextas, ele me levava às aulas de Ballet, mesmo que precisasse largar o restaurante nas mãos de Giuseppe, chegando à nossa casa onde eu o esperava, aflita e confiante, dentro do meu collant regata e saia curta, as coxas cobertas pela meia fina, as polainas caindo sobre as sapatilhas de ponta e um coque bem caprichado, a rede adornando os fios tão esticados pelas hábeis mãos de minha tia, que chegavam a emprestar aos meus olhos um ar oriental. Tudo comprado por ele, num tom de rosa, claríssimo, porque essa era a cor oficial das meninas bem comportadas da classe na qual meu tio me inscrevera. Ainda que eu tentasse me parecer ou me portar como elas, eu não conseguia. Eu destoava de todas e de tudo e me sentia um nada.

Era ele quem me levava às aulas todas as tardes e me aguardava até que a professora, após longas duas horas, nos liberasse. Era ele quem me aguardava de braços abertos, sorriso nos olhos, orgulhoso, chamando-me de filha. Fora o meu tio quem me incentivara a dançar e a não me importar por ser diferente das outras. "Elas não têm raiva de vc", explicava-me ele enquanto caminhávamos, de mãos dadas, pela calçada. Seu tronco se curvava para a boca cochichar em meu ouvido. "Elas te admiram". Vendo-me abrir um sorriso de incredulidade, ele repetia, balançando a cabeça. "Sim. Elas te admiram. Vc dança como um anjo, Giulinha. Vc dança como um anjo!"

Ainda jovem e saudável, ele se antecipava a mim, abrindo a porta do motorista, já que a outra porta do velho Chevette emperrara para nunca mais se abrir novamente, o que, para ele, era motivo de risos estridentes. Arrastar-me até o banco do carona sem encostar no câmbio de marcha era mais uma das muitas brincadeiras que ele inventava somente para me ver sorrir. Meu tio sempre fazia de tudo para me ver sorrindo e quando, inevitavelmente, eu chorava por sentir falta de minha mãe biológica que se esquecera de mim como se eu nunca tivesse feito parte de sua vida, era ele quem se aproximava sem nada falar porque compreendia os motivos de minha tristeza. Então, ele me abraçava, recostando sua cabeça à minha. Ele tentava esconder e até conseguiria se suas lágrimas não escorressem por seu rosto, os pingos mornos tocando a pele do meu ombro.

"Eu sempre estarei ao seu lado", prometia-me ele, entrelaçando suas mãos às minhas. Em seu rosto, um sorriso triste, nos olhos úmidos, o amor incondicional que me fazia parar de chorar e voltar a sorrir porque o meu sorriso o fazia feliz. Éramos idênticos, inseparáveis. Por tantas vezes eu adivinhava o que ele sentia mesmo que ele nada falasse. Por tantas vezes, bastava que ele me olhasse para compreender os meus sentimentos. Nossa sintonia causava ciúmes na tia que se retraía enquanto eu me afastava. Eu os amava mais do que a mim mesma. Quando ela se foi, sobrara a metade de mim

"Eu sempre estarei ao seu lado".

Agarrara-me àquela promessa durante todos os dias de minha vida, desde que entrara "de mala e cuia", em sua casa, em sua vida, deixando o meu antigo lar para trás.

Minha tia era a magia, os sonhos, a insensatez, a fragilidade. Apesar de me amar, eu pressentia sua predileção pelo filho, o que era absolutamente normal, ainda que doesse um pouco. Mas a dor de ser preterida era logo aliviada por meu tio que, como prometera, estava sempre ao meu lado.

Meu tio era a força, a confiança, o companheirismo. A segurança, a certeza inabalável. A comunhão de almas. Ao seu lado, eu me sentia imbatível. Aos seus olhos, eu era a bailarina que encantaria o mundo inteiro mesmo após ter largado tudo quando seu filho se intrometera bruscamente em meu caminho, afastando-me do amigo e professor, matando o meu sonho e o do meu tio também. Ainda assim, ele acreditava em mim. Ainda assim, seus olhos me sorriam quando a boca já não podia mais pronunciar o que o seu coração gritava. Havia vida em seu olhar. Havia dor, tristeza, amor, compaixão. Em seus olhos, eu me via refletida. Nos piores momentos, quando ele perdera a noção do Tempo e Espaço ou de quem eu era, eu ainda me via em seus olhos, nos raros instantes de lucidez.

