'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 24

"Mujer, si puedes tú con Dios hablar

Pregúntale si yo alguna vez

Te he dejado de adorar

Y al mar, espejo de mi corazón

Las veces qué me ha visto llorar

La perfidia de tu amor

Te he buscado donde quiera que yo voy

Y no te puedo hallar

Para qué quiero otros besos

Si tus labios no me quieren ya besar?"

(Perfidia - Nat King Cole)

Carlos estivera comigo durante o enterro do meu tio até o fim. Ele me acomodara em seu colo enquanto acariciava meus cabelos. Eu me sentira protegida, ali, debaixo daquela árvore cujos galhos retorcidos denunciavam sua idade avançada. À sombra de sua copa frondosa, eu chorei em silêncio, reparando em cada detalhe de seu rosto, logo acima dos meus olhos inchados, devastados pelas lágrimas que, aos poucos, secavam. Adoraria beijar sua boca semiaberta, os lábios rosados e finos. Sei. Já sei. Eu sei que parece inapropriado ter esse tipo de pensamento justo no dia de hoje, mas eu tenho! Ora bolas!

- Vc me ouviu? - Minha voz sai rouca quando levo as mãos ao rosto, cobrindo-o de vergonha. Ele faz que não com a cabeça, mas não me convence. - Tem certeza? - Ele revira os olhos, dobrando uma das pernas onde apoio minha cabeça. Meu rosto, agora, está bem próximo ao dele. Meu nariz quase encosta em seu peito. Inspirando profundamente, inalo seu cheiro másculo de floresta. Uma sensação morna aquece meu corpo, minha alma. Seu coração bate aceleradamente quando pouso a palma de minha mão em seu peito sob a blusa social branca cujos dois primeiros botões estão desabotoados. Os raios de sol se embrenham pelas folhas incidindo, sobre seus olhos de um verde acinzentado ou castanho esverdeado. Não sei ainda e me pego encarando-o a fim de descobrir a cor de seus olhos e sobre o que ele pensa neste exato momento. - Vc me acha um saco, né? - Disparo, enrubescendo. Giulia, sua ridícula. Vc não tinha frase pior do que essa para romper o silêncio entre nós dois? Precisava mostrar a ele sua baixíssima autoestima??? Eu não posso acreditar que estou flertando com ele no dia do...- Pode dizer. Eu sei que sou. - Continuo a ser ridícula, embora ele nada responda. Então, aconchego-me em seu colo, enlaçando seu tronco com meus braços, apertando-o contra mim. Ele é tão fofinho e cheiroso e sua energia é tão boa! Quase me esqueço de onde estamos e do porquê de estarmos em meio a um imenso campo gramado de um verde absolutamente estonteante. As cores no inverno são muito mais acentuadas, vivas. Eu amo o inverno. Meu tio também amava.

- Ele ainda ama. - Sussurra ele, puxando-me pelos braços, obrigando-me a me levantar e a encarar a triste realidade. - A vida do 'Outro Lado' continua. As cores de lá são ainda mais bonitas e vibrantes. - Diz ele, cruzando os braços acima do abdômen, a cabeça levemente inclinada para o lado. - Como eu sei disso? - Ele repete a pergunta que não fiz. - Sei lá. Imagino que seja. Ao menos, é o que dizem por aí.

- Eu vou te perdoar porque hoje estou muito triste. - Vou dizendo enquanto deslizo as mãos em meu vestido, espanando o 'verde grama' do 'preto luto' do tecido que cobre meus joelhos. - Mas, por favor. - Advirto-o, erguendo a cabeça, elevando o queixo, já que ele é bem mais alto do que eu. - Vc está proibido de ler meus pensamentos até segunda ordem. - Assoo o nariz com seu lenço já bastante umedecido. Isso o faz sorrir novamente. - Entendeu? - Assevero com a voz anasalada. Ele assente e, educadamente, oferece-me seu braço como apoio. Eu o seguro porque precisamos sair daqui. Precisamos ir embora. Precisamos seguir a vida, embora eu não faça a menor ideia do que seja viver sem meu tio. Caminhando por entre os jazigos e mausoléus, banhados pela luz do sol, a morte não me parece tão assustadora. Imagino ser um descanso. Nada a ver com as 'visitas' que recebo em meu quarto ou no trabalho ou mesmo enquanto atravesso uma das avenidas sem movimento, próximas ao 'California', altas horas da noite, quando alguns deles resolvem se comunicar comigo. Sempre desgrenhados, aborrecidos, enlouquecidos, desamparados, desesperados. - Carlos.

