CAPÍTULO 29 - É ASSIM QUE DEVE SER

must've been through about a million girls

I'd love 'em and I'd leave 'em alone

I didn't care how much they cried no sir

Their tears left me cold as a stone

But then I fooled around and fell in love

I fooled around and fell in love

I fooled around and fell in love

Fooled around and fell in love

(I fooled around and i fell in love - Elvin Bishop)

Carlos é incansável. Trabalha à noite, como garçom, em uma cantina italiana e, pela manhã, quando não me auxilia na limpeza da casa ou no preparo do almoço, ele se joga sobre os livros em seu quarto onde ainda não tivera coragem de entrar. A atmosfera lá dentro é soturna, apesar de acolhedora. Do tipo que me convida a sondar. Lembro-me de ter estado neste quarto da vez em que nos encontramos pela primeira vez, por acaso, em seu trabalho e acabamos por dançar juntos enquanto fechavam a cantina. Dançamos juntos, dois desconhecidos. Foi fantástico! A partir de então, dele, jamais me esquecera. Para variar, estúpida, algo me perturbara e acabei perdendo os sentidos. Não faço ideia de como vim parar aqui, mas amei.

Estou diante da porta quando ele, de súbito, a abre, assustando-me.

- Incenso? - Pergunto, surpreendida. - Vc gosta de incensos??? Eu não acredito! - Finjo euforia quando, na verdade, estou envergonhada por ter sido pega espiando pela fresta. Ajeitando os cabelos em desalinho, prendo-o em um rabo-de-cavalo, aprumando-me como se fosse iniciar uma aula de Ballet. Céus. Estou um caco. Esse vestido velho, os óculos no rosto. POR BACO! - Eu amo incensos! Minha tia amava incensos. Vivia acendendo um aqui outro ali, enquanto recitava trechos de um poema ou coisa parecida em um dialeto qualquer, andando pelos corredores da casa, madrugada adentro em seu camisolão negro como a noite. Por San Juan Diego! - Reviro os olhos, um tanto dramática. - A casa ficava tão esfumaçada que eu chegava a me sentir em meio a um "Fog" londrino. - Ele emite um ruído adorável, uma risadinha, seguida de um sorriso encantador. Puta merda. Eu deveria parar de falar porque estou sendo observada em cada detalhe, exatamente quando estou absurdamente horrenda!

- Engano seu. - Diz ele. Reviro os olhos, novamente, pousando as mãos na cintura.

- Quando eu vou poder falar com vc sem me sentir invadida? Já pensou em ganhar dinheiro com esse seu dom inconveniente? - Sua risada é ainda mais sedutora do que o sorriso. É leve, sem malícia. Seu corpinho coberto somente por uma calça jeans, os pés descalços, o abdômen liso, o tórax...

- Giulia?!

- Oi! - Encaro-o afetando descontração, embora sinta o pulsar vigoroso de minhas veias e artérias nos meus ouvidos. Ele me analisa por um instante e me faz murchar quando conclui.

- Vc é engraçada. - Engraçada??? Tudo o que uma mulher não deseja ouvir do homem a quem cobiça é que ela é "engraçada". Ai, Carlos...pelo amor de Deus, facilita. Que tal bonita? - Bonita vc já sabe que é. - Enrubesço porque, é óbvio! Ele me ouviu. - Além de bonita, é engraçada, extrovertida, desinibida, articulada...- Continua ele, enquanto levo as mãos ao rosto sentindo-o em brasa. Sua cabeça se inclina para a esquerda. Apoiando-se no antebraço grudado ao batente da porta, ele deixa escapar da boca que ainda não beijei. - Una donna affascinante. - Uau.

- Vo-você fala italiano? - Idiota! Não gagueja! Eu preciso me acalmar. Fale devagar. Pense antes de falar. Vc consegue. Vc consegue. Consegue nada. É idiota. Tosca. Não sabe falar com um homem como ele. Consigo sim. Eu sei que consigo. Cala a boca! - Aprendeu com quem? - Uau. Grande pergunta. Parabéns. - Cala a boca!

- Eu???

- Perdão. Não é vc. Sou eu. Ah! - Abano a cabeça como um cachorro molhado. - Esquece. - Vc é fluente no Italiano?

- Um pouco. - Responde ele, fixando seu olhar em minha boca. Abobalhada! Passe a língua no lábio inferior. SENSUALIZA! - Só queria te impressionar. - Agarrada ao cabo da vassoura, ouço meu riso misturado aos roncos dignos de uma porca. Vc é patética. Já foi puta e, agora, bancando a garotinha. Para de falar. Tá me atrapalhando. Eu preciso me concentrar. Ele tá me olhando. Não! Ele está te escaneando. É diferente. Me deixa em paz. Engulo em seco quando ele toca em meu queixo e, carinhosamente, sugere. - Relaxa. Tem muito barulho aí dentro dessa cabecinha. - Diz ele, tocando em minha testa. Baixo os olhos, sem saber o que responder. Ele deve me achar louca. E acho que sou mesmo. - Giulia, relaxa, por favor. Vc não precisa de frases de efeito pra falar comigo. Eu sou um cara simples que gosta de mulheres simples e especiais assim como vc.

- Eu? Especial? - Replico entre risadas entrecortadas por inspirações asmáticas e desconexas. - Eu não sou especial, Carlos. Eu sou...- Vai dizer que é Stripper? Não acredito. Tomou vergonha na cara. Para. Por favor. Diz logo quem vc é antes que ele descubra. Ele não vai descobrir. PUTA QUE PARIU. VC É BURRA PRA CACETE! Até quando vc vai sustentar essa versãozinha barata de boa moça? Confusa, falo baixinho. - Carlos, eu não sou...

- Vc é muito melhor do que pensa que é. - Tomada por um impulso de dignidade, largo a vassoura que se apoia na parede e, antes que eu possa confessar que sou uma desclassificada que dança seminua numa boate de quinta categoria, ele me puxa para dentro do cômodo.

- U-au. - Digo, enquanto olho para os quatro cantos da sala com cheirinho de livros antigos e um forte aroma de incenso. - Eucalipto? - Arrisco.

- Hortelã. - Replica ele, vagarosamente enquanto bafeja a fumaça com uma longa pena de alguma ave que desconheço em minha direção, como um bom Xamã o faria. Cacete! Eu tenho a certeza de tê-lo visto agir da mesma forma ainda que esta seja a primeira vez. Isso é tão estranho e instigante. - Para afastar energias negativas. - Observa ele, sem desviar os olhos serenos dos meus. Viu? Ele já deve estar percebendo algo. Cala a boca. Não calo até vc dizer a verdade. VÁ PRO INFERNO! Envolta pela cortina de fumaça, sinto sua mão roçar em minha bochecha. Ele ri quando me pergunta. - Vc acredita que incensos repelem energias negativas?

- Não! Isso é patético! Por San Juan Diego! Se vc morresse agora, acreditaria que uma fumacinha cheirando à floresta iria te afastar daqui??? - Retruco passando por ele, espanando os anéis de fumaça, tentando não ouvir a voz que me acompanha.

- Acho que não. - Diz ele, seguindo-me com os olhos. Sorrindo, assumo.

- Nem eu! - Estaco diante de sua escrivaninha. Meus dedos deslizam sobre a madeira, então, declaro, curiosa. - Mas, minha tia acreditava. E como acreditava! - Prestes a captar informações sobre seus interesses, sinto sua mão pousar sobre a minha, impedindo-me de abrir o que parece ser seu diário entre anotações em papéis jogados aleatoriamente sobre a mesa. - Preciso limpar essa bagunça. - Minto.

- Não precisa.

- Eu faço questão. - Giro nos calcanhares, encarando-o. - É o combinado. Lembra? Eu limpo a fim de pagar pela hospedagem.

- Eu gosto deste quarto bagunçado. - Insiste ele, elevando o canto da boca.

- Eu só vou espanar os móveis! - Exclamo, encolhendo os ombros, as mãos espalmadas para cima, totalmente contrariada. Quero bisbilhotar. Entender porque ele passa tanto tempo preso neste quarto enquanto eu anseio por sua companhia. - Não vai demorar. Juro!

- Vc é um docinho, mas eu mesmo limpo essa bagunça. - Inclinando-se sobre mim, sinto sua ansiedade. Aham! Carlos, o inatingível está com medo. - Vc é tão boba. - Seu sorriso tímido quase me convence a esquecer de tudo. Quase.

- O que vc me esconde? Me diz. Eu preciso saber. Do que tem medo? Que eu descubra que não é tão bonzinho quanto parece? - Sussurro, recuando, apoiando-me na quina da mesa. Meu dedo toca, de leve, seu diário. Cerro meus olhos...

***

Luzes ofuscam as minhas vistas, embora a escuridão me rodeie. Gritos, urros, palmas. Cheiro de uísque no ar. Copos circulam, tilintando acima dos meus olhos. Cabeças amontoadas à minha frente. Procuro por algo...ou alguém. Do clarão logo adiante, algo surge como flecha. Ergo o braço. Fecho a mão que agarra um tecido. Sorrio, satisfeita. Uma peça íntima que reluz na escuridão. Ainda com o braço erguido, atravesso a multidão que tenta me impedir de chegar ao meu destino. Não conseguem. Eu os venço. Eu preciso chegar até ela. Eu preciso falar com ela. Eu preciso que ela...

***

- Chega, meu bem! - Rosna ele, arrancando o diário de minhas mãos. Há um misto de raiva, receio e ternura em seu semblante quando ele me pede para não chorar. - Eu não quis ser grosseiro. Perdão. - Quando ele me abraça, tudo passa. Eu me esqueço do que vira ou finjo me esquecer porque não o quero longe de mim. - Me perdoa.

- Bobagem. Eu que te peço desculpas. - Sorrio, baixando a cabeça, enxugando as lágrimas com as pontas dos dedos. Tola. Estragou tudo. Não estraguei nada. Eu preciso ir devagar. Ele não é qualquer um. É o homem que eu quero. Que eu amo. NÃO ME ATRAPALHA. - Eu sou assim. Não tenho jeito. Meu tio sempre dizia isso quando eu futucava as coisas dele um pouco antes de morrer. Ele, já perto do fim, costumava esconder biscoitos embaixo do colchão. Imagine a sujeira!? - Digo, indignada, erguendo os olhos marejados, os lábios trêmulos contendo a vontade de voltar a chorar. Com seu polegar, ele enxuga minha última lágrima. O jeito como ele me olha deixa-me aflita. Seu olhar me desnuda, me vasculha por dentro. Ele parece me dar tanto valor! Um valor que eu não mereço. - Dá pra acreditar!?

Um silêncio ensurdecedor se estabelece entre nós dois até que ele, francamente emocionado, com o semblante tomado pela compaixão, muda o rumo da conversa.

