2022

1

O Volvo XC 90 percorria silencioso a rodovia Luciano Consoline. Quase não haviam outros carros na pista, mas Arthur sabia que aquilo não duraria muito tempo. Em breve ele entraria na BR-050, e dali o transito só aumentaria até ele chegar a São Paulo. Estava acostumado com aquela rotina, fazia duas vezes esse trajeto toda semana quando ia aos plantões no pronto atendimento do hospital universitário de Bragança Paulista. Normalmente ele demorava cerca de três horas até chegar em casa, mas naquela noite não iria para casa. Já tinha colocado no waze o endereço do hotel. A pandemia já durava três anos. Tinha perdido alguns amigos e familiares para aquela doença. Nem o espaçoso carro novo podia tirar dele a sensação de claustrofobia que sentia. Ele tinha jogado o jaleco fora na porta do hospital como um criminoso que joga fora uma roupa suja de sangue.

Abriu o vidro para deixar o ar entrar, e a brisa fria aliviou um pouco a sensação de sufocamento que estava sentindo. Acendeu um cigarro e deu uma risada. Provavelmente não iria morrer daquilo. “Deus do céu”. Era uma tragédia anunciada. “Todos sabiam que essa porra de vírus estava mutando”. E com a velocidade de contágio no país era só uma questão de tempo até mutar para uma cepa mais perigosa. E essa era. Ele sentia isso. Já eram tantas que ele tinha perdido a conta. Todo o alfabeto grego e algumas letras mais. Esperava estar imune com as quatro doses que tinha tomado. Duas coronavac, um reforço da pfizer e outro da jhansen. Mas não iria expor a família ao risco. Sabia que a decisão que estava tomando não era a mais sensata, mas foi o que ele conseguiu pensar no momento. Arthur tentava rememorar o dia, avaliar os possíveis momentos em que podia ter se contaminado. Tinha usado jaleco descartável, mascara e luvas durante todo o dia em que esteve na UTI, mas sabia que essas eram medidas ineficazes. É claro que ele sabia que era necessário o uso de equipamento de proteção, e as instruções para seu uso chegaram a ficar maçante nos últimos anos. No que ele não acreditava era na qualidade dos materiais que eram fornecidos. Não haviam mascaras de qualidade, não haviam macacões de qualidade, ou sequer haviam macacões. Nos últimos plantões estavam usando o ,“jaleco papel higiênico”, que era como a turma do hospital tinha apelidado aquele último equipamento que tinham recebido. Ele sabia que aquele equipamento servia mais para pra passar uma sensação de segurança, do que para proteger de fato. E com o declínio da curva de óbitos dos últimos meses, somado as eleições a vida praticamente tinha voltado ao normal. As pessoas tinham internalizado. Morrerem mil pessoas por dia de uma doença que não tinha nenhum caso registrado três anos antes passou a ser normal. Praticamente já não se viam pessoas com mascara na rua.

E agora aquilo. Ainda demorariam dias para que fosse confirmado pelo laboratório, mas não era necessário. Arthur atendia pessoas na UTI COVID desde o inicio da pandemia. Estava familiarizado aos casos, a evolução dos pacientes, mesmo os de prognóstico mais tranqüilo. Mas aquele era diferente. Já haviam sido reportados alguns casos da nova cepa que estava sendo chamada de “cepa paulista”, porque o primeiro caso tinha sido detectado no hospital Albert Einstein. Toda uma ala do hospital tinha sido isolada. Quinze pacientes que tiveram contato com o paciente infectado incluindo profissionais de saúde que realizaram o atendimento vieram a óbito. Essa noticia tinha saído há dois dias nos jornais. Mas a noticia chamava pouca atenção. Principalmente agora com a eleição presidencial que tinha colocado o país em chamas no último ano.