- Sim. - Replica ele, parando ao meu lado, suas mãos em minhas têmporas, os olhos plácidos fixos nos meus. - Vc acha que meu tio ainda está aqui? Acha que ele está bem? Ele vai pro céu? O Céu existe? Vc, de fato, acredita que exista um lugar como o Céu?

- Uau. - Murmura ele, elevando o canto da boca, franzindo as laterais dos olhos. Amo pessoas que sorriem com os olhos. Meu tio é assim. Era. Digo, é. Ah! Sei lá! - Calma, Giulia. - Com as mãos, ele faz a minha cabeça parar de se mover aleatoriamente como se eu estivesse espantando abelhas ao meu redor. - Muitas perguntas e uma resposta. - Enrugo a testa, erguendo o queixo. A brisa morna sopra em nossos rostos. Ele retira uma mecha do meu cabelo enroscada em minha boca semiaberta. Novamente o silêncio que não incomoda. Um silêncio que fala mais alto do que qualquer outra palavra. Acho que almas afins conhecem este tipo de silêncio. Será que somos almas afins como me explicou a tia, muito antes de ela perder a noção do certo e do errado e se perder, machucando o enorme coração do meu tio? - Sim.

- Sim o quê?

- Sim para todas as perguntas.

- Todas? - Arregalo os olhos e um sorriso tolo vai se estampando em meu rosto, as bochechas aquecidas, rubras. - Até a última?

- Sim. Principalmente, para a última. - Afirma ele, exalando um suspiro. Eu ofego. Ele me abraça forte. Se há um lugar de onde não desejo sair hoje é desse abraço. - Giulia.

- Eu sei. - Resmungo. - Eu sei. É preciso prosseguir.

- Eu tô aqui. - Incentiva-me ele, entrelaçando seus dedos nos meus. Nossas mãos unidas, o coração batendo em uníssono. Quem diria que eu sentiria o que sempre quis sentir num dia tão terrivelmente devastador como o de hoje?

- Não me deixa. - Peço, amedrontada.

- Nunca. - Seu polegar e indicador acariciam a ponta de minha orelha e, sempre que ele repete esse gesto é como um Déjà Vu, só que, extremamente real. Eu sei. Eu tenho a certeza de que já nos conhecíamos antes, quando ele me tocava da mesma maneira. Eu sei. De onde...- Não vou te deixar. - Promete ele. Aperto sua mão livre com força quando ele, num tom nostálgico, completa. - Nunca mais.

***

De mãos dadas, sob o olhar ameaçador de Fernando que se mantem distante, cercados pelos amigos 'de copo', caminhamos em direção ao portão de saída. Um sino toca anunciando um outro funeral. Um adeus a outro ente querido. Choro, lamentos, o caixão pequenino, em madeira branca. Uma dor na boca de meu estômago. Aperto a mão de Carlos que, beijando o topo de minha cabeça, parece sentir o mesmo: a dor dos pais que enterram seus filhos. Olho para ele e seus olhos estão cheios d'água. Pergunto o porquê de tanta tristeza. Eu a sinto passar dele para mim, através de sua mão. Ele encolhe os ombros, desolado. "Não sei o porquê. Pais não deveriam enterrar seus filhos. Não é natural", diz ele, tão amargurado que chego a pensar que já passara por essa experiência. Quero perguntar se já tivera filhos, esposa, mas, inspirando fundo, contenho a minha curiosidade. Enxugo, com o meu polegar, uma lágrima de seu rosto corado pelo sol quente do meio-dia. Não sei como ele pôde me conquistar de uma maneira tão avassaladora. Mesmo que o homem que eu mais amo esteja debaixo da terra e que eu saiba que nunca mais o verei novamente, sinto, ao lado de Carlos, que ainda poderei ser feliz e voltar a sorrir e, é exatamente o que faço quando ele, curvando seu tronco em minha direção, beija minha bochecha de forma reconfortante como se eu fosse uma criancinha perdida que acaba de achar seus pais.