A mesma lucidez que vira na noite em que o deixara com seu filho. Com uma pontada de ciúmes, eu me despedira de seus olhos que me sorriram pela última vez. Se eu pudesse voltar no Tempo, eu gravaria aquela imagem em minha memória para nunca mais me esquecer. Para não ter de me lembrar de como eu me arrastei até a beirada de sua cama, de tocar em sua mão gelada sobre os lençóis perfeitamente esticados. O pijama de listras azuis, o pescoço rijo, a boca semiaberta, o olhar fixo no teto.

Eu o abracei e chamei por seu nome. Eu gritei, implorei. Eu o estapeei. Minha mão voltara a tocar em sua pele fria, lisa como cera. De nada adiantaram os socos que dera contra seu peito. O coração não queria voltar a bater. Eu espantei as Sombras que o queriam levar. Eu as espantei e cuidei dele até o dia amanhecer. Ele não gosta de dormir no escuro. Então, dormira com ele. Eu lhe contei como havia conhecido meu príncipe e que seu beijo era doce. Esperei por seus olhos que não sorriram. Seus olhos. Quero tanto esquecer de seus olhos. Não os de antes, mas os de quando eu o encontrara naquela noite. Lutara contra Fernando e aquele bando de carniceiros que ocuparam o quarto, sujando o piso com seus sapatos imundos. Meu tio não pode ficar perto de sujeira. Ele não gosta de sujeira assim como eu. Meu tio e eu somos iguais. Fernando sabe! Ele é tão parecido comigo que penso ter nascido do amor entre a tia e ele. Talvez tenha sido assim. Somos idênticos, meu tio e eu...

É óbvio!

Ele é o meu pai!

Eles tiveram que me arrastar até o meu quarto. Fernando gritava para que eu parasse de berrar. Fernando gritava que ele havia partido. Burro, louco, idiota. Meu tio não partiria sem me dizer adeus. Estúpido! Somos inseparáveis. Eu deveria ter sentido. Eu deveria ter pressentido. Uma picada no músculo do braço. "Filho da puta!", xingo o médico da família que me aplicara um sedativo. "Faz ele voltar! Faz ele voltar!", rosno como um demônio, os dentes prontos a abocanhar quem se aproximasse de mim ou de meu tio, inerte sobre a cama. Minha visão fora perdendo o foco. Fernando ordena. Seus amigos obedecem. Deixo-me arrastar, vencida pela dose cavalar contida na seringa. Quero me mover e não consigo. Vou choramingando, os olhos fechados, até o quarto onde me jogam sobre o colchão. Agarro-me ao travesseiro, perdendo os sentidos.

Aqueles olhos não eram os dele. Não eram os olhos que me viram crescer. Não eram os olhos que me incentivavam a dançar. Não. Não eram os olhos que choravam por mim tampouco os que me faziam sorrir.

Aqueles olhos não eram os do meu tio. Os olhos enevoados, desmesuradamente abertos como se estivesse com medo. Impossível! Meu tio era destemido e forte. Era ele quem me protegia durante as noites de trovoadas. Seus olhos não estavam ali. Meu tio não estava naquele corpo. Não. Meu tio não. Não me lembro de ter fechado seus olhos ou quem o fizera. Fecharam seus olhos e agora, eles não irão sorrir para mim outra vez. Nunca mais. Nunca.

Nunca é um tempo tão longo!

Não. Eu esperei que os "Seres de Luz" viessem buscá-lo. Eu rezei. Eu ordenei. Eu adormeci ao lado do meu tio porque ele não gosta de dormir no escuro. Quem apagou a luz do abajur? Eu o deixei ligado antes de sair ontem à noite. Aonde fui ontem à noite? Eu me odeio por ter saído de perto dele. Odeio esse dom maldito. De que vale ajudar os outros se o homem que mais amo neste mundo partira sem a minha ajuda? Meu pai. Meu pai. Ele era o meu pai. Lembro-me de seus olhos fechados antes de ser estupidamente arrancada de seus braços. Quem os fechou? Eu quero esquecer. Quero esquecer e mesmo que eu feche os meus olhos, eu enxergo os dele. Já não havia compaixão, amor, tristeza, dor, alegria. Já não havia brilho ou vida. Eram duas grandes bolas de gude negras, foscas. E seus olhos sempre foram claros e límpidos. Brilhavam como a luz do sol.