Ele olhou no painel do carro. O relógio marcava 20:05 do dia vinte e nove de outubro de 2022. Jogou a guimba de cigarro no asfalto e olhou as faíscas vermelhas pelo retrovisor. Em seguida subiu o vidro e ligou o rádio. Queria ouvir algo que o distraísse da preocupação que carregava. Pela primeira vez naqueles anos estava com medo de morrer. A forma como viu um paciente jovem de vinte e um anos, sem doenças prévias sucumbir apenas dois dias foi brutal. Todos no hospital estavam com o mesmo pânico. Ninguém falava nada, mas se podia ver no olhar de todos. A coisa ia ficar feia. “Deveria ter feito isolamento?”. Ele sabia que a resposta era sim. Chegou a pedir para o diretor fechar o hospital com todos dentro até a confirmação do laboratório sobre a suspeita, mas o diretor riu da sua cara, e da rua preocupação. O paciente devia ter alguma comorbidade sub diagnosticada. _Você está ficando paranoico. Riu ele. _Está precisando de férias. _Além do que todos aqui são vacinados. Afirmou. _Vá para casa e descanse que você está precisando. _Hoje foi um dia pesado. Arthur saiu. Mas não iria para casa. Olhou para a tela do painel do carro. O waze avisava que ainda demoraria seis horas até o hotel. Algum acidente na rodovia?

No rádio os comentaristas discutiam as eleições. Os candidatos seguiam cabeça a cabeça. Quarenta e oito por cento para o ex metalúrgico, contra quarenta e cinco por cento do ex militar. Trinta por cento das urnas já haviam sido apuradas.

Foi diminuindo a velocidade a medida em que chegava ao trevo que dava acesso a BR 050 e percebeu que o waze provavelmente estava sendo otimista na sua previsão de demora. Milhares de carros com bandeiras verde-amarelo ocupavam a rodovia, com as mensagens de sempre. Alguns pedindo AI5, outros intervenção militar. Quatro anos daquela merda. Pegou o telefone. Ainda não tinha falado com a esposa do ocorrido. Olhou para a tela do celular e depois voltou a joga-lo no banco de passageiros. Estava sem sinal. O carro parou completamente no meio do que parecia uma fila interminável. Colocou as mãos sobre a cabeça e chorou.

Já eram duas da madrugada quando deixou o carro no estacionamento do hotel ibis da avenida paulista. O saguão estava lotado. As pessoas falavam em voz alta. Exaltados. Com certeza o dia iria ser de manifestação na avenida. O resultado da eleição tinha sido finalizado há pouco, com vitória do ex metalurgico por uma diferença significativa de votos. Ele deve ter ouvido a palavra fraude e a expressão eleições roubadas umas trinta vezes entre a porta do hotel e o balcão da recepção.

_Tenho uma reserva. Disse Arthur enquanto retirava do bolso a carteira com a identidade para entregar a recepcionista, que era a única além dele a usar mascara no local. Nos últimos meses essa pratica tinha sido praticamente abandonada. Nas ruas ou em ambientes fechados.

A atendente pegou o documento e estranhou o fato de ele também estar usando luvas.

_Tudo certo Sr Arthur. _ Um momento enquanto eu finalizo aqui. Disse baixando os olhos para a tela do computador. _São quinze diarias.

_Hotel lotado? Perguntou ele.

_Nem me fale. Disse a atendente. _Não ficamos assim há muito tempo. _Amanha vai ser tumultuado na paulista. _Se o sr não tivesse realizado o pagamento adiantado não teriamos como segurar a sua vaga. _Muitos animos alterados aqui hoje. Disse ela olhando de solslaio para um casal que estava a porta resmungando, com cara de poucos amigos. O homem obeso que segurava uma busweiser long neck o encarava.

_Vocês não deveriam deixar comunistas se hospedarem aqui! Disse o sujeito. Tinha o rosto vermelho. Arthur pensou que aquela não deveria ser a primeira cerveja que ele tomava aquela noite.

_Comunista? Perguntou em voz baixa._ De onde será que ele tirou uma coisa dessas?.

_É a camisa. Respondeu a atendente.