- Durma comigo hoje. - Sugere ele. Um arquejo estúpido escapa da minha boca enquanto ele abana a cabeça, deslizando a mão pelo cabelo, refazendo a proposta. - Durma lá em casa hoje. - Baixo os olhos e num gesto brusco, enrolo com as mãos nervosas os fios do meu cabelo como se fossem roupas prestes a serem estendidas no varal. Ele, vendo-me confusa, continua, calmo, a voz macia, as mãos nas minhas têmporas. Que diabos ele tanto põe as mãos nas minhas têmporas? - Vc precisa de um tempo pra retornar àquela casa. Tem muitas lembranças, vozes...- Assinto com a cabeça enquanto ele prossegue no mesmo tom de voz. Meu corpo leve, a cabeça leve, a respiração fácil, os olhos fechados. - Vem comigo até ficar forte e poder retornar e encarar a sua perda.

- Vc acha? - Sussurro, evitando encarar os vultos negros que passam através de nossos corpos e seguem o cortejo que sobe a colina. - Tô com tanto medo. - Confesso dentro de seu abraço onde me sinto protegida. - Não quero atrapalhar a sua vida. - Retruco pensando em como seria bom dormir de conchinha com ele. Por San Juan Diego! Por que a minha cabeça é tão torta? - Acho que não devo. Vai gastar o que não tem.

- Não se preocupa com isso. - Cochicha ele em meu ouvido. Estou na ponta dos pés e, penso que se ele quiser me levar, basta que me carregue no colo. Não quero voltar àquela casa. Não é um lar. Já foi. Não é mais. É apenas uma casa fria, enorme, vazia, cheia de quartos e memórias felizes que só me fazem chorar. - Desculpa. - Peço, entre soluços. - Dói tanto. - Seco seu ombro com o meu lenço úmido. Apesar de ser nojento, ele não se importa. Não é como Fernando que já estaria me chamando de porca ou coisa pior por ter manchado sua camisa de grife. - Quero ir com vc, mas...- Antes mesmo de terminar a frase, sou arrastada pela mão de ferro do meu ex-melhor amigo de infância cuja força se multiplica graças à presença invisível, aos olhos de muitos, de sua nova companheira. - Não seja estúpido! - Grito, colérica, deixando-me levar por ele. Carlos vem em minha direção, evitando o olhar insano de Fernando ou será que ele vê algo além do filhinho mimado da mamãe enfurecida? - Me solta! - Ordeno. Fernando obedece. - Eu vou com vc, mas antes eu vou falar com ele. - Aponto meu polegar para Carlos que se posiciona logo atrás de mim. - Eu quero falar com ele. - Repito, a voz titubeando porque estou em pânico, no entanto, não posso...não devo demonstrar. Estreito os olhos raivosos que se fixam num ponto acima do ombro esquerdo de Fernando quando rosno. - Eu tenho o direito de falar com Carlos e vou falar. Assim que eu terminar, eu volto pra casa. Pra sua casa. - Digo num tom de acusação. Fernando ergue uma sobrancelha, arregalando seus lindos olhos claros e desconfiados quando me dirijo ao seu ombro e não a ele. Imobilizado diante da imponente presença de Carlos, Fernando larga o meu braço enquanto vê a mão de seu rival pousando em meu ombro, oferecendo-me o apoio de que necessito. Posso sentir sua empatia, sua força, sua calma, seu amor. A agonia nascendo no fundo de sua alma. - Diabos! - Cuspo, irada. - Eu sei que lhe prometi e vou cumprir!