- Por que seu tio não gostava de incensos? Era dos incensos ou de algo mais? - HEIM??? OI??? Cuidado. Ele tá desconfiado de alguma coisa. Presta atenção ao que vai responder. Vc sempre estraga tudo. Por favor. Para de falar. Por favor...- Giulia, vc tá aí?

- Ah! Então... - Pigarreio, atordoada, então, respondo. - Meu tio reclamava porque tinha rinite alérgica. Pobrezinho. Seus olhos ardiam, o nariz coçava e, nem assim, ela parava. Ela. Digo...minha tia. Nada, nada nada a fazia parar quando começava seu ritual de...- Inspiro, dando uma breve pausa, elevando meus olhos à esquerda, voltando no tempo. Não há teias no teto. Nem traças. Interessante. Do teto, volto meus olhos a ele. Continuo a narrativa entre nostálgica e meio que desconfiada. - Nada a fazia parar quando iniciava seu ritual de 'purificação' da casa. - Informo, movendo meus dedos no ar.

- Por que as aspas? - Questiona-me ele, arqueando uma das sobrancelhas. - Vc duvidava das intenções de sua tia?

- Sim. - Digo, reticente. NÃO! NÃO DIGA A VERDADE. Digo sim. Eu mando em mim. - Sim. - Repito convicta.

- Por quê? - Meus olhos piscam incessantemente, buscando, em meu passado tortuoso, pela resposta. Uma resposta tão nebulosa quanto o quarto tomado pelo incenso. - Giulia, por que duvidava de sua tia? - Lanço um olhar receoso ao meu redor como se fosse encontrar um par de olhos raivosos sobre mim. Incomodada, cochicho em seu ouvido.

- Havia algo de errado com ela. - A imagem repulsiva de seu primo se estampa em minha tela mental junto às partes do pesadelo onde fora atacada por um demônio enquanto procurava por Giovanni. Quem é vc, Giovanni? - Errado. Havia algo de errado. - Repito, mecanicamente.

- Errado como, Giulia? - Sua voz é tão suave e sincera que me sinto à vontade para lhe contar tudo o que vivera até agora, exceto... - Pode me contar, se quiser. Sou seu amigo. - Ele estende seu braço direito. Sua mão toca a minha, convidando-me a acompanhá-lo. Eu o sigo até o pequeno sofá em couro caramelo onde sento-me ao lado da estonteante estante. Centenas de livros de diversos tamanhos e cores enfileirados caprichosamente em prateleiras extensas, dispostas, uma abaixo da outra, do chão ao teto. Um móvel belíssimo em maneira maciça. Volumes de capa dura na prateleira mais alta.

- Vc leu tudo isso?! - Exulto. E, antes que eu me pergunte como ele consegue alcançá-los, vislumbro um primor de escada igualmente em madeira acoplada à parte esquerda do móvel. Daquelas escadinhas adoráveis que a gente só vê nos filmes antigos em bibliotecas sombrias.

- Giulia! - Ele estala os dedos diante do meu nariz, tirando-me do transe. Sentado ao meu lado, ele quer saber. - Vc tá bem?

- É tão lindo! - Arquejo. - Vc deve amar livros. Eu amo livros. Amo livros. Eles...- Olho para cima. Um deles me chama a atenção. O de capa dura, o título em letras vermelhas, no topo da escada: "O Antigo Livro de São Cipriano". Arrepiada, prossigo. - Eles nos fazem viajar sem precisarmos sair de casa. Tipo...vc não precisa ter grana pra viajar quando se pode ler um livro. Entende? O que foi!? - Estranho seu olhar incisivo sobre mim, o cenho carregado, o peito ofegante.

- Giulia, o que aconteceu a vc durante a visita do primo de sua tia à sua casa quando vc ainda era uma adolescente? - Ouço o som repentino do estalo de minhas mãos espalmadas contra minhas coxas e, girando meu pescoço em sua direção, os olhos estatelados, disparo.

- Como sabe disso???

- Vc me contou.

- Eu não te disse nada disso, Carlos!

- Disse sim.

- Não! Não mesmo!

- Mas pensou e eu ouvi. - É MENTIRA! ELE MENTE!

- Carlos, eu não sou louca! Eu não falei...- Ele pousa seu indicador em minha boca. Eu me calo. Sua outra mão toca a minha nuca. De imediato, sinto um torpor tomando conta do meu corpo. Tonta, duvido de mim mesma. - Eu falei? Eu cheguei a falar daquela época a vc? - Ele faz que sim com a cabeça. Logo, eu aceito o que ele diz como verdade. - O que eu disse?

- Coisas sobre o seu tio e o comportamento inadequado de sua tia e de seu primo. Um tal de Ga'al. - Estremeço dos pés à cabeça quando o ouço pronunciar o nome do homem que fizera meu tio sofrer e minha tia enlouquecer durante dias de trevas. Eu sonhei com esse nome. Como eu posso ter dito isso a Carlos? Por que eu não me lembro? Por que eu sinto uma forte necessidade em confessar tudo o que se passou àquela época onde tudo parecia um grande pesadelo mergulhado em brumas? - Se não quiser, não fale mais nada. - Apazigua ele, puxando-me para si com o braço esquerdo apoiado em meus ombros. Meu corpo escorrega sobre o couro lisinho. Nossas pernas se encostam. Volto a sentir uma corrente elétrica tênue a percorrer meu interior. Meus pelos se eriçam. É tão relaxante...- Já leu este aqui? - Pergunta-me ele, depositando em meu colo um exemplar de "O Morro dos Ventos Uivantes". Passo a mão sobre a capa com o título em alto relevo, letras douradas. Uma edição antiga. Levo o livro ao nariz e aspiro o inebriante cheiro de folhas finas e amareladas. Por que ele mudou de conversa? Como ele conhece o maldito Ga'al??? Não fala mais nada. Sai daí! - Gostou?

- Amei, embora prefira o filme. - Ele me olha como se eu tivesse dito uma heresia. - E gosto ainda mais da música sinistra de Kate Bush. - Replico, rindo displicentemente. Ele solta uma gargalhada gostosa enquanto observo seu Pomo-de-Adão instigante. Insinue-se. Ele é seu. Vai. Não confia em seu taco? SHHH! - Qual é o problema? - Confronto-o. - Acaso, é pecado gostar mais do filme do que do livro?

- Pecado não. Só é raro que um filme seja melhor do que o livro, mas...- Ele dá de ombros, voltando a me olhar com ternura. - Isso acontece.

- Sim. Acontece. Certamente acontece. - Afirmo. Meus olhos voltados às páginas que vou folheando aleatoriamente, certa de que ele me analisa. É óbvio. Ele te acha louca. Ele ouve seus pensamentos. Os seus! Não os meus! Os seus são os meus, idiota. Some daqui. Sai da minha cabeça. Não posso. Sinto muito. Responde! Ele tá esperando! Olha como ele te observa! - É uma história marcante. Forte! - Opino, sentindo seu nariz aspirando meus fios de cabelo lavados com shampoo logo pela manhã. Isso é um tanto assustador, mas...eu gosto. Engolindo em seco, a custo, considero. - Eu amei a história de Heathcliff e Cathy. A maneira como a autora deixa fluir todos os sentimentos. No entanto, havia mais raiva durante a narrativa do que propriamente amor.

- Sério? É um dos mais belos romances que eu já li. - Ronrona ele, bem próximo ao meu ouvido. Exalo um longo suspiro e, ofegante com sua proximidade, retruco, batendo com o indicador em uma página qualquer.

- Pois eu te digo uma coisa, meu bem! Eu li e reli a porcaria deste livro e não encontrei um beijo sequer! Um beijo entre o casal! Vc acredita nisso??? Que tipo de romance é esse onde não rolam beijos ardentes e...- Hesito, fechando o livro num baque seco. - Beijos e...

- Sexo?

- Exato! - Seus dedos tamborilam compassadamente sobre a capa dura do livro em meu colo. Acompanho o movimento de seus lábios enquanto ele insiste, parecendo querer me irritar.

- Vc considera sexo um tema absolutamente importante dentro de uma trama? - Diga algo inteligente. Não consigo pensar. DIABOS! Será que ele poderia se afastar um pouquinho antes que eu me derreta como um sorvete em seu sofá? - Sexo é assim tão importante pra vc?

- Em um romance como o deles? - Desconverso. - Certamente. Eles se odiavam. Brigavam o tempo todo. Ao menos um beijo deveria ter rolado! O leitor precisa ter um momento de...

- Prazer? Sexo e prazer são tão importantes em sua vida ou nos livros que lê?

- Carlos! Tenha dó! - Afasto-me dele, devolvendo-lhe o livro. Cerro os punhos apoiados em minhas coxas unidas. Com a voz titubeante, indago. - Vc está querendo me deixar sem graça? - Ele conseguiu, sua burra. Eu disse que não sabe conversar com homens como ele. Vc é rasa. Rasa é o cacete! Vaza! - Pode desistir, meu bem. Sou expertise em sexo...digo, livros. - Comprimo os olhos, sentindo as mãos ensopadas de suor. Seu silêncio em nada me ajuda. Logo, compreendendo a merda que acabo de falar, tento remediar. Vamos ver se consegue. - Em se tratando de livros, eu sou uma expertise. Meu tio me ensinou a gostar de ler.

- Expertise em livros ou em sexo?

- Como??? - Pergunto, olhos arregalados, narinas infladas.

- Vc é expertise em livros ou em sexo? - Repete ele a pergunta dando ênfase a todos os "erres" e "esses". Suas mãos cobrem as minhas, seu olhar invade minha alma obscura. Sua voz é segura e grave. O semblante sério quando sussurra. - Não há nada que vc queira me dizer? - Puta merda! EU TE DISSE! ELE SABE!

- Tu tá de sacanagem comigo??? - Explodo, ejetando-me do sofá. O livro se joga contra o chão. Chuto a vassoura em meu caminho tomada pela raiva que sinto de mim mesma por não confessar o que ele deveria saber antes de me abrigar: EU SOU A PUTA QUE TIRA A ROUPA TODAS AS NOITES PRA PAGAR POR MINHA ESTADA EM SUA CASA! E GOSTO DISSO! Penso enquanto vou marchando até a sala de estar onde ligo o aparelho de som no último volume. O 'Grande Telepata' não ouve pensamentos em lugares barulhentos.

Lembra?

Bem pensado.

Sintonizo em uma rádio especializada em músicas antigas. Retiro os óculos do meus rosto, num gesto brusco. Num desatino, arremesso-o contra o sofá. A mão de Carlos o salva a tempo de não se espatifar no chão de tão velho e usado que está. Meu tio insistia para que encomendássemos outro, mas...ele adoeceu e foi se perdendo de mim e eu, o interesse em ter óculos novos.