Fernando se apressara em fechar os seus olhos assim que chegara do trabalho, espantado, chorando sobre o corpo do pai. Mas eu cheguei ao quarto antes de Fernando e o que vira nos olhos do meu tio eu não vou conseguir esquecer.

Inferno!

Quero dormir e não mais acordar até que ele volte a abrir seus olhos e diga, gargalhando, que estava brincando comigo. Eu vou ralhar com ele. Vou brigar e dizer que isso não se faz e depois, rirei com ele. É assim que deve ser. Vou dormir e me esquecer daquela expressão em seus olhos segundos antes de se fecharem para sempre.

Por que havia tanto horror em seu olhar?

***

Quero dormir e não mais acordar. Onde eu escondi os remédios? Talvez ainda consiga alcançar meu tio antes que ele cruze a linha que nos separa dos mortos. Acho que li em algum livro ou vi em algum filme. Não importa.

Cadê a porra da cartela?

"Na gaveta das calcinhas".

Agradeço à voz melíflua que soprara a resposta em meu ouvido, aquecendo meu coração, arrepiando os pelos de minha nuca.

Meus dedos alcançam a cartela ainda intocada. Então, eu sorrio, esperançosa.

Quem diria que um dia eu ficaria grata ao ver uma das garrafas de uísque daquele bêbado insensível. Eu não o vi chorar pelo pai após a partida dos abutres que sujaram a casa inteira somente para 'velar o morto'.

MENTIRA!

Queriam pegar o que era dele. Seu relógio, seus sapatos, as camisas sociais que eu passo cuidadosamente todos os dias. Ele precisa ir trabalhar bem vestido. Minha tia sempre diz isso. VERMES. Eu não saí de perto dele. Não pegaram nada!

Em três longos goles, deixo a garrafa sobre a cômoda, pela metade. Cambaleante, apoio-me na beirada da cama. Estou prestes a comprovar a teoria de que o álcool potencializa a ação dos psicotrópicos.

- Psi...psi...- Tento repetir o que pensei, mas a língua não ajuda. Solto uma gargalhada, sentindo-me tonta. Jogo-me, de costas, contra o colchão, encarando, enjoada, as estrelinhas grudadas no teto. As estrelinhas que um dia foram verdes fosforescentes. - Me espera. - Peço, num suspiro.

***

Quando minha tia se foi, sobrara metade de mim. Meu tio partira levando consigo a outra metade.

O que sou agora?

Nada.

- 'O sabor é amargo. A água do copo ao lado do criado-mudo ajuda a lavar a boca . Os lábios e dentes estão diferentes. Anestesiados? Não! Dormentes. É isso.

"Se quiser um efeito imediato, deixe que derretam em sua língua", ouvira, certa vez, o psiquiatra explicando à minha tia quando prescrevia uma das centenas de receitas que jamais acalmaram a inquietude da mulher ingrata do meu tio. Não é engraçado como certas frases jamais saem de nossas memórias ainda que tenham sido ditas há muito anos?

- Como é amargo. - Resmungo, bêbada. O copo vazio pesa como chumbo em minha mão. O tapete felpudo, uma gracinha, amortece a queda. A sensação é boooa. Agora entendo a tia. Entendo o porquê de tomar essa porcaria quando brigava com ele. O tio não merece, tia. Ele não merece. - Por que eu nunca disse a ele o que a senhora fazia? Talvez...- O ato de falar vai se tornando difícil a cada segundo que se passa. A língua pesa. Os olhos pesam. Minha cabeça pesa. Eu rio de mim mesma. Pareço estar bêbada. Burra! Eu estou bêbada! Perco o controle das pálpebras. - Ele não merecia...tia. - Sussurro, ajeitando a cabeça no travesseiro dele. Meu corpo está tão relaxado que mal consigo ajeitar a camisola longa ao longo do meu corpo. Era dela. Da ingrata. Pobrezinha. Não conseguia conter seus impulsos.

Porra, tia. Que vacilo. Meu tio não merecia.

O quarto todo está girando. Inspiro fundo porque não posso vomitar e estragar o meu plano bem bolado. Incrível lembrar-me destes detalhes estando bêbada e drogada. O travesseiro é dele. - Deus! - Um grito desesperador abafado pelo travesseiro. A dor é devastadora. Ainda tem seu cheirinho de talco de bebê. - Tio? Tá me ouvindo? Por que foi embora sem me levar? - Engasgo com o meu próprio choro. Um acesso de tosse. Soluços entrecortados. Palavras desconexas. O peito dói de saudades, o coração desacelera, aos poucos.