- Do que tá falando, porra?! - Exclama Fernando, assustado, dando um passo atrás.

- Cala a boca. - Digo entredentes sem desviar meus olhos dos dela que me queimam por dentro. Nunca pensei que a veria assim. Um misto de medo e compaixão me tomam por inteiro. A perda do meu tio, seu enterro, o cemitério abarrotado de seres incorpóreos sobre os túmulos, o cheiro enjoativo de rosas, as badaladas do sino, um outro corpo que passa ao nosso lado, a coroa de flores. Um fedor terrível invade minhas narinas. As nuvens escuras acima de nossas cabeças anunciando a chuva que, daqui a pouco, vai molhar a terra onde meu tio dormirá para sempre. - Inferno! - Explodo. - Me deixa em paz! Eu vou voltar pra casa! Eu vou cuidar do seu filho! Eu vou ficar com vcs! Só me deixa. Me deixa falar com o Carlos! Eu tenho o direito de me despedir! Para de falar! Para de falar na minha cabeça! Eu não suporto mais o seu cheiro, a sua voz! O que aconteceu?! Por que mudou tanto?! A senhora me amava. - Levo as mãos ao rosto, debulhando-me em lágrimas. Ela era tão diferente. Ela me amava. Dando um passo à frente, repito em voz alta. - A senhora me amava! Não amava??? Diz que me amava! DIZ!

- Giulia! - Ouço o tom desesperado na voz de Carlos minutos antes de sentir aquele dedo fino e frio encostar em minha testa.

- Argh! Que nojo! - Cerro os olhos tarde demais.

A imagem dos vermes brotando dos olhos, da boca escancarada num sorriso macabro nunca mais seria esquecida.

Não sei como vim parar aqui, nesta cama, neste quarto. Não me lembro de nada após o sorriso maligno. Só há uma certeza em minha cabeça latejante: a de que fui eu quem abriu a porta, logo, sou eu quem deverá fechá-la.

***

Hoje sonhei com o meu tio. Durante as poucas horas em que pudera dormir, eu sonhei com o meu tio. Ele, todo orgulhoso, em seu avental branco de 'chef'. O mesmo que costumava usar nas noites de sábado quando ainda éramos em quatro. Dois casais felizes sentados à mesa da cozinha, saboreando a massa fumegante cercada por mostarda, ketchup e queijo parmesão.

"Não se polvilha queijo na pizza, idiota.", asseverava Fernando, soberbo, aos dezoito. Comemorávamos o seu retorno ao lar, de férias da faculdade que cursava em outro estado. Minha tia o abraçava com ternura enquanto meu tio me servia uma suculenta fatia de mussarela. Suas covinhas eram um atrativo a mais em seu rosto rosado, saudável, os olhos sorrindo, muito brilhantes.

"Faça o que quiser de sua vida", sussurrava-me ele, curvando-se atrás de mim, com a faca e o garfo nas mãos, cortando a fatia em pedacinhos, sem desviar os olhos do prato. Ele sempre as fatiava para mim, desde pequenina e, como se quisesse que eu soubesse que, para ele, eu jamais cresceria, continuava a realizar o mesmo ritual, sábado após sábado, ano após ano. Suas mãos trêmulas já me segredavam o que estaria por vir. Seria o Alzheimer que o fazia tremer ou haveria outro motivo para seu quase imperceptível nervosismo meses antes de adoecer e emudecer? Ele não os encarava. Mãe e filho nos observavam atentamente quando ele cochichara, num tom sombrio. - "Não seja boba. Vc não deve nada a ninguém. Viva a sua vida e saia daqui antes que seja tarde demais".