- Fica longe! - Aviso num berro, absolutamente fora de controle. Inspiro e expiro, de costas para ele. Exulto, em silêncio, ao ouvir Kate Bush cantar "Wuthering Heigths", música baseada no filme "O Morro dos Ventos Uivantes", ecoando pelos quatro cantos do cômodo. Isso é muita coincidência ou ele planejou tudo? Isso é uma estação rádio, anta. Não um CD. Ah! É. - Não fale nada! - Ordeno, ainda que ele nada tenha dito. Por que o livro do Pai da Bruxaria, São Cipriano, está lá em cima, onde eu não posso alcançar? Além de telepata, seria ele um bruxo? - Essa música mexe comigo...- Penso alto, o olhar distante. Lá fora, as árvores balançando ao sabor da brisa mansa e fria do inverno. Uma lufada de ar gélido encontra meu rosto. Sorrio por me lembrar de minha tia que amava os elementais. Em especial, os do Ar. - O Sudoeste.

- Giulia. - Sinto sua mão em meu ombro. Expiro pela boca deixando que a música me invada por completo. Lembro-me das aulas de Ballet onde ensaiávamos com essa mesma música durante um mês inteiro. Eu era a bailarina preferida da professora que dizia amar o meu jeito peculiar de misturar a delicadeza do Ballet ao gingado 'caliente' das músicas latinas. Meu tio me aplaudia a cada salto que eu dava sem se importar em ser o único homem entre as mães bestas e ricas, sentadas ao lado dele, à espera de suas filhas. Carlos não retira a mão de meu ombro antes de me pedir desculpas. - Eu não queria te deixar sem graça. Só queria te descontrair, mas não sou bom nisso. - Assume ele exalando um longo e triste suspiro. Por um triz, eu não beijo sua boca. - Eu não sei conversar com vc sem te chatear. O que eu faço? Eu não sei. - Por Baco! Ele está tão fofinho assim, indefeso. - Não tenho amigos. Cresci sozinho. Vc é minha única amiga e eu te quero tanto! - Giro nos calcanhares, eufórica. Dos meus olhos saem faíscas, a boca entreaberta, o coração num 'tum tum tum' quase tão alto quanto a música. - Digo...eu te quero tão bem! - Corrige-se a tempo enquanto eu diminuo como Alice no País das Maravilhas a fim de entrar na portinhola do inferno. Como que um "Te quero tanto" se transforma em um tosco "Te quero tão bem" assim, sem mais nem menos? PRO INFERNO! Segurando-me pelos braços, impedindo-me de me afastar dele, Carlos me pede. - Me ensina a lidar com vc. - Permaneço muda, a cabeça baixa enquanto penso no que dizer. Mordo o canto da boca, francamente desapontada. É óbvio, imbecil. Ele não te quer do jeito que vc o deseja. Creio que ele acaba de deixar bem claro que ele só te deseja como amiga. Uma irmãzinha. Isso não é verdade. Ele pode ser mega tímido. Só isso. Ah, tá! Há quanto tempo estão juntos na mesma casa e nada??? ACORDA! - Me perdoa? - Ergo-me nas pontas dos pés e, curiosa, falo em seu ouvido. A música ainda rolando, o som nas alturas.

- Vc já sabia que tocariam essa música ou foi mera coincidência? - Abrindo um sorriso que quebra todas as minhas resistências, ele confessa.

- Claro que não. Sou telepata. Clarividente aqui é vc. - Seus olhos brilham e eu me vejo neles. - Eu também gosto dessa música. Ela se parece com vc. - Diz ele, aumentando o tom da voz a fim de ser ouvido. Nossos dedos se entrelaçam enquanto ele se explica. - É tão louca e cheia de paixão como vc.

- Sério?! - Rio, abobalhada sem tentar me desconectar de suas mãos que me passam confiança, calma e uma alegria que jamais sentira nesta vida. Há algo nele que me faz querer continuar viva. Que me faz querer permanecer aqui, ainda que ele não me queira. - Vc sente o quão louco era o amor de Heathcliff e Cathy quando ela canta?! Vc percebe que Cathy era tão louca por ele que, mesmo após a morte, ela não o quer deixar?! - Ele assente com a cabeça, enlaçando-me pela cintura. Nossas mãos unidas estão em minhas costas. Eu me deixo conduzir por ele e, em segundos, estamos nos movendo lentamente, ouvindo o estribilho que ele sussurra em meu ouvido.

- "Heathcliff, it's me. I'm Cathy. I've come home.". - Encostando sua bochecha à minha, ele confessa, irreverente. - A letra é assustadora.

- É. Esplendidamente assustadora. - Concordo, recostando minha cabeça em seu peito. Seu coração está ribombando. Quero pensar que seja por mim, mas, não quero ter muitas esperanças. Por vezes, viver de ilusão é menos doloroso do que conhecer a verdade. Se eu o perder, o que vai ser de mim? Enlevada pela música e pelo momento mágico em pleno dia de semana, em meio à faxina interrompida, cantarolo, fantasmagoricamente. - "Ooh, let have it. Let me grab your soul". - Rimos juntos de minha voz desafinada e da maneira como nos movimentamos. Somos dois bonecos de madeira movendo-nos como os ponteiros de um relógio. - Vou te ensinar a dançar. - Digo num tom de ameaça. Nossos olhos se encontram, então, penso em trilhões de coisas bonitas para se dizer e me odeio quando digo. - Quando eu morrer, não sei se conseguirei me afastar de quem eu amo. - Sua testa se encosta à minha. Estou a um passo do paraíso e não sei o que fazer. BEIJA ELE. Nunca! Eu não vou estragar tudo agora. Quero fazer a coisa certa com ele. Vc não me entende? NÃO! Beija ele e o puxa para a cama, idiota! É dessa forma que vc conquista os homens, lembra? - Vc me acha louca?

- Um pouquinho. - Diz ele, franzindo o nariz. - Mas eu adoro isso em vc.

- Se vc amasse muito alguém aqui na Terra, após sua morte, assim como Cathy, acompanharia esse amor eternamente?

- Nunca pensei nisso - Responde ele, sua boca tão próxima à minha que sinto o calor de seu hálito de pasta de dente. - Acho que, por vc, eu o faria.

Puta merda! Ele gosta de mim. Ele gosta de mim. Ele não gosta, besta. Ele quer te levar pra cama. Vai! Vc é tão burra que me irrita. Nem todos os homens são como o Fernando. Ele é diferente. Vc não enxerga isso? NÃO! VAI PRA CAMA COM ELE! VAI PRO INFERNO VC! - Giulia, vc tá bem?

- Sim...- Suspiro contra seu peito. Inspiro seu perfume amadeirado. Ouvindo sua voz que me diz gostar da música seguinte. Kate Bush cede lugar a Elvin Bishop com sua canção lenta e cheia de gingado. Logo noto o quanto Carlos gosta dela porque ele começa a cantá-la baixinho, o que me excita. Amo homens que amam uma boa música. Principalmente, as antigas. "I Fooled Around and I Fell in Love", cantarola ele enquanto eu imponho o meu ritmo a ele. Yesss! Enfim, estamos dançando e e formamos um ótimo par!

- Vc gosta dessa música. - Afirmo sem me descolar de seu corpo junto ao meu. Sentindo meu coração se encher de ciúmes e com medo da resposta pergunto baseando-me na letra da música. - Já brincou com os sentimentos de alguma garota e acabou se apaixonando por ela? - Comprimo meus olhos com a cabeça em seu peito, implorando que ele diga que jamais se apaixonou por alguém antes de mim, mas...isso é querer demais. Finalmente, bom senso. Vc não é o tipo de garota por quem um homem como ele se apaixonaria. Por favor. Cala a boca. Some da minha mente. Me deixa aproveitar. - Carlos?

- Tô pensando. - Diz ele, roçando a ponta de seu nariz em meu pescoço. Posso jurar que ele encostou seus lábios em minha nuca, mas, talvez tenha sido por acaso. - Nunca. Nunca mesmo.

- Nunca se apaixonou ou nunca magoou uma garota?

- Nunca me apaixonei antes. - "Antes". Isso pressupõe que, agora...- Eu não brinco com os sentimentos de ninguém, Giulia. Quando eu gosto, é pra valer.

- Compreendo. - Pigarreio, confusa. - E...- Compreende nada! Fala logo! Para com essa babaquice! Leva o homem pra cama! CALADA! - Vc está aberto à novas experiências? Tipo...

- Me apaixonar? - Assinto com a cabeça porque não consigo verbalizar o que estou sentindo. Então, o que ouço a seguir me faz paralisar, interrompendo nossa dança. - Eu não estava, até encontrar uma mulher tão louca, linda e singular quanto a Cathy. - Aimeudeus. Aimedeus. Essa sou eu? Diz que sou. - O que acha?

- O quê??? - Ele tá ouvindo? Não sei. Ele tá ouvindo? Vc não disse que ele não ouve em ambientes barulhentos? Ele disse. Vc disse. Disse porque ele disse. Cacete. DIABOS! Diz que sou eu! - Achar do-do que exatamente?

- Giulia, eu te procurei e te achei por um único motivo. - Isso não te parece estranho? Ele te procurar e te achar? Presta atenção às pistas. Ele procurou! Acorda! Pode ser um psicopata! - Tá me ouvindo?

- Sim. - Digo enquanto meus braços o enlaçam pelo pescoço. Odeio essas vozes. Odeio minha confusão mental. Odeio ser tão insegura e só me sinto protegida aqui, em seu abraço de onde não vou sair até ouvir...

- Vc é especial para mim. Muito. Mais do que imagina. Mais do que qualquer outra tenha sido. E eu não quero te perder. - Isso significa que vc...? - Vc é a minha "Cathy". Posso ser o seu "Heathcliff"? - POR SAN JUAN DIEGO! Ele não poderia ter dito que me quer de outra maneira mais esplêndida do que essa!!! Estremeço-me de contentamento, ouvindo seu riso curto, emendado a um suspiro. - Entendeu?

- Uh-hum...- Murmuro, encolhendo os ombros, os maxilares doendo de tanto sorrir. Ainda bem que ele não me vê, aqui no espaço acolhedor entre seu ombro e pescoço. Quase não ouço minha voz quando afirmo. - Vou fingir que acredito.

Ele me puxa contra si e me abraça com força. Meus olhos se enchem d'água enquanto dançamos mesmo após a música terminar.

Eu nunca tive um momento como esse! Tudo antes fora manchado com lascívia, desejo impuro. Isso é novo e fantasticamente perfeito. "Case com um homem que goste de dançar com vc, meu anjo", aconselhava-me meu tio. "A Dança é a demonstração do Amor em movimento". E ele estava certo. Fernando era seco, oco. Com ele, eram somente beijos e sexo. Agora, estou dançando. Na verdade, me movendo como um "João Bobo", mas...é tão intenso! É esplêndido!

Volto meus olhos ao chão e fico ouvindo o som de seu coração que, talvez, bata por mim. Não dou espaço à voz irritante que me diz o contrário. Quero continuar em seu abraço e não estragar tudo isso com um beijo roubado ou forçado.