A casa está vazia. A noite escura, sem estrelas. Fernando dorme no outro quarto. Solto o ar pela boca antes de me deixar levar. Volito sobre o meu corpo enquanto digo, desorientada.

- Não há mais nada aqui pra mim. Mais nada.

Mais nada.

- Tio...me espera.

***

Não consigo respirar. O ar é denso. Uma mistura forte de gases tóxicos. O lugar é vasto, apesar de claustrofóbico. Um vale profundo cercado por montanhas acinzentadas. No topo de algumas, o fogo lança suas chamas contra o céu cor de chumbo. Há gemidos por onde passo. Meus pés descalços tocam o chão escorregadio. A escuridão é profunda, ainda que haja, em alguns pontos, resquícios de uma luz tênue vinda de cima, atravessando a grossa camada gasosa. A luz incide sobre a terra seca, a poeira sobe enquanto caminho. Sinto-me presa ao corpo que deixara na cama por uma linha transparente que se desenrola à medida em que vou seguindo o espaço pouco iluminado. Olho para baixo. Sufoco um grito de horror. Demoro-me a observar porque é impossível de se acreditar no que vejo. Corpos enterrados até a cabeça se aglomeram formando um mar de lamentações. Tenho nojo deles. Tenho pena. Quero fugir. Encontrar meu tio e fugir. Algumas vozes gritam por meu nome. Como? Nunca estive aqui antes. As árvores retorcidas, sem frutos ou folhas. O uivo de lobos, ao longe. Urros horripilantes ao meu redor. Não estou só. Meus pés estão sujos cobertos por uma lama viscosa. A barra da camisola arrasta-se pela lama. Mãos aflitas puxam-me pelo tecido. Quero gritar, ordenar que me deixem em paz. A voz fica presa na garganta, o coração aos pulos. Um frio súbito. Encolho-me, abraçando-me. Baixo a cabeça, os fios do meu cabelo cobrem meu rosto. Um alarido medonho me chama a atenção. Ergo minha cabeça. A mão vai à boca, abafando um grito. Aves gigantescas mergulham no vale e, de lá, retornam com suas presas no bico. Não são aves normais. Lembram-me os extintos pterodáctilos, as asas longas, abertas como as de um morcego. Onde estou? O que eu vim fazer aqui? Elas comem pessoas?

"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate", leio a frase entalhada na pedra, acima da larga entrada de uma longa caverna. Eu já li isso em algum lugar. Num livro. Estou confusa. Minha respiração, ofegante. Não quero entrar aí. Lembro-me do meu tio. As mãos em concha ao lado da boca. Grito por seu nome.

"Ele está morto.", uma voz sarcástica vem da multidão que se aglomera logo abaixo do topo do penhasco onde me encontro. Enxergar o que há naquele vale é humanamente impossível. Porém, aqui, minhas faculdades tomam vulto. Minha visão, audição e olfato estão apurados. Estreito os olhos, então, enxergo, enojada, corpos esquálidos, famélicos, amontoados como animais no cio. Mulheres e homens usados para saciarem a luxúria exacerbada de seres bestiais. Afasto-me, de súbito, quando um deles, erguendo a cabeça, me encara com os olhos em chamas, a boca distorcida. Chocada, ouço, novamente, o meu nome. Mas...eu nunca estive aqui. Estive? Como sabem o meu nome?

- Isso é o inferno. - Balbucio, aterrorizada, ao ver, logo adiante, árvores em cujos galhos, corpos estão pendurados por cordas em seus pescoços. - Estão vivos! - Constato, espantada. Minha mão chega a tocar a árvore quando, alucinada, murmuro. - Como podem? Estão enforcados!

Quero retornar. Meu tio não está aqui. Ele é bom. Não está aqui.

- Vc morreu.

- Não! - Respondo à voz masculina, grave, soturna sem rosto. Um coro de risos. Um farfalhar de saias à minha volta. De olhos abertos, não os vejo. Então, fecho meus olhos. Um jato de adrenalina percorre minha corrente sanguínea. O medo se instala. Rostos medonhos, mulheres seminuas e sujas, cabelos desgrenhados, imagens tremeluzindo, desaparecendo. Um súbito movimento do ar. Um acesso de tontura. Um borrão branco surge em meio às árvores queimadas.