Abrira os olhos e somente então percebera que o sonho havia terminado e que eu mergulhava em um pesadelo do lado de cá. Ainda me recordo do medo estampado em seus olhos quando pausadamente me ordenou: "Saia daqui!"

- Saia daqui. - Repito, emitindo um gemido de dor, livrando-me das algemas que me mantiveram presa à cabeceira da cama por dois longos dias onde o filho do meu tio despejara em mim sua ira lasciva, bêbado, medonho, soltando no ar palavras que denotavam a inveja que ele passara a nutrir por Carlos que desaparecera desde então. Não sei o que dói mais: as investidas brutais de Fernando e de seu corpo faminto sobre mim, a ausência do homem que me dera a mão no pior dia de minha vida ou estar sob a mira do olhar frio da mulher que me criara como sendo sua filha. Ainda tento entender a sequência dos fatos que me levaram a protagonizar cenas de um filme de terror "trash" enquanto me arrasto, com as costas curvadas, as pernas um tanto afastadas, até o banheiro. Estou nua, suja, sozinha. O monstro, recuperado da bebedeira, fora trabalhar. Meu tio está eterna e irremediavelmente enterrado. Deveria haver somente eu aqui, nesta casa que já fora o meu lar. Deveria, no entanto, eu a sinto logo atrás de mim quando, num repente, fecho a porta do banheiro impedindo-a de entrar.

Portas de madeiras são intransponíveis? Acho que não.

- Carlos, me ajuda. - Imploro debaixo da ducha fria que lava meu corpo, os fios embaraçados do meu cabelo. Um jato forte sobre o couro cabeludo dolorido. A desesperança pesa como chumbo sobre as minhas costas quando abro e fecho as mãos dormentes, os punhos marcados. A água bate contra os ossos das costelas, aliviando a tensão. Permaneço de cabeça baixa, debaixo do jato forte que revigora minhas forças enquanto esfrego a esponja na pele entre as minhas coxas de onde quero retirar os resquícios imundos e ressecados dos fluídos daquele sádico por quem eu ainda nutro algum tipo piedade. Eu não valho nada. - Por que tem que ser assim? - Murmuro, bebendo a água que desce da testa até meus lábios, a boca lacerada. Esfrego as mãos ensaboadas levando-as à pele do rosto magoado. Um súbito ódio, um desejo de vingança se contrapõe à tristeza de lembrar-me da proposta do homem que me abandonara no dia em que meu tio fora enterrado. - Por que deixou que ele me trancasse aqui? Vc fugiu? Por que não me levou pra casa? Pra sua casa. Vc me convidou, Carlos. - Lamento, abrindo um dos olhos debaixo d'água. O outro, intumescido, não se abre. O covarde voltara a liberar sua fúria contra mim. Meu reflexo no espelho do box sorri, satisfeito, para mim mesma. - Bem feito. - Gargalho de raiva ao me lembrar do hematoma que circunda um dos lindos olhos azuis do menino com que eu soltava pipa. De quem ele apanhou? - Pow! - Da boca, saltam gotículas quando imito Bruce Lee atingindo, com um 'jab' certeiro a cara nojenta do verme traiçoeiro capaz de bater em uma mulher atrelada a uma cama, com os braços presos, as pernas abertas, a boca atada. A claustrofobia fora abafada pelo desejo sombrio em vê-lo morto, acabado, arruinado. - Merda...- Arregalo os olhos, despertando com o ranger da porta que se abre lentamente. - Quem tá aí? - Fecho, silenciosamente, a torneira. A água para de cair. Amedrontada, olho através do vidro fosco. Um vulto branco encostado à parede me encara. Num pulo, saio do box, os pés molhados na toalha de piso em algodão. Os pelos de minha nuca se eriçam quando me enrolo na toalha com a estampa do Mickey. Era a predileta do meu tio. - Putz! - Um suspiro de alívio se mistura a um risinho nervoso quando percebo que o vulto branco nada mais é do que o velho roupão dele, mais amarelado do que branco, pendurado num gancho de metal. Encolho os ombros, tremendo-me por inteiro. Banhos frios são bons para a saúde. Meu tio e eu éramos os únicos a tomarmos banhos frios aqui em casa. Interessante. Meu corpo frio não precisa se adaptar rapidamente a uma brusca mudança de temperatura, então, qual o motivo da tremedeira? - Para com isso, Giulia. - Repreendo-me, entre risos forçados, enquanto enrolo outra toalha no cabelo molhado. - Ai, não. - Enjoada, apoio as mãos na pia onde penso que vou vomitar. Outra vez aquele odor forte, sufocante, fétido se infiltra em minhas narinas. Tusso, engasgada, regurgitando a bile que queima o meu esôfago. Ainda de cabeça baixa, recordo-me de não ter comido nada desde que meu tio partira. - Carlos, vc me ouve? - Pergunto ao meu reflexo quando ergo a cabeça. Então, sufoco um arquejo de horror como o fazia ainda aos quinze, época dourada onde fora apresentada, oficialmente, ao "Outro Lado".