Arthur usava uma camiseta vermelha e uma calça preta. Que era a única que ele tinha na mochila. Tinha jogado a outra fora, juntamente com o jaleco, o esteto e o material que esteve usando no último plantão.

O sujeito se desvencilhou do grupo e caminhou em direção a eles. Usava uma camiseta da seleção brasileira e uma bermuda jeans. Pelo sotaque era sulista. Se encostou no balcão ao lado do médico.

_Esse sujeito não vai ter direito a um quarto. Disse ele. _Eu e minha familia estamos aqui a horas. E esse comunista chega aqui e em poucos minutos vocês conseguem a vaga para ele?

_Ele tinha reserva. Esclareceu a recepcionista sem levantar os olhos da tela do computador. Ela estava tentando terminar aquilo o mais rápido possivel.

O homem golpeou o balcão. _Não me interessa isso de reserva. _Você não vai deixar esse sujeito se hospedar no lugar de uma familia de bem.

Os amigos do sujeito se aproximaram e tentaram o afastar segurando pelo braço. _Vamos cara. Não vale a pena. _Vamos encontrar outro hotel. _Amanha vamos ver quem é quem na paulista. _Deixe o mortadela aí descansar. _amanha ele vai precisar. O outro sujeito também utilizava camiseta da seleção. Arthur pôde perceber um volume em sua cintura. Provavelemente estava armado.

O sujeito se desvencilhou do braço do amigo, fazendo cair cerveja em cima do balcão.

A recepcionista entregou o cartão magnetizado para Arthur. _ O quarto do senhor é o seiscentos e um. _O café está liberado no primeiro andar a partir das seis horas.

Arthur pegou o cartão, e ignorando o homem seguiu em direção ao corredor do hotel. Sentiu uma mão agarrar o seu ombro. Virou para encarar o sujeito.

_Já falei que comunista não vai se hospedar aqui. Gritou o homem. Os amigos dele se aproximaram novamente.

Em silencio ele retirou a mão do ombro e voltou a se virar.

_Ei mortadela estou falando com você. Não finja que não me ouviu. Os companheiros afastaram o sijeito que continuou a resmungar enquanto se afastava. Arthur pôde ouvir o sujeito armado dizer. _Amanhã a gente pega ele. _Vamos embora.

Arthur subiu no elevador. Sabia que a probabilidade de estar contaminado era pequena. Mesmo assim iria fazer quarentena antes de se encontrar com sua família. Ainda não conseguira falar com a esposa. O telefone seguia sem bateria. Tinha enviado umas mensagens por audio ainda na estrada para avisar a esposa, mas depois disso a bateria tinha acabado. Ele colocou o telefone para carregar assim que entrou no quarto.

Descalçou as luvas e as jogou no cesto de lixo. Abriu o chuveiro para esquentar. Precisava de um banho. Estava cansado. Caminou até a janela. Dalí ele podia ver a avenida paulista. Na esquina estavam montando um grande palco. Pelas bandeiras dos sindicatos que já estavam se acumulando alí com certeza era o grupo vencedor das eleiçoes se preparando para comemorar. Mas a julgar pelas cenas que ele tinha visto duvidava muito que a celebração seria pacifica. Pegou o controle e ligou a televisão. Procurou entre os canais algúm noticiário, deixou no canal de noticias. Na legenda estava escrito que o atual presidente ainda não havia se manifestado sobre a derrota. Seguia entrincheirado no palácio do planalto.

Se des vestiu e entrou no banheiro. Iria tomar uma longa ducha antes de contar para Andreia sobre os seus planos. Tinha pensado bastante na estrada, e embora parecesse loucura a primeira vista sabia que a esposa iria concordar com ele depois que ele lhe explicasse tudo. Com ironia pensou que era perfeito para o virus aquele momento. Dificilmente encontraria ambiente mais propicio do que aquele para se proliferar. Relaxou um pouco com a agua quente da ducha.

SilvaMD
Enviado por SilvaMD em 18/08/2021
Código do texto: T7323729
Classificação de conteúdo: seguro