Fico em paz.

Num repente, ele me afasta, erguendo o seu braço direito, sua mão segurando a ponta do meu indicador. Ele pisca para mim, puxando meu braço para cima. Logo, entendo sua 'deixa' e ensaio uma pirueta. Giro em câmera lenta, sentindo que meu coração quer sair pela boca. Olho para ele. Há algo extremamente familiar em sua reverência impecável e em seu beijo no dorso de minha mão. Quase posso jurar que estamos ao ar livre, com outras roupas, em outra época. Digo "quase" porque não consigo tirar meus olhos de sua boca aberta em um sorriso pacífico.

Arrisco-me a afirmar que estamos felizes e...unidos.

- Minha Cathy. - Diz ele, os olhos marejados e uma expressão insondável em seu rosto másculo e sereno.

- Heathcliff...- Sussurro, sentindo um aperto no peito. Saudades do que ainda não vivi.

Dizem que a felicidade é feita de raros e céleres momentos. Esse é um deles.

Vou guardá-lo para sempre dentro da minha "Caixinha de Memórias".

***

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Saio do palco, passo pelas cortinas de miçangas mais brilhantes e coloridas do que nunca.

- Obrigada, querido. - Digo, pegando meu roupão branquinho e fofinho das mãos de Thiago, vulgo "Perla", a quem dou aulas de Ballet em minhas horas vagas. Thiago é uma gracinha de pessoa. Homossexual, saíra de casa por não suportar tanta humilhação e violência vindas de seu pai que não o aceita. Adoraria chamá-lo para morar comigo, mas...eu não tenho casa e, pedir isso a Carlos me deixa super sem graça. Pressiono a gola do roupão contra meu nariz, aspirando seu perfume peculiar: o cheiro do meu homem que, por um pequeno detalhe, ainda não é meu.

- Vc o ama. - Afirma Perla, extasiada com seus olhos de um verde fascinante.

- Muito. - Reviro os olhos e ambos soltamos uma gargalha meio que histérica. Beijo suas iniciais bordadas em preto: "CC". Carlos Conti. Italiano, como meus tios. Como eu. Vc? Italiana? Desde quanto? Por que não? Sono italiana! E eu irlandesa! Meu tio era italiano! Nem 'seu tio' ele era! Eles me criaram como filha! Me deixa! Ademais, recuso-me a ser mais uma entre os milhões de indivíduos com o sobrenome "Santos". Isso é tão corriqueiro.

Enfio meus braços nas mangas compridas, cobrindo meu corpo seminu. Perla abana a cabeça, compassiva. Ela já se acostumara às minhas conversas "comigo mesma". Abraço-me apertadamente, imaginando os braços de Carlos me envolvendo, sua boca na minha, minhas mãos se entranhando em seu cabelo...

- PUTA.QUE.PARIU!

- Te assustei? - Ouço a voz rouca e impregnada de luxúria. Cerro os olhos, contendo a ânsia de vomitar em seu terno todo trabalhado em Oxford, a camisa social branca com os três primeiros botões desleixadamente fora de suas casas. Os olhos avermelhados, provavelmente, de tanto beber. Devo confessar que ele continua incrivelmente lindo. Traços faciais perfeitos e um sorriso cafajeste que, estranhamente, já não me faz perder o fôlego. - Vc costumava gostar de me ver aqui. Dizia que minhas surpresas te deixavam excitadas. O que mudou, baby? - Baby é o cacete! Esse cara vai te ferrar de novo. Tô avisando. Se ele me ferrar, te ferra também idiota. - Aposto que não tem tomado seu remédio. Acertei? - Diverte-se ele, enquanto tento calar minha voz interior. Observando-me, ele continua. - Sei tudo sobre vc, baby. Seu olhos fixos no teto, a boca entreaberta, a expressão de abobalhada...- Ele puxa o ar entre os dentes e regurgita. - Esse jeitinho maluco que me deixa de pau duro. - Levando a mão entre as pernas, ele me olha com luxúria. Devo estar estampando meu nojo por ele quando o vejo franzir o cenho e me perguntar. - O que mudou, baby?

- O mundo mudou, o dólar aumentou. A guerra se alastrou. O Muro de Berlim caiu. - A imagem de Carlos e de seu olhar confuso quando dissera a mesma frase sobre o Muro de Berlim no primeiro dia em que me hospedara em sua casa surge em minha tela mental. Solto uma risada. Volto meus olhos a Fernando, carrancudo. Então, continuo. - O seu pai morreu. A sua mãe também e eu nada mais tenho a ver com a sua vida, meu bem! - Dou um nó em meu roupão na altura da cintura, levando a mão ao peito. Discretamente, cubro as letras bordadas no tecido atoalhado enquanto ergo meu queixo e, pela primeira vez em minha vida, ordeno sem nenhum resquício de carinho por ele. - Sai da minha frente porque eu preciso passar! - Rindo feito um louco, ele me impede de passar enquanto pulo de um lado para o outro tendo-o como obstáculo. Sinto-me patética imitando um jogador de basquete que marca seu oponente. - Sai, Fernando!!! - Empurro-o bruscamente com a lateral de meu corpo buscando, num desespero, seguir em direção ao meu camarim. Carlos vai chegar mais cedo à nossa casa e, se não me vir lá, certamente vai desconfiar de algo. Eu sempre dou um jeito de chegar antes dele e esperá-lo com o jantar pronto e um sorriso escandalosamente feliz em minha face. Hoje não pode ser diferente! Não mesmo! Logo agora que estamos perto de de de...de nada. Se vc não fizer algo, ele não vai se te deixar sair, meu bem. Por que vc não sai da minha cabeça? Por que não me diz algo útil? Chuta o saco desse babaca! Tá bom assim? CHUTA! - SAI, PORRA! - Obedeço a voz. O doce som de seu urro de dor fica cada vez mais distante enquanto apresso meus passos.

"Chute nos culhões!", alertava meu pai quando ele ainda me via como um ser humano e se importava com a minha segurança. Como eles devem estar? Minha mãe sequer escrevera uma carta a fim de saber onde estou. Quando faltar grana, ela volta a te procurar. Fica tranquila. - BEM FEITO! - Grito a Fernando que vem capengando ao meu encontro. - Nem morta eu te deixo entrar aqui! - Resmungo, braços esticados, apoiados na porta, a cabeça entre os braços, esforçando-me por fechá-la pelo lado de dentro do cômodo. Fixo meus olhos no chão. Descubro o que me impede de me trancar aqui dentro. Seu sapato de grife sujo de lama nas laterais está entre o batente e a porta. Filho da Puta. Ouço seu riso infantil. O mesmo de quando ainda éramos 'melhores amigo de infância'. De quando jogávamos bola juntos. Soltávamos pipa juntos. Voltávamos à casa de meus tios tão sujos que a tia não nos deixava entrar antes de retirarmos o 'grosso' (como ela costumava dizer) debaixo do chuveirão na área da piscina. Por que tudo mudou? Por que a vida dá tantas voltas? Por que ele se modificou tanto? Ou fui eu quem jamais o enxergara como ele realmente sempre fora? A Verdade não liberta. Castiga. - Sai, Fernando! Sai! Eu vou chamar o Doc! - Alerto, cedendo, aos poucos, espaço à sua força descomunal.

- Ele não está, babaca! Eu chequei antes de entrar!

- Foda-se! - Grito empurrando a porta com as costas. Ele vai entrar e vc sabe exatamente o que ele quer. Me ajuda! O que acha que estou fazendo! EMPUUUUUUURRA! O solado das botas vão deslizando no piso liso da sala, então, percebo que estou perdendo o jogo. Um pensamento me ocorre enquanto luto por não deixá-lo entrar, ouvindo seus gemidos e lamentos falsos do outro lado. Dizem que quanto mais alto, maior o tombo. Talvez, isso se aplique à Força. Nunca fui boa em Física. Abrindo um sorriso macabro, resolvo por em prática a minha teoria: Quanto maior a força empregada para abrir uma porta, mais rápido... - Quer entrar??? - Provoco-o, puxando, de súbito, a maçaneta, escancarando a porta. - Fique à vontade!

Curvando-me de tanto rir, assisto Fernando voando contra o armário de ferro onde guardamos nossas fantasias.

Seu corpo rola sobre o piso como bola de futebol. A cabeça quica quando encontra a porta de metal. Tonto, ele escorrega feito tinta até o chão.

- Caralho! Pra que isso? - Pragueja ele, espanando com as mãos sujas seu terninho pomposo. - Vc não era assim, baby.

- Para de me chamar de 'baby'! Quando eu era sua 'baby', eu já não gostava de ser chamada de "baby". Agora que, definitivamente, não sou mais a sua 'baby', gosto menos ainda. - Aviso, atrás do biombo, procurando ser o mais ligeira possível enquanto ele ainda está no chão porque sei quais são suas intenções. Eu o odeio. Odeio aquele olhar nojento de cobiça. Tão diferente do olhar do homem que amo e que, um dia haverá de me amar também. - Fica longe! Tô com pressa! - Já vestida, mergulho meu rosto na água fria na pia do banheiro. As mãos em concha lavam meu rosto. O sabonete retira a maquiagem pesada. Olho-me no espelho. Vejo o reflexo de Fernando atrás de mim. Um estranho e inconveniente sentimento de piedade rasga meu coração. Não se atreva a ter pena deste verme! Ele mudou. Sim. Ele mudou. Não importa. Sai daqui antes que a gente se dê mal, sai daqui. Não existe a gente. Eu sou eu! Vc é eu. Eu sou vc e eu não quero ser estuprada novamente. Volto a olhar seu reflexo ainda atrás de mim. Ele me observa como o caçador observa sua presa. No entanto, é um olhar triste. É. Ele está mais triste ou menos alegre. Sei lá. Parece cansado, desanimado. Eu o vejo suspirar e, logo em seguida, ele confessa.

- Senti tua falta, baby...digo, Giulia.

- Problema seu. - Resmungo, enxugando o rosto, jogando a toalha sobre a pia. - Não me toca!

- Não vou te machucar. - Defende-se ele quando toca meu ombro, beijando minha nuca. Involuntariamente, encolho meus ombros, retorcendo a boca num claro gesto de repulsa. Sua voz vacilante me diz. - Vc não tem saudades? Não sentiu minha falta? Quando vai se cansar desse joguinho e voltar pra nossa casa?