- Vc não vai a lugar algum. - Diz ela sem mover um músculo sequer. Telepatia? Cerro os olhos, contando até dez. "Eles irão embora antes de vc terminar de contar", ensinara-me meu tio, mas ele estava enganado. Eu nunca ousaria contrariá-lo quando tudo o que ele desejava era me acalmar, mas, tio, eles nunca partem antes de alcançarem seus objetivos. Nunca. Com a voz cavernosa, amplificada como em um alto-falante, ela continua. - Este é o seu lar. Sempre foi e sempre o será. - Franzo o cenho, tampando os ouvidos com as mãos, embora esse gesto não surta efeito algum. A voz está dentro de mim. - Vc prometeu cuidar dele. Vc me prometeu. Ele precisa de vc. Não ouse deixá-lo. - Assinto com a cabeça, as mãos sobre a toalha em forma de turbante, os olhos fixos em seu reflexo.

"Eu vou ficar, tia" - Penso, vencida. Ela parece não me ouvir, pois suas feições permanecem ameaçadoras. Giro meu corpo e passo através dela. Eu não passo 'por ela'. Eu passo 'através dela'.

Interessante.

Sorrindo, maliciosamente, repito, em voz alta cruzando o corredor. Ela vem flutuando atrás de mim como ave agourenta. - Eu vou ficar, tia. Eu vou ficar! - Assumo, arriscando um olhar curioso a ela que se evapora com fumaça que sai da boca de um fumante.

Enquanto penteio meu cabelo ainda úmido, sentada na beirada da cama, lembro-me de anotar dicas preciosas em meu diário.

1. Mortos não são como vampiros. Eles podem ser vistos através de espelhos;

2. Mortos são permeáveis;

3. Pense o que quiser. Mortos não leem pensamentos. Não os mais ferrados.

***

"Sou forte como o Sol" fora o que ela me ensinara a dizer quando eu ainda era uma adolescente sem amigas, sob o julgo impiedoso de Incubus que tinham por hobby me visitarem à noite. Ela estivera comigo; conversara com eles ainda que eu não os ouvisse. Ela os convencera a me deixarem em paz. Como? Eu não sei. Ela parecia encantá-los de alguma forma. Eles a obedeciam. Eu só queria ficar livre deles e...fiquei. Graças a ela, um belo dia, as trevas se foram. Ela me ensinara muitas coisas. Muitas e valiosas lições. Magia fora um de seus legados. Havia um tempo em que ela era luz. O que torna tudo sem sentido. O que houve entre o espaço de sua morte e o agora? Por que ela se apresenta de maneira tão grotesca para mim se nada de mau fizera em vida?

Foda-se! Eu a amo. É isso que importa. Não os erros que ela talvez tenha cometido. Eu a amo e estou pronta para ser útil e retribuir o bem que ela me fizera ainda em vida, porque, o que vale, ao final de tudo, é amor.

Isso já é coisa do meu tio.