- Tio! - Berro ouvindo o eco como resposta. Abro meus olhos cheios de lágrimas. O que faço aqui? É um sonho? Um pesadelo? Tio, me acorda.

- Ele não é daqui. - Afirma, colérica, a voz grave que vai abrindo espaço diante de mim. Atrás da iluminação ofuscante, vislumbro centenas de faces patibulares, olhos esbugalhados. Gritos, uivos. Um barulho insuportável. Desespero-me, recuando dois, três, quatro passos, puxando o ar pela boca, a garganta seca, os olhos ardendo, a fuligem caindo como neve negra. Um homem vem em minha direção, pisando nos corpos dos outros.

- Quero acordar! - Suplico, paralisada, de olhos fechados, aguardando pelo pior. - Não me toca! Por favor, não me toca. - Vou recuando enquanto ele fala comigo num tom desagradável, debochado.

- Sua hora ainda não chegou. Vá embora!

- Meu tio! Deixa eu ver meu tio! A gente precisa voltar.

- Vai! - Troveja o homem forte com um capuz preto cobrindo o rosto. Suas mãos frias apertam a pele de meus braços. Reviro os olhos com o choque. Algo semelhante a enfiar o dedo na tomada. De imediato, seus últimos dias na Terra são reprisados como flashes de uma Polaroid num ponto acima dos meus olhos trêmulos. Uma bala atravessa seu crânio, os miolos espalhados pelo chão de sua cozinha ao lado dos corpos sem vida de uma mulher adulta e de duas crianças. O piso tinto de sangue. Ele se matara após assassinar a esposa e filhas. - Acertou. - Rosna ele, libertando-me, com violência. - Aqui é lugar de quem desistiu, mocinha. Seu tio não está aqui.

- Onde posso encontrá-lo!? - Falo baixo, quase sem respirar.

- Melhor voltar agora! - Diz ele, irônico. - Olha o cordão. - Seu indicador aponta para o meu umbigo. - Se demorar um pouquinho mais, fica aqui pra sempre.

- Que cordão!? - Esbravejo. - Quero meu tio! - Caio de joelhos, chorando como criança, tocando os cascos que substituem seus pés. Não tenho medo. Só quero o meu tio de volta, então, curvando-me submissa, confesso. - Não posso voltar sem ele.

- Vai embora agora. - Repete ele, entredentes, puxando-me pelos cabelos enquanto se agacha para me ver melhor. Nossos olhos se encontram. Através dos buracos no pano imundo, vislumbro um par de olhos humanos e frios. Gemendo de dor no couro cabeludo repuxado, eu me apoio em seu antebraço acima da minha cabeça. - Seu tempo tá acabando. - Informa ele, lentamente. Há lascívia em suas palavras. O corpo exageradamente expandido, músculos perfeitos do tronco para cima. A genitália ofensivamente à mostra. Ele abre um sorriso malicioso quando imploro que me solte. - Vai...agora. - A voz sai num grunhido, os dentes pontiagudos como os de um vampiro. Um cheiro forte, repugnante é exalado de suas entranhas. Ele solta meus cabelos. Atordoada pela algazarra demoníaca ao meu redor, tropeço em algo. Caio de costas na terra úmida. Bato a cabeça contra uma pedra. Num movimento brusco, ele se ajoelha enquanto suas mãos abrem espaço entre as minhas pernas. Não é preciso muito esforço para saber o que ele deseja e o seu desejo incita a plateia mórbida que fecha o círculo, prendendo-me ali.

- Por favor, não. - Peço, virando o rosto para o lado, procurando por algo com que eu possa atingi-lo. Sentindo o peso de seu corpo descomunal sobre meu, eu rogo. - Deus, me ajuda.