- Meu bem! - Rosnando, giro nos calcanhares, encarando-o...PUTA MERDA! Desvio o olhar de um ser com feições cadavéricas que se esconde por detrás de seu ombro direito. Não preciso vê-lo para sentir o que deseja. Ele fede. Engole o medo e sai daqui. Vai! Não tenho medo. É que...foi de repente. Que saco! Assustada, prossigo. - Não existe 'nossa casa'. E eu não estou jogando. Tô tentando recomeçar...viver. - Esboço um sorriso ao me lembrar de Carlos, o que faz Fernando cerrar seus lindos olhos raivosos. Não quero mergulhar na Escuridão novamente. Não mesmo! Logo, finjo não escutar o ruído de estática que sai da boca enormemente disforme do morto que o acompanha. - Fala o que tem pra falar e some da minha vida! - Cruzo o batente da porta, mochila nas costas, óculos no rosto e uma agradável sensação de liberdade. Enfim, já não pertenço a esse homem que me fizera tão mal ou ao seu mundo cheio de espectros. Enfim, começo a perceber que sou melhor do que imaginava ser. Melhor do que ele me fazia crer que eu era. Existe alguém que acredita em meu potencial. Alguém que me olha com ternura. Alguém que me espera em casa para comer ao meu lado e conversar sobre o seu dia. Alguém que deve ser gay porque até agora não te levou pra cama. MENTIRA! - Fecha a porta do carro, Fernando. Eu não vou entrar! - Passando entre ele o morto, complemento. - Vou de ônibus. - Aflita, apresso o passo em direção ao ponto. Ouço o baque surdo de seu coturno atrás de mim. De esguelha, vejo o vulto fantasmagórico a me perseguir. Mais do que vejo, eu o sinto. Sinto sua intenção nociva. Um arrepio percorre minha coluna vertebral um pouco antes de ter a cabeça bruscamente puxada para trás. Sua mão pesada puxa, com firmeza, meu rabo-de-cavalo. Grito de dor e raiva, caindo de costas na calçada molhada. Mais uma vez, a mochila amortece a queda.

- Que porra é essa de me tratar assim?! - Vocifera ele, agachando-se ao meu lado enquanto arrasto meu corpo para longe dele e de quem o acompanha. Meu olhos vão dele ao morto e do morto a ele. É quando ele se sente incomodado e gira o pescoço para os lados, sem nada ver. - Giulia!? - Grita ele, entre irritado e desconfiado. Um movimento ligeiro e, com as mãos e pés no chão, como uma fera acuada, aguardo o ataque...de ambos. A mochila nas costas me faz parecer uma tartaruga gigante. Inflando o peito, ele me interroga. arrogante. - Aprendeu com quem a ser gente? Com o Doc? - Esboço um sorriso vitorioso o que o faz baixar a cabeça e me lançar um olhar diabólico ao perguntar. - Vc não tem outro, tem? - Ainda agachado como um corvo sobre um galho ressequido, ele me analisa friamente enquanto prossegue. A voz baixa para não chamar a atenção. Covarde. Ele sempre foi assim. É fácil subjugar uma mulher. E, se tiver ajuda do 'Outro Lado', mais fácil ainda. Carlos, vc me ouve? Me ajuda. - Baby, de onde tirou a ideia bobinha de que pode me deixar e recomeçar do zero? Não mesmo, piranha. Vc é minha. Sempre foi. Não tem como deixar de ser.

- Não sou mais. - Afronto-o, a voz vacilando, o coração batendo em descompasso, um suor frio brotando na base da nuca. A dor latejante nascendo no meio das costas me indica a presença de espíritos. É sempre a mesma dor quando algo de sobrenatural se aproxima. Uma sensação de inflamação na base da região torácica. Mal consigo respirar quando o enfrento. - Agora eu sou outra. Outra em quem vc nunca mais vai tocar ou machucar ou vender. - Calo-me, erguendo-me lentamente. Ele repete o gesto e fica diante de mim. Num repente, suas mãos pressionam minhas têmporas. Sua boca bem próxima à minha. Minhas costas (ou melhor, a mochila) contra a parede de um prédio em construção. Ao passo em que fala entredentes, suas mãos vão comprimindo meu crânio.

- Eu dei um tempo pra vc pensar, baby. Pronto. Acabou. Entra no carro. Agora.

A rua está deserta e fria. Meus olhos atônitos procuram por socorro em vão. Seu hálito de uísque o torna ainda mais repulsivo. O ser que o acompanha se faz mais visível. É tão lascivo quanto Fernando. Ele fede. Fede à carne podre misturada a álcool ou a algo inflamável. - Vc volta hoje pra casa...comigo, entendeu? - Sussurra ele, enfiando sua língua em meu ouvido. - Tá excitada, baby? - Infeliz. O que eu perdi durante o tempo em que me sujeitei a ficar com ele? Todas as oportunidades que ele me tirou. Os homens com quem me deitei somente por satisfazê-lo. As surras, a violência contra o meu corpo e minha autoestima. O sumiço do meu professor de Ballet. Meus estudos em Juilliard. Suas mãos assassinas no pescoço do meu tio. ASSASSINO!

- Não! Para! - Repentinamente suas mãos pressionam a minha cintura. Tá doendo. Golpeio seu antebraço com toda a força, o que o faz rir e se empolgar. Tento me libertar de suas mãos pegajosas, de sua boca ainda perfeita, no entanto, desprezível. Ele percebe o quanto o evito. Longe de se agastar, ele solta uma risada sinistra e fica me encarando com os olhos faiscantes de ódio. Dá medo porque o conheço. Conheço sua força quando tomado por sentimentos de vingança ou por um desejo incontrolável ou pelos bestiais que sempre estiveram ao seu lado. Estou só. Absolutamente só. Queria Carlos aqui para me proteger e acabar com a vida desse puto. Mas ele não está aqui, meu bem. Logo, seremos nós duas a darmos cabo dele. Não dá. Ele é forte, medonho, psicopata. Use sua raiva. Ela é minha também.

Sua mão empurra meu queixo para cima. Sinto a forte pancada da cabeça contra a parede. Não há nuvens no céu. As estrelas nos observam, imparciais. Volto à adolescência quando, por não querer que meus tios soubessem o quão monstruoso era seu filho, submetia-me calada aos seus caprichos. Eu não queria voltar ao inferno que era a casa de meus pais biológicos e, definitivamente, meu tio não suportaria a verdade ou...talvez até desconfiasse dela. Havia algo em seu olhar quando o lançava ao filho. Temor misturado à piedade. PARA DE PENSAR E AJA! Vc não é a garotinha dele. Nós não somos! Faz alguma coisa. EU PRECISO DE SUA FORÇA! Rindo de mim, ele afirma, triunfante. - Vc deixou de tomar seus remédios, baby. Eu te conheço. Tá falando com 'as vozes'? Diz pra elas que vc é minha e nunca vai deixar de ser. - Meu corpo se sacode, repelindo seu toque. Urrando, tento mover as minhas pernas, erguer o joelho, porém, seu corpo está tão colado ao meu que se torna impossível qualquer movimento. Abro os olhos desmesuradamente. Um gemido escapa por entre os dedos de sua mão tapando minha boca. Arrependo-me de ter vestido uma saia. Eu queria impressionar Carlos, mas, agora, é tarde. Dois dedos de sua mão livre estão forçando passagem entre minhas pernas mantidas abertas por sua coxa. Sua mão tateia, bruscamente, minhas partes íntimas. Isso não é seu! NÃO MAIS! PARA! Eu me guardei pro Carlos, seu sujo. Para. "Há Alguém aí em cima? Me ajudem", peço às estrelas. VERME. Chuta o pau dele. Faz alguma coisa!!! - O que estão dizendo agora, baby? Fala. - Pede ele encostando sua boca ao dorso de sua mão que me sufoca. Seus olhos azuis estão escuros como a noite. Como pode? - Aaah...perdão. Vc não pode falar. Eu tô te impedindo? - Ironiza ele, imprimindo mais força à mão. Movendo seus dedos dentro de mim. - Tá apertadinha. - Cerro os olhos, movendo meu rosto para o lado. Sua língua lambe minha bochecha. Elevo os olhos às estrelas. Nenhuma ajuda. Sinto-me impotente e vencida. Onde está o meu amigo de infância? PORRA! Ele matou seus gatos dentro de um saco! Ateou fogo no saco com os bichinhos ainda vivos! Ele sempre foi essa merda. Acorda! Faz alguma coisa! - Responde! Ama ou não ama?

- Tira a mão. - Imploro quando ele me deixa respirar pela boca. - Por favor, não me machuca. - A voz sai rouca da garganta seca. Meu pescoço está dolorido. Minha pele, sensível. Ele sorri. Eu mostro meus dentes segundos antes de atacá-lo. Com os olhos arregalados, ele recua, perplexo com o sangue no dorso de sua mão que acabo de morder como um cachorro louco. Há gosto de sangue em minha boca. O morto desaparece. - Filho da puta. - Cuspo, enojada. Ele dá dois passos em minha direção. Há fúria em seu olhar. Sei o que virá a seguir. Então faz alguma coisa. USA A RAIVA A SEU FAVOR! Olho ao redor. Dou três passos à direita e, antes que eu possa começar a correr e pedir por socorro, tropeço em seu coturno. Caio ajoelhada na calçada. Amorteço a queda com as palmas das mãos. Penso em Carlos.

"Me ajuda".

Um golpe certeiro na boca do meu estômago. Tombo para o lado, com as mãos na barriga. Encolho-me em posição fetal. Seguro o grito na boca porque ele se excita com o meu sofrimento. Um segundo chute nas costas. Esse golpe teria arrebentado meus ossos se a mochila não tivesse absorvido a metade do impacto.

- Vai pro inferno. - Murmuro, rindo de dor. Quando tudo isso acabar, vou lavar e cuidar melhor de minha "Super Mochila". Ela é a minha melhor amiga. Depois de Carlos. Claro. ACORDA. LEVANTA. PARA DE PENSAR AGORA. Obedeço a voz que não sai da minha cabeça. Parei de tomar os remédios há meses. Por que agora ela retorna? PUTA QUE PARIU. Já sei! Já sei! Vou fazer. O quê??? Não sei o que fazer. Tá doendo. Olha para o lado. Olho. Viu? Abro um sorriso maligno enquanto minha mão agarra, com força, uma pedra solta do calçamento. Pesada? É. Pesada.

- Tá rindo de quê? Gosta de apanhar, vagabunda? - Enquanto ele se agacha e puxa meu cabelo, seu olhar perplexo acompanha o trajeto da pedra que o atinge bem no meio de sua testa per-fei-ta.

Sem enxergar, com perfeição, graças ao sangue que brota do ferimento e escorre pelos olhos, ele tomba para trás. - Giulia, volta! - Grita ele. Mais parece um lamento. Não se atreva a parar! Ele não vale nada! Corre!

Com as palmas das mãos sangrando, agarro as alças da mochila heroica e tomo o primeiro ônibus que surge rompendo a escuridão.

***

- Vc nunca mais vai me tocar, seu merda. - Digo ao meu reflexo na janela da cadeira onde me sento. - Nunca mais...

Nunca diga nunca, meu bem. Cala a boca. Já falou muito hoje. Eu salvei o dia. Eu salvei. Vc sou eu. Ah! Chega! Não. Não. Não ponha os fones de ouvido! Vc precisa...

VÁ PRO INFERNO!