Pensando assim, reúno forças para faxinar a casa podre, fedendo a vômito, cachaça e morte. Corro até a sala. Seleciono com a ponta dos dedos em uma pilha de vinil, um dos vários LP's da coleção fantástica do pai que me adotara. Um nó na garganta embarga a minha voz quando leio uma dedicatória com sua letra grande e arredondada, levemente inclinada para a direita.

"O segredo do amor é maior do que o segredo da morte"

(Oscar Wilde)

Leio e releio a frase, piscando por diversas vezes na tentativa de desembaçar a visão. Choro, agarrada ao disco de seu cantor predileto porque presumo tratar-se de uma mensagem que ele me deixara antes mesmo de saber aonde iria e como me deixaria. Deito-me no chão da sala dando vazão ao meu sofrimento. A perda dele me devora por dentro. Pensar que jamais dançaremos juntos ou que sua voz grave e desafinada jamais será ouvida novamente faz o meu corpo se curvar numa posição fetal. Da boca aberta não sai um som sequer. Um choro seco, profundo, doloroso, silencioso.

Como dói essa porra!

Vai parar um dia?

Lá de fora, escapa, da janela de algum carro que sobe a rua, a canção de Renato Russo que me diz, num tom melancólico, "que a vida continua e se entregar é uma bobagem."

Concordo com o meu ídolo, erguendo-me do piso frio. Ligo o aparelho de som tão antigo quanto a música de Nat King Cole. Puxo o braço da agulha para trás. O disco roda. Encaixo, com a mão trêmula, a agulha que percorre a linha. Opto por algo mais animado porque não quero mais chorar. Então, a mágica tem início. "Perfidia" é a escolhida. Elevo a voz apertando o cabo da vassoura com tanta força que sinto minhas mãos formigarem. Solto meu 'Portunhol' tosco evitando não me jogar em sua cama e de lá não mais sair. Começo pelo quarto do devasso. Recolho a roupa de cama imunda onde há pouco eu estava presa como um objeto.

Nat King Cole, com sua voz mansa e sedutora não me deixa pensar em nada além de um mundo colorido onde não há maldade. Ainda posso sentir o cheirinho da loção pós-barba do tio quando ele se preparava para mais um dia de trabalho. Abro o seu guarda-roupas. Uma facada bem no meio do meu estômago doeria menos. - Para com isso! - Ordeno a mim mesma, fechando as portas, esfregando o chão varrido, com rodo e um pano embebido em água sanitária. "Desinfetar para depois perfumar", novamente, minha tia me vem à mente. E não é à toa. De esguelha, vejo seu vulto repugnante sentado em sua poltrona favorita, olhando para mim insistentemente.