- Ele não está aqui, vagabunda. - Sua língua pegajosa e quente lambe, com uma lentidão repulsiva a pele do meu rosto, do queixo até a têmpora. As vozes não se calam, os urros se multiplicam. O ar se extingue por completo. Já não sei o que vim fazer aqui ou quem sou eu. Pareço fazer parte disso tudo. Estou enlouquecendo. Eu só quero voltar. Olho para o céu escuro, as aves imensas pairando sobre nossas cabeças. Suas unhas rasgam, com facilidade, o tecido da camisola. Grito por socorro, engolindo um punhado de fuligem. Estico os braços, tossindo, sem fôlego quando tocam em minhas mãos. Sem respirar, arregalo os olhos, enquanto sou puxada para longe do verme que se move em minha direção como um crocodilo asqueroso. Ele rosna, ameaçadoramente, olhando para um ponto acima da minha cabeça. Meus dois braços estão esticados, seguros por mãos finas conquanto firmes em meus pulsos. Minha cabeça tomba para trás. Abro a boca, incrédula e suspiro.

- Você?! - A voz rouca, fria, cheia de raiva, ordena.

- Volte! Ele precisa de vc. Não se esqueça de sua promessa. Meu filho precisa de vc. Volte.

Antes que eu possa me reerguer e me refazer do susto, ela vem em minha direção, as feições endurecidas, os gestos embrutecidos, o vestido com que fora enterrada, roto, molhado, a boca se abre de maneira descomunal para berrar em meu ouvido.

- AGORA!

***

- Caralho, Giulia! O que vc fez!? Porra! O que vc fez???

- Tia?

- Que tia o caralho! Vc quer me matar de susto???

- Fernando? - Sussurro, engolindo em seco. A garganta arde. A cabeça dói. Meus ossos e músculos doem como se eu tivesse levado uma surra. Um gosto azedo na boca. Meus olhos se abrem. - Fernando?

- Porra, Giulia. - Lamenta ele, enrolando a toalha em meu corpo limpo e nu. Ele me abraça quando saio da banheira. Suavizando o tom de voz, ele diz. - Sou eu, baby. Sou eu. Por que fez isso? - Estou com frio, medo e confusa. A água fria escorre dos fios longos, molhando as minhas costas. Gaguejando, eu pergunto.

- O que que eu...? O que que que eu...?

- Giulia. - Seus olhos azuis, bem abertos, estão fixos nos meus. Suas mãos em minhas têmporas. O canto esquerdo de sua boca se ergue quase que imperceptivelmente quando ele esclarece, pausando as palavras para que eu as entenda de uma vez por todas. - Vc tentou se matar. Meu pai está morto. Amanhã será o enterro. - Balanço a cabeça numa negativa, então ele prossegue, secando com a ponta da toalha as lágrimas que lavam meu rosto. - Não chora, baby. Vc precisa ser forte. - Repreende-me com ternura. - Encare a verdade, Giulia. Agora, somos só nós dois.

Como ele pode sorrir numa hora como essa? Por onde andei? Preciso limpar o chão. O tio não gosta de sujeira. O cheiro do vômito espalhado pelo piso do quarto já não me incomoda tanto assim. Inspiro os resquícios do talco de bebê em seu travesseiro. As carícias descabidas de Fernando não me incomodam. Nada sinto. O que eu vi foi real? Eu sonhei com a tia?

"Amanhã será um lindo dia. Da mais louca alegria que se possa imaginar.", cantava meu tio, pondo-me para dormir. Eu sempre achei o final dessa música fantasmagórica. Agora, sua voz será calada para sempre dentro de um caixão, a sete palmos, coberto pela terra escura.

Há portas que jamais deveriam ser abertas.

Agora, já era. Eu tô sozinha.

Antes de apagar, vejo a satisfação no semblante de Fernando ao ser abraçado por ela.

"Vc me prometeu. Cuide dele!"

***

Não saio do lado dele. Ele não gosta de ficar sozinho. Não gosta de algazarras, de gente falsa. Não saio do lado de sua cabeça, seu rosto rosado, um sorriso forçado, os olhos fechados. Os olhos. Quero me esquecer daquele olhar. Seu último olhar. Estou de pé, ao lado de seu caixão, protegendo-o dessa gente má.