****

- Arde. - Digo outra vez porque gosto do jeito como ele assopra os arranhões nas palmas das minhas mãos. Por San Juan Diego! Já sofrera muito mais do que isso em minha vida, mas, a sensação de ser cuidada me faz tão bem que exagero! Nenhum homem além do meu tio me tratara assim. - Ui. - Exalo um suspiro, abrindo um sorriso frouxo quando ele encosta a haste do 'merthiolate' nos ferimentos. - Arde. Só um pouco. - Enrugando o nariz, respondo à sua pergunta, tentando disfarçar a batucada frenética dentro de minha caixa torácica. Não tem jeito. Ele me conquistou. Sou totalmente dele, ainda que não o seja. Por que ele não te quer. Pelo amor de Deus, me deixa em paz. Eu quero ficar em paz. Eu não quero briga. Apenas uma decisão, meu bem. Vai ou não vai? Eu não sou mais a mesma. Eu quero mudar. Não vai conseguir e vc sabe disso. Para. Não posso. Preciso abrir seus olhos. Vc é uma puta e putas não mudam. Eu mudo! QUERO MERECER O RESPEITO DELE E VOU CONSEGUIR! - Oi. - Abro meus olhos questionadores encarando sua expressão de incredulidade.

- Algum problema? Tá doendo muito? Eu posso parar.

- De maneira alguma. - Afirmo enquanto, controlando minha respiração, sorrio a Carlos que, após limpar as feridas da queda, enfaixa minhas mãos com a ternura dedicada a uma princesa ou a uma florzinha delicada que pudesse se desmanchar a qualquer momento. Pigarreio meio que desajeitada quando ele, inclinando a cabeça para baixo, sem olhar em meus olhos, beija meus dedos. Aproveito sua cabeça próxima ao meu nariz e aspiro o suave perfume de seu cabelo. Inebriada pela paixão, reviro os olhos. Ele ergue seus olhos exatamente neste instante, elevando o canto da boca. Sinto minhas bochechas em chamas quando desisto de controlar o movimento de fole do meu diafragma. - Pêssego? - Arrisco.

- O quê? - É óbvio que ele me pegou no flagra, então, creio que inventar algo que explique o fato de ter cheirado sua cabeça será pior do que a verdade.

- O shampoo. - Esclareço, acariciando seus fios curtos e sedosos. - Uma delícia. - Ele morde o canto da boca, gesto que indica timidez e que me deixa eletrizada. Não sei se desejo beijá-lo ou deitar sua cabeça em meu colo e lhe fazer um cafuné. Jamais tivera esse tipo de intimidade plácida com qualquer homem. É algo tácito que não quero quebrar. - Vc tá rindo porque me ouviu ou porque me acha boba?

- Nenhuma das opções. Eu não te ouvi. Não agora.

- Ah, tá. - Ironizo. - Ao menos, alguns segundos de privacidade. -Rindo, ele me confessa.

- Vc me faz rir como ninguém faz. Quando fico perto de vc, eu me sinto mais jovem e bobo.

- Isso é bom! - Festejo. - Acho que o mundo precisa de jovens e bobos como nós. Há tantas trevas por aí. Vc não acha? - Antes mesmo de terminar a pergunta já me sinto uma tola. Claro. Ele ri de vc e não para vc. Ele ri comigo. Ele gosta de estar comigo. Eu não sou boba. Dá pra sentir. Ele gosta da amiguinha de quem ele cuida, mas, com quem não quer transar. Para. Para com essa coisa de sexo. O quê??? Virou santa??? - Para...por favor. - Deixo escapar o lamento. Levando as mãos aos ouvidos, baixo a cabeça por alguns segundos. Conto até dez em silêncio embora meus lábios se movam. - Acho que tô com otite. - Minto, desviando o olhar aflito ao chão. Minha visão se embaça e então volto ao passado. - Eu sempre tive otite quando criança. Minha tia ralava comigo pra lá e pra cá. Meu tio não dormia durante a noite porque eu chorava de dor. Vc já teve otite? - Lanço a pergunta no ar. Nossos olhos se encontram. Sua expressão é de quem não acredita em nenhuma palavra do que digo. Tipo...não no que estou contando, mas no porquê de estar contando essa história justamente agora quando, obviamente, mostro-me incomodada. No entanto, eu continuo porque estou nervosa. Não quero que ele ouça meus pensamentos tampouco os de outros. Já era. Olha a cara dele. Acha que vc é louca. Acertou. Para! SOME! - Vou comprar um anti-inflamatório. - Declaro num tom de voz mais alto. - Tá piorando!

- Giulia, meu anjo.

- Meu tio me chamava assim. - Observo, flexionando e relaxando os dedos das mãos devidamente tratadas. Olho o curativo. Perfeito. Vc tem algum defeito? Por que me olha assim? É piedade? - Vc é tão bom quanto o meu tio. - Desconverso.

- Não sou não. - Sua voz grave e serena me acalma. - Sou um homem cheio de defeitos. Seu tio era melhor. Aposto. - De frente para mim, sentado em um banquinho de madeira, segurando minhas mãos com cuidado, ele franze a testa e, como se estivesse falando a uma criança de quatro anos, ele me pressiona.

- Giulia. Vc precisa ser sincera comigo. - Instintivamente, empurro, para trás. a cadeira onde estou sentada. Um ruído irritante e distancio-me dele que ergue a coluna e solta um longo suspiro antes de pedir. - Me diz a verdade. Sou seu amigo. O que aconteceu hoje? Como se machucou? Quem te machucou?

- Eu já te diiisse. - Resmungo, fixando o olhar distante em um ponto, à esquerda de seu quarto. A cama é grande. O edredom jogado displicentemente sobre o colchão. Provavelmente ele estava dormindo quando abrira a porta feito um touro bravo, correndo até o banheiro a fim lavar as mãos imundas e contaminadas, deixando para trás todo e qualquer vestígio do meu encontro sombrio com Fernando e seu morto de estimação. - Então. - Recomeço, revirando os olhos. aumentando, paulatinamente, a velocidade de minha voz como uma locomotiva saindo da estação. - Eu estava saindo da loja do shopping onde trabalho quando fui assaltada por um moleque.

- Moleque?

- Moleque!

- Qual o tamanho?

- Aaah! - Arregalo os olhos, respirando pela boca enquanto penso no que inventar. - Muito mais alto do que eu! Posso continuar ou vai me interromper com perguntas tolas? - Vendo-me agastada, ele emite um gemido, sorri e assentindo com a cabeça, pede para que eu continue...a mentir. - A gente brigou. Brigou feio. Feio mesmo. Ele me deu uma rasteira. Eu caí com as mãos no chão e quase quebro os óculos. Ele tentou roubar minha mochila. Não conseguiu. Eu sou esperta e rolei para o lado. Ele tentou novamente. Me xingou. Me chutou. Do chão, eu o chutei e, repentinamente, eu me levantei, puta da vida. Ele tentou me enforcar com aquela mão imunda. Fiquei mais puta ainda. Dei dois passos para trás e arrisquei...Pow! Chutei a cara dele.

- Chutou a cara dele. - Repete Carlos, completamente desconfiado.

- Sim. - Afirmo, reticente. - A cara dele. Por que não acredita? - Lanço a ele meu olhar flamejante e, de punhos cerrados, queixo erguido, enfatizo. - Fiz um ano de Kung Fu, meu bem. Meu tio insistia para que eu soubesse me defender de homens inescrupulosos, nojentos, lascivos, promíscuos, repugnantes, pedófilos, narcisistas, psicopatas, estupradores FILHOS DA PUTA! - Exagerei. Logo, silencio após meu descontrole. Levo a mão às costelas. Dói. Carlos nada fala. Apenas me observa, compassivo. Preferia levar um tapa no rosto a ter de mentir para ele. - Tô tão cansada. - Penso alto, abanando a cabeça, deslizando as mãos rosto abaixo. Ajeitando com os dedos, minhas sobrancelhas, eu o ouço falar num tom complacente.

- Eu sei, meu anjo. Eu sei. - Carinhosamente, ele me conduz em direção à sua cama. Puta merda. Ele me faz sentar no colchão onde me jogo feito uma adolescente em uma festa de pijamas. Quero sentir sua maciez, o cheiro dele impregnado no edredom. Uau...daria tudo pra ficar aqui, com ele, deitada, conversando por horas e saber de tudo sobre sua vida. Olha como ele te olha. Ele te come com os olhos e vc não vê. CADÊ SEUS ÓCULOS??? Se insinua! Não. Vc vai perder esse homem se não trepar com ele logo. NÃO, SUA VACA PROFANA! Não seja chula. - Deve ser cansativo ter de ouvir essas vozes o tempo todo.

- Vozes??? - Ergo-me, num repente. - Vo-vo. Vc as ouve também???

- Às vezes. Ouço frases soltas e desconexas de vc brigando consigo mesma. Então, eu imagino que não fale sozinha porque...- Interrompo-o, lacrimosa.

- Porque não sou louca?

- Não. Vc não é louca. Para de pensar isso de si mesma. As palavras têm poder. - Sentando-se na beirada da cama, ele me puxa para junto de si. Uma onda de alívio me invade por completo como uma ducha de água morna em uma noite fria. Deixo-me acolher por ele e, por incrível que pareça, ouvindo os batimentos de seu coração, paro de ouvir a voz que me atormenta desde meus quinze anos. - Vc pode me dizer se já foi ao psiquiatra pra ver o que são essas vozes? Já tomou algo pra dar fim a elas? - Envergonhada de meu passado obscuro e sem querer que ele descubra que tenho transtornos mentais, envolvo seu tronco com meus braços, mantendo-me calada. Recosto minha bochecha em seu tórax. Como um médico e seu esfigmomanômetro, ausculto a voz que vem de seu peito. Sua camisa de malha tem seu cheiro: sândalo. Ele corresponde ao abraço, acariciando o topo de minha cabeça como meu tio o fazia. Aaah...morreria feliz, agora, neste abraço. Otária. O que aconteceu com a boa e velha "Tiffany-Twisted"? Quando essa versão de menina virginal tomou conta de vc? Eu não vou estragar tudo porque vc quer. Vc sempre me dominou. Vc sempre me empurrou para o que eu não queria. Mentira. Vc gostava. Não minta. Gostava. Gostava da grana, do glamour, da sacanagem. Não minta. Diz. Diz que gostava. NÃO! - Giulia! Tá me ouvindo?

