Viagem

Acho que foi em março de 2015. Não tenho certeza... Mas foi depois do carnaval.

Fazia quase um mês que eu não saía de casa. Mas dessa vez me convenceram a pôr o pé na rua e eu me vi num meio de uma festa universitária. Não sei como fui parar ali, do lado dela... Antes eu tivesse permanecido em casa ruminando meus pensamentos.

Mas algo dentro de mim me compeliu a me aproximar. E então, como não era muito comum na minha vida, tudo pareceu fluir perfeitamente. Eu olhei pra ela. Ela olhou pra mim e sorriu. Conversamos boa parte da noite e antes de ir embora eu perguntei se nos veríamos novamente. Então ela me deu o número de seu telefone. No dia seguinte eu liguei e ela atendeu. Eu estava cansado de me investir nos relacionamentos errados. Cansado de dar tudo de mim e receber quase nada em troca. Mas ela me deu muitos sorrisos em conversas nas madrugadas que se seguiram, então eu achei que ela poderia querer ficar... de verdade.

Uma noite, no meio da rua, sem pensar muito bem, eu a pedi em namoro e ela disse sim, para o meu espanto. Apesar da mútua embriaguez, que me fez questionar se ela lembraria do que havíamos feito, no dia seguinte ela me chamou de namorado e eu tive certeza de que estava tudo certo. Puta merda. Eu não podia estar mais errado. Só que demorou pra eu perceber. Eu não quero entediar ninguém com minúcias, dessa forma, pra resumir eu devo dizer que não demorou tanto pra que as coisas começassem a parecer fora de lugar. Ela começou a perder o interesse. Aparentemente não havia mais tempo nos seus dias para estar comigo. Estar apaixonado por ela se tornou uma matéria de aprender a conviver com as ausências e aproveitar o máximo dos momentos que tínhamos juntos. Confesso que minha paixão foi um tipo de cegueira que não me permitiu ver o óbvio. Havia outro. Na verdade, havia outras pessoas. E ela era outra pessoa. Alguém completamente diferente do que eu achava que ela era. Enfim. Acabou antes que eu soubesse essa verdade. Pra ser sincero eu não aguentei tanta ausência. Tantas brigas e toda a culpa que ela me fazia sentir, simplesmente por eu não estar satisfeito com as migalhas que ela me dava. E eu