- Do que o senhor estava com medo, tio? - Cochicho em seu ouvido tampado por flores cujo aroma me enjoam. Ele não gosta de rosas. Porra! Fernando sabe disso! Gosta de orquídeas. Orquídeas lilases, as preferidas de sua esposa. - Ela não veio, tio. - Comento, acariciando sua testa, coberta. - Que merda! - Irrito-me, de súbito, retirando o véu de cima dele. As pétalas das rosas saltam como penas. Um coro de "aimeudeus!" preenche a capela. - Ele tá com falta de ar! - Explico aos que me olham como se eu fosse louca. - Meu tio precisa respirar! O que é!? Não entendem o que eu tô falando!? - Rasgo o tule de mosquiteiro com ferocidade enquanto meus olhos imploram apoio a Fernando que vem em minha direção, trajando seu melhor terno preto, os cabelos impecavelmente penteados. - Fernando! Diz pra eles! Diz que seu pai não gosta de rosas! - uma expressão de desconforto no semblante tranquilo, uma das sobrancelhas arqueadas. - Diz pra eles! Diz! - Ele me toma pelo braço e me arrasta, elegantemente, pela capela até atravessarmos o umbral da porta, chegando ao lado externo. Uma lufada morna traz o doce aroma da Dama-da-Noite. Isso só pode ser um aviso de que o tio me ouve. Ele amava esse cheirinho.

- Se vc não se controlar, não vou deixar que fique. - Avisa-me entredentes, incomodado, preocupado em não incomodar os presentes. FALSO!

- Não! - Sufoco um soluço. - Por favor não. Ele precisa de mim.

- Giulia, ele tá morto. Para. Acorda! Ele tá morto! - Baixo os olhos, seco uma lágrima e murmuro, deixando que ele me leve de volta à sala.

- Ele não tá morto. Meu tio não morre. Nunca.

***

Ao meu redor, um borrão de palavras sem sentido e lamentos cheios de falsidade. Tio Giuseppe me abraça. Ficamos juntos por algum tempo sem trocarmos palavra. Sinto seu coração batendo em descompasso. Ele chora em meu ombro como um menino que se despede de seu melhor amigo. "Uma viagem.", diz ele. "É apenas uma viagem, filha. Seja forte."

O cortejo segue em direção à cova. Não há dúvida. Esse é o pior de todos os momentos quando se perde um ente querido. Ver a terra cobrindo o caixão nos dá a terrível certeza de que tudo acabou. De que nunca mais nos veremos. De que não somos nada. Sem o senhor eu não sou nada, tio. O que eu faço sem vc? Cubro a cabeça com as mãos. Não suporto ver meu tio no escuro, sem ar para respirar. Ele vai sufocar e eu nada posso fazer. Fernando me segura, apertando meu braço. Seus olhos estão secos como o seu coração. Meu tio vai descendo, descendo. O coveiro insensível joga a primeira pá de terra. Meu coração se rasga ao meio. Então, vem outra e mais outra e mais outra.

CHEGA!

- Me solta! - Rosno para Fernando. Mordo sua mão. Ele me chama pelo nome enquanto fujo por entre os jazigos. A visão embaçada, o tronco curvado sobre a lápide de algum desconhecido. Os joelhos sobre o gramado verde, bem cuidado. Meu tio foi embora. Não dá para negar. Meu lenço encharcado cai de minha mão enquanto me deito na relva macia, observando as nuvens brancas no céu azul, da cor dos olhos do meu tio. Fodam-se os vermes, as bactérias. Que me levem. Que me matem. - O senhor tá aí? Eu sei que tá? O senhor é bom. E os homens bons, vão para o céu. - Um vulto surge de repente, fulgurante, tapando o sol. Levo a mão acima dos olhos, sentindo meu coração pular na garganta. Pisco por várias vezes, então, cheia de esperança, pergunto. - É vc, tio?

- Não, Giulia. - Lamente ele. - Infelizmente não. - Sua voz é doce e impregnada de tristeza. O sol volta a brilhar, incidindo sobre meus olhos que se fecham por instantes. Alguém se senta ao meu lado, eu ergo o meu tronco e me deixo abraçar por ele. Seu cheiro amadeirado me traz a paz de que tanto necessito.

- Carlos. - Quase me alegro. - Como soube?

- Eu te ouvi. - Ele me empresta um lenço limpo. Eu assoo o nariz ruidosamente. Ele abre um sorriso triste. - Pessoas que se amam estarão sempre conectadas, neste e no outro mundo. Seu tio vai estar com vc. Sempre que vc pensar nele, ele vai estar com vc.

- Jura? - Ele assente com a cabeça. Eu sorrio, chorando. - Eu tô sozinha no mundo, Carlos. Não sobrou ninguém.

- Já não está mais.

- Jura?

- Juro.

- Não me deixa.

- Nunca.

***

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 05/08/2020
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