- Sim. - Falo contra sua blusa, sem ousar olhar para ele. Não quero ver sua expressão de decepção quando souber da verdade. Ao menos, da metade dela. Então, conto a parte da verdade menos comprometedora. - Tenho essa coisa de ouvir vozes desde minha adolescência, mas, piorou muito aos dezoito. Eu não sabia se as vozes vinham de fora ou de dentro da minha cabeça. Com o tempo e a prática, conseguia distinguir uma da outra, porém, sem que eu saiba o motivo, elas retornaram agora, com força, e eu não sei o que fazer. Àquela época, minha tia me levou a vários especialistas. Queriam me internar num hospital psiquiátrico. Eu não queria. Meu tio também não. Por minha tia, eu teria ficado no hospital. Meu tio foi quem convenceu o médico, que me diagnosticou como esquizofrênica, a me liberar. "Eu cuido dela em casa. Eu me responsabilizo por dar os remédios a ela". Foi o que ele disse ao doutor com cara de cu. - Carlos solta uma gargalhada e eu, sinto borboletas batendo suas asas em minha barriga. - "Diga que as vozes vem de dentro de sua cabeça. De dentro!", aconselhava-me o tio. Segundo ele, dizer que as vozes viriam de fora seria ratificar o diagnóstico e carimbar um passaporte para "A Fantástica Fábrica de Loucos" de onde não sairia sã ou viva. Mas, acho que de fora ou de dentro, eles me internariam de qualquer jeito. - Dou uma pausa. Engulo em seco. Ergo meu tronco. Olho para ele que permanece em silêncio, ao meu lado, na cama, atento à cada palavra que digo. Num súbito ataque de desespero, questiono. - Vc acha que sou esquizofrênica? - Seus dedos polegar e indicador afagam minha orelha.

Eu já disse que esse gesto me é bastante peculiar e mexe com toda a minha estrutura?

De imediato, sou transportada a um lugar onde há paz e aquele amor que ainda não senti. O uivo de um lobo. Os risos infantis. A brisa fresca do mar. As ondas...

- A gente já se conhece de algum lugar, Carlos? Parece que te conheço há séculos.

- Quem sabe? Tudo é possível. - Seus lábios se movem lentamente. Sua boca se abre num sorriso luminoso. - Giulia, por que parou de tomar os remédios? Eles te faziam mal? Vc acha que não precisa deles? Vc se acha forte o suficiente para controlar essa voz interior que briga contigo? Vc acredita que talvez não seja uma voz "interior"? - Meio que hipnotizada, respondo.

- Sim. Exatamente. Não creio que seja interior.

- Não?

- Não. - Cochicho em seu ouvido. - Meu tio conhecia a verdade. Ele sempre soube que ouço e vejo coisas e que minha tia se aproveitava disso para...- Arrepio-me dos pés à cabeça. Olho ao meu redor. Um medo infundado ameaça tomar conta de mim. Ele afaga uma mecha de meu cabelo. Vejo luz em seus olhos.

- Continua. - Incentiva-me ele, tocando a ponta do indicador num ponto bem no meio de minha testa. Confusa, porém determinada, obedeço.

- Ela se aproveitava do que ela mesma chamava de 'dons' para se comunicar com o 'Outro Lado', sob o domínio daquele primo dela, o filho da puta que fez meu tio sofrer. - Modelando a voz, falo como uma louca que quer convencer seu médico de que já está curada. - Ela queria falar com a filha morta. A filha morta. A pobrezinha da Isabella. - Estalo a língua, lastimando-me. - Ela não deveria ter morrido tão cedo. Meu tio escreveu em seu diário que sua morte não foi natural. - Insegura, aperto sua mão. Seus dedos se entrelaçam aos meus. Sinto-me confiante quando ele, suavemente, me impele a prosseguir. - Ele encontrou o corpinho dela de barriga pra cima. Como ela pode ter se sufocado dormindo de barriga pra cima sem nada em sua boquinha? - Ele vasculha meu olhar enquanto volto ao passado recente quando lia as memórias de meu tio. - Ele escreveu que havia vestígios de saliva na fronha do travesseiro dela largado ao lado do berço. Meu tio desconfiava de algo ou de alguém. Como ela poderia ter pego o travesseiro e se sufocado? Ela nem havia completado um aninho. Se havia saliva é porque ela babou e, se babou, deveria estar de bruços ou, ao menos, de lado para que a baba molhasse o travesseiro! Quem morre sufocada deitada de lado a ponto de ficar com a boquinha azulada? - Semicerrando os olhos espanto-me com minha própria astúcia. - Vc não acha?

- Concordo. De que seu tio suspeitava? - Uma dose incômoda de adrenalina é liberada em meu corpo quando penso no que lera. - A morte dela não foi natural, não é?

- Como sabe??? - Meu pescoço faz 'crack' quando volto meu olhar a ele. - Quem te contou???

- Vc. - Diz ele, naturalmente.

- Eu???

- Sim. No início da conversa. - Abanando a cabeça, bufo. Ato contínuo, bato na testa.

- É verdade. - Rimos alto e ao mesmo tempo, dissipando a atmosfera pesada que se formara sobre nossas cabeças. Cansada de tanto rir, suspiro. - Que anta que eu sou.

- Não gosto quando vc fala assim, Giulia. - Sua testa se encosta à minha. Engulo em seco, fecho os olhos e imagino que ele, de fato, gosta de mim. Se gostasse, te beijaria na boca. Agora. Não...- Quem te machucou assim, meu anjo? Fala. Eu preciso saber.

- Como vc vai de um assunto a outro, assim, num piscar de olhos? Assim vc me confunde!

- Não quero te ver triste e percebo onde quer chegar. - Ergo a sobrancelha esquerda, afasto-me, olhando-o de maneira suspeita. - Não estou certo?

- Sim. - Confesso em voz baixa. Como ele sabe que eu sei que foi o Fernando?

- É muito óbvio, Giulia. - Diz ele, roçando o dorso de sua mão em minha bochecha. Isso me faz voltar ao presente e a apreciar seus lábios que voltam a ser abrir para me apoquentar, repetindo a pergunta.

- Quem te machucou, Giulia?

- Pra que mexer com isso? Já passou. Eu sou forte. - Arquejo como uma virgem tola quando ele beija minha testa, minha bochecha e o cantinho de minha boca. Contraio as mãos, nervosa. O que vem agora? O que faço? Ele tá tão perto e tão longe. - Posso te fazer uma pergunta?

- Claro. - Pela segunda vez em uma mesma noite, alguém pressiona minhas têmporas. No entanto, Carlos o faz com carinho, delicadeza quando diz. - O que quer saber?

- Como vc me conheceu? - Agora é ele quem revira os olhos, bufando, entendiado. - Calma. Calma. - Ergo as mãos espalmadas, desviando os olhos de seu rosto para observar seu abdômen trincado. Como ele consegue arrumar tempo para se exercitar? Ele é tão perfeito. CONTINUA! - Ah, tá! Então. Eu sei que vc me viu naquela noite, no 'Italia mia' e me socorreu, mas, o que fez depois? Vc me procurou? Como eu te via nos lugares que eu costumava passar? Tipo...uma noite dessas, eu te vi entrando em um ônibus logo à frente do meu. Vc...- Pigarreio, limpando a garganta e logo disparo. - Me perseguia?

- Não. Claro que não. - Retruca ele, num tom divertido. Ele te esconde alguma coisa. Continua a futucar. Aí tem coisa. Me deixa raciocinar. Vc??? Raciocinar??? Deixa-me rir. - Eu te socorri naquela noite e te levei ao hospital. Simples assim.

- Sério??? - Ajeito-me sobre o colchão, virando-me de frente para ele. O colchão fofo me faz quicar. Meu coração ameaça pular pela boca. Com a mão sobre o peito, quero saber. - Foi vc quem me levou ao hospital? - Ele assente com os olhos tristes. - Então, aquela enfermeira que cuidou de mim falou a verdade??? Por San Juan Diego!!! - Bato palmas, quase histérica. - Foi vc quem pagou a conta e ficou comigo até que Fernando chegasse??? - Puta merda! - Wow! Isso foi tão fofo de sua parte! - Sorrindo, ele baixa os olhos. Suas mãos se enroscam como se ele as quisesse amassar. Creio que estou chegando aonde quero chegar. - Por que pagou??? Deve ter custado o olho da cara. Um não. Os dois. Onde achou tanta grana pra pagar uma conta monstruosa daquela??? Ai, Carlos. - Suspiro novamente. - Vc é tão bom comigo. - Instintivamente, toco em seu rosto. Quero me jogar sobre ele e abraçá-lo. Agradecer por ter feito mais do que qualquer outro homem fizera por mim. - Carlos. - Toco em seu queixo, fazendo com que ele olhe para mim. - Eu não tenho como te agradecer. - Tem sim. Transa com ele. Agarra esse cara com as duas pernas e joga ele na cama. Volta.pro.inferno. - Obrigada. - Olhando-me com benevolência, ele replica.

- Não me agradeça. Eu faria isso por qualquer outro ser humano. - PORRA!!! SÉRIO??? Pulo da cama como um gato escaldado. De pé, fico de costas para ele, tentando entender o que acabara de ouvir. Ele foi incrível. Fantástico. Altruísta. Heroico. Quase um santo e tudo em que consigo pensar é no que ele acaba de dizer: "Faria isso por qualquer outro ser humano". DROGA! Eu não sou qualquer ser humano. Eu sou a sua mulher. A mulher da sua vida. Vc não enxerga isso!? Indignada, giro nos calcanhares e como louca, movo meus quadris com as mãos na cintura.

- Por qualquer ser humano, Carlos??? Qualquer ser humano??? - Cerrando os olhos ele balança a cabeça de um lado para o outro, expressando cansaço. Foda-se. Pode se cansar de mim, mas não me faça de boba! Não me iluda! - Aaah! Pelo amor de Deus!!! Qualquer ser humano, Carlos???

- Não! - Aturdido, elevando as mãos como se estivesse diante de um assaltante, ele refaz a sentença, imprimindo calma à voz. - Eu quis dizer que ajudaria a qualquer ser humano, no entanto, vc é diferente. Completamente diferente, Giulia! - Erguendo-se da cama, ele caminha em minha direção. Suas mãos úmidas de suor apertam meus braços. Seus olhos súplices me encaram. Isso é nervosismo? Por quê? - Porque vc é especial. Sempre foi. Sempre será. Eu faria tudo de novo, se fosse preciso. - Ele me chacoalha como se eu fosse um porquinho de cerâmica cheio de moedas. Estou gostando disso. Não quero que pare. Não quero que ele me diga que sou somente uma boa amiga com quem ele divide a casa. "Sempre fui?" Como assim??? Ele te conheceu há menos de dois meses. Isso é estranho. - Vc me entende? Diz que entende. - Baixando o tom de voz, ele implora. - Por favor.

- Entendo. - Confirmo. Ainda pensando no "Sempre foi", repito. - Eu entendo.

Estamos de pé, frente à frente, em silêncio. Tenho medo de perguntar e ouvir o que não desejo ouvir. Não posso bancar a ofendida quando tenho um caminhão de segredos sombrios guardados em mim. Ele não diz toda a verdade. Eu sinto. Eu escondo a minha verdade, sentindo que esse seria o melhor momento para trazê-la à tona. O que poderia acontecer se ele soubesse de tudo? Me expulsaria de sua casa e de sua vida? Putz. Eu não posso viver sem ele. Não mais. Então diga a verdade. Vai. Diz. O 'não' vc já tem. Vai. Essa é a hora. VAI!