- Por que está aqui? - Desvio meu olhar curioso a ela que se espanta. Uai! Por que o espanto? A senhora sempre soube que os mortos e eu somos como 'unha e carne'. Desembucha. - Por que tá aqui, tia? - Ela abana a cabeça numa negativa. - Ah! Entendo. - Minto. - Não pode falar. É isso? - Cruzo as mãos sobre o cabo da vassoura onde apoio meu queixo, os olhos fixos nela e em seu estado deplorável. Pior do que o fedor nauseabundo, são os vermes. Os vermes acabam comigo! Odeio bactérias, fungos, bichinhos agrupados e ela sabe disso! - Tia! - Pigarreio, imprimindo doçura em minha voz quando me sento no colchão de sua antiga cama a uns dois metros dela. Ela se retrai, visivelmente incomodada por ser vista daquela forma. Pobrezinha. Penalizada, estendo o meu braço em sua direção. Ela se encolhe na cadeira, recusando o meu contato. Nat, agora, canta "Smile". Como uma canção tão triste tem a ousadia de me pedir para sorrir? - Fala comigo. Eu posso ajudar a senhora? De onde veio? Por que os...? - Enrugo a testa, retorcendo a boca, evidenciando meu repudio. IMBECIL! - Isso aí no seu ouvido? - Digo com os dentes trincados, o indicador apontando para o rosto que ainda guarda a beleza de outrora. - Isso não acontece somente aos que partiram antes do tempo? A senhora me ensinou isso. Lembra? - De seus olhos castanhos, escorrem duas lágrimas. - A senhora não se matou, tia. Como pode estar assim? - Deduzo, indignada. Sua boca se abre e num esforço supremo, ela emite um grunhido indecifrável para, logo em seguida, tomada pela ira, desaparecer, aos poucos. - Espera! - Estendo a mão espalmada observando-a, compadecida. Primeiro as pernas. Depois, o tronco e por último, a cabeça cujos olhos me fuzilam. - Por que não me ama mais?! - Grito segundos depois de sua desaparição. - Que vida é essa? O que houve a essa família? - Dirijo-me ao Crucificado acima da porta do quarto que parece não se importar com a piaçava roçando seus pés. - Éramos tão felizes. O que ela fez pra merecer isso??? Responde! Vc não sabe de tudo??? Responde! - Afronto o Cristo enquanto retiro, num único puxão, o lençol da cama. Com a lateral do meu corpo, eu a empurro para o canto direito do cômodo, resmungando, varrendo e praguejando. - Não quer falar não fala, porra. Não me ame também. Eu não preciso. Eu tenho... - Meu tio? - Não. Não tenho. Eu tinha. - O Carlos? - Não! Também não tenho! - Grito às paredes repletas de teias de aranha e traças, bichinhos nojentos e abusados que sempre retornam ao lugar de origem ainda que eu o retire das paredes e tetos quase todos os dias. - Inferno! EU NÃO TENHO NINGUÉM! - Arremesso a vassoura contra a parede. - Qual a graça de se viver assim??? - Protesto, ajoelhando-me ao lado da cabeceira, enfiando a cabeça embaixo da cama. - PUTA-QUE-PARIU! - Exclamo, pausadamente, encostando o topo da cabeça no estrado. - Que porra de sujeira é essa??? Eu limpava sempre quando...Ah! - Bufo, revirando os olhos. - O passado já foi. Limpa essa merda! - O rodo limpa a superfície além do limite onde meu braço não alcança. Intrigada com um pedaço de papel existente entre o colchão e o estrado, fico de pé, balançando a cabeça, expulsando possíveis seres minúsculos que possam ter se embrenhado em meus fios presos num rabo-de-cavalo. Empertigo-me furiosa e, furiosa, ergo o colchão com a disposição de um levantador de peso olímpico. - Que merda é essa?! - Atordoada, empurro o colchão que tomba para o outro lado.

Eu sempre soube que meu tio gostava de escrever. Inclusive, o médico o incentivara a registrar o que sentia como uma forma de terapia, mas, jamais poderia imaginar que seu diário estaria escondido aqui, debaixo de seu colchão. Por quê?

Largo o pano de chão no balde com a água cinza de tão suja. Corro até a suíte onde lavo minhas mãos. Retorno secando-as na barra do vestido porque não quero perder tempo. Emocionada, toco no caderno de capa dura onde a vida do meu herói fora registrada. Meu coração bate na garganta quando me sento na mesma poltrona onde há pouco, o espectro de minha tia havia se sentado. Forço-me a não me conectar a ela. O foco de minha atenção deve ser o diário sobre minhas coxas que parece gritar para ser lido. Indecisa, insegura, curiosa e em pânico, eu o abro. Solto o ar pela boca, profundamente atônita com o que sinto ao tocá-lo. Uma torrente de emoções está contida nessas páginas e, sinceramente, não sei se estou preparada para continuar. No entanto, preparada ou não, eu leio o que está escrito na contracapa, o que me faz gelar, paralisada, abrindo, desmesuradamente, meus olhos a cada letra lida.

"Quando aqui chegar, meu anjo, espero que esteja bem longe do que, um dia, chamamos de lar"

Puta merda.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 19/08/2020
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