- Carlos, obrigada por tudo. Vc salvou minha vida. - Seus braços envolvem a minha cintura. Fico na ponta dos pés quando enlaço os meus em seu pescoço. Ele quase me esmaga em seu abraço e eu amo o jeito como ele me faz sentir especial. Não vou falar. Não agora. Hmmmm. Seu pescoço é afrodisíaco. - Não me esconda nada. Confio em vc. - Murmuro em seu ouvido. NÃO ME ESCONDA NADA??? Vc é uma cretina! Eu sei. Meus olhos se enchem d'água. Remorso, culpa, paixão e medo misturam-se entre si formando uma bizarra aquarela em minha mente. - Por que não falou comigo no hospital? Vc conheceu a enfermeira que cuidou de mim? Uma senhora gorducha com um leve sotaque alemão? Foi ela quem me contou que haviam me deixado lá para ser medicada. Jamais poderia imaginar que seria vc...- Minhas lágrimas molham o tecido de sua blusa. Nenhum dos dois quer sair do abraço. Nenhum dos dois quer um contanto visual neste instante. Basta ouvir e sentir. - Vc se lembra dela?

- Uh-hum. Uma ótima pessoa. - Diz ele. Num tom soturno, ele insiste. - Giulia, quem fez isso a vc? Quem te machucou hoje? Me conta a verdade. Somente a verdade. Por favor.

- O mesmo homem que chegou ao hospital após a sua saída.

- Fernando. - Rosna ele. - Aquele verme tocou em vc novamente. Ele quer se afastar de mim. Eu o seguro pelo pescoço, sentindo-me culpada.

- Esqueça ele, por favor. Já passou. Eu dei um jeito nele.

- Não dá pra esquecer, Giulia. Não dá pra esquecer. - De chofre, ele se desconecta de mim, dando um passo atrás. Sua fisionomia está transtornada, suas narinas dilatadas. Eu não gosto do que vejo. Eu não quero que ele faça nada a Fernando. Não por Fernando, mas, por ele.

- Fernando não vale nada, Carlos. Ele é perigoso. Não quero que faça nada a ele, entendeu? - Minha voz embarga. Meu coração dói. - Não quero que faça nada a ele. - Repito entre soluços. Estou chorando feito uma criança que perdera sua boneca preferida. - Me diz...- Suplico, agarrando-me à gola de sua camisa. - Me promete que não vai revidar. Que não vai se encontrar com ele. Me diz. Por favor. Ele é do mal. É perigoso. Me promete? - Um passo à frente e ele volta a me abraçar numa tola tentativa em me acalmar. Da gola, minhas mãos vão ao seu pescoço enquanto, vagarosamente, elevo meu queixo até encontrar seu olhar incisivo, quase severo. - Vc não é assim. Vc é bom. - Sussurro, assoando, com a sutileza de um elefante, meu nariz no lenço que ele me empresta. Ele dá uma risadinha. Eu sorrio porque amo o seu riso inocente. Num impulso, beijo sua bochecha. Ele beija a minha. Sinto um fervor subindo, subindo até parar em meus seios. É o tipo de sensação gostosa que perdera ao pular de fases quando, da adolescência, caíra nas mãos de Fernando. Não quero antecipar nada. O que estou experimentando pela primeira vez é simplesmente esplêeendido. - Carlos...

- Sim. - Ronrona ele em meu ouvido. Puta merda. Acabo de dar um beijo em seu pescoço. Foi inevitável. Puta merda! Ele correspondeu. Eu preciso falar. Preciso falar algo decisivo. - Vc tem alguém lá fora. Digo...alguma namorada? - Que pergunta imbecil é essa??? Como vc diria: Por San Juan Diego! Vai ser burra assim no inferno. Vá vc! Não é bem vinda aqui! Faz um favor a nós duas: cala a boca e beija logo esse homem. O que mais vc quer pra ter certeza de ele é teu??? Que ele te mostre o pau dele??? NÃO! CLARO QUE NÃO! Quero aproveitar esse momento. Eu nunca tive isso. Essa coisa de flertar, me insinuar, ser seduzida. É muito bom! Estúpida! Não sou. Some. Some! - Diz! - Aumento o tom de voz, num repente. Ele se assusta. Eu abro um sorriso amarelo, insistindo. A voz sai entre os dentes trincados. - Vc tem ou não tem? - Ele me olha, intrigado. Dou de ombros, aspirando seu perfume, roçando meu nariz em seu pescoço másculo, irresistível. Um prato cheio ao vampiro Lestat de Anne Rice. - Diz!

- Por que tá zangada?

- Não estou. Perdão. É que...

- As vozes?

- Sim. As vozes.

- Diga a elas que não.

- Não o quê? - Ele recosta sua testa na minha. Sua boca é fascinantemente convidativa, mas não posso meter minha língua lá dentro como uma qualquer. Ele precisa tomar a decisão. Claro! Afinal, somos virgens não é mesmo?! Burra! - Não entendi.

- Eu não tenho nenhuma mulher lá fora, Giulia. A única que me interessa está aqui dentro, brigando sei lá com quem, me olhando como se eu fosse um santo.

- Ah! - Rio meio que roncando. - Eu? Essa mulher que vc descreveu sou eu?

- Quem mais poderia ser, Giulia? - Escondo meu rosto ruborizado contra seu peito. Seus dedos se enroscam aos fios do meu cabelo, puxando-os com uma leve pressão. Pressão suficiente para me excitar. Meus olhos quase se fecham de tanto prazer. Minhas pernas estão bambas. Putz! Se seu soubesse que tudo começa dessa forma, eu jamais teria aceitado pular as etapas. Paquerar é tão bom... - Vc sempre pensa tanto assim? Fica difícil de te entender. Até mesmo pra mim. - Desconcertada, entorto a boca numa careta. Encolhendo os ombros, defendo-me.

- O que eu posso fazer? Eu tento parar, mas...

- Me ocorreu uma dúvida. - Diz ele, elevando os olhos, mordendo o canto dos lábios.

- Qual? - Suspiro, observando seus lábios se movendo, os dentes brancos enfileirados surgindo quando pergunta.

- Será que durante um beijo vc pensa? - Imobilizada, puxando o ar pela boca, estupidamente gaguejo.

- Na-não sei. Po-por quê? - Encostando a ponta de seu nariz ao meu, ele murmura "adivinha" enquanto tento não despencar no chão feito manga podre. Luto por não ouvir a maldita voz que me faz pensar num ponto obscuro do passado. Carlos se curva em minha direção. Por Baco! Eu espero por este momento há tanto tempo! Por que vc não para de pensar nisso??? Eu não quero perguntar a ele sobre isso. - Carlos. - Seu polegar toca meu lábio inferior, no entanto, ele aguarda por um sinal de que deve continuar e, continuar é tudo o que quero que ele faça. Tonta ao extremo, jogo minha cabeça para trás. Suas mãos fortes estão em minhas costas, apoiando-me. Não quero parar de sentir essa corrente elétrica a percorrer todo meu corpo extremamente excitado, mas...a porra da voz é mais forte do que eu, então estrago tudo. - Gertrudes...

- Gertrudes? - Repete ele, confuso.

- Sim. A enfermeira fofinha que cuidou de mim no hospital.

- Ah...não. - Visivelmente decepcionado, ele recua, passando a mão pelo cabelo num gesto de desgosto. - Perdão, Carlos. É que eu preciso saber...- Engulo em seco, enrolando meus cabelos nervosamente como roupa que se torce antes de estendida no varal. Ele assente com a cabeça. Então, absolutamente arrependida, prossigo. - Ela me disse que um moço bonito havia me deixado lá e pago por todas as despesas.

- Vc já me falou isso e eu concordei. - Resmunga ele, cruzando os braços. - Continua. - Diz ele, olhando-me fixamente. Eu me odeio por ter quebrado o encanto, mas, talvez, eu ainda possa reverter o quadro a meu favor.

- Ela também disse que o mesmo homem havia me deixado um presente embrulhado num papel dourado. Presente que eu guardei na mala que até hoje eu não desfiz. - Dou uma pausa, arregalando os olhos extasiados. - Perceba! Se vc é o homem do hospital, logo, vc é o mesmo homem do presente! - Exulto, percebendo a mudança vagarosa em seu semblante antes tranquilo. - Carlos! Seu presente ainda tá comigo dentro da mala! Não é fantástico!?

- Não!!! - Grita ele ao mesmo tempo em que me segura pelo pulso, impedindo-me de correr até o quarto numa louca euforia. - Espera um pouco. - Pede ele com a voz vacilante. Não entendo sua expressão. É de medo ou de raiva por eu ter estragado tudo? - Vc já comeu? Eu fiz lasanha ao molho branco.

- O quê??? - Reajo como se ele tivesse me ofendido. - Fome??? - Então, imprimindo calma à sua voz, ele prossegue, fingindo não perceber o meu espanto.

- Cansei de te esperar e fui tentar dormir. Acordei quando te ouvi no banheiro. Vc deve estar com fome. Trabalhar durante horas em pé vendendo roupa dá fome. - Olho para o meu pulso, procurando entender o porquê da brusca mudança de assunto. - Desculpa. Machucou? - Lamenta ele, beijando a pele marcada por seus dedos. - Vc tá cansada, Giulia. Muito cansada. - Faço que sim com a cabeça, deixando-me levar à cozinha. Sento-me na cadeira que ele escolhe. Aspiro o maravilhoso aroma da massa fumegante à minha frente. Devoro a lasanha, sobre a mesa, como se não houvesse amanhã, embora não deixe de notar seus olhos incidindo sobre mim. Bocejo levando a mão à boca aberta quando ele estica seu braço, apoiando parte do tronco sobre a toalha branca, bordada com florezinhas encantadoras. O garfo para diante de minha boca aberta quando ele, estranhamente, toca com a ponta do indicador no centro da minha testa e, simplesmente, me orienta como se fosse minha mãe. - Vá escovar os dentes e dormir. Amanhã, a gente conversa sobre o que vc quiser, meu anjo. Hoje, vc está muiiito cansada.

- Cansada. - Repito, cerrando os olhos. Acorda. Não vê que tem algo errado!? Acorda! - Vc já vai dormir, Carlos?

Ele beija a minha testa e me cobre com seu edredom de borboletinhas, comprado especialmente para mim. Amo borboletas.

- Vc...gosta de borbo...letas?

- Giulia.

- O...- Bocejo sem conseguir abrir os olhos. Meu corpo pesa. A voz arrastada pergunta. - E...o... presente? - Seu vulto se distancia quando o ouço sua voz melíflua.

- Giulia, dorme.

Apago.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 10/01/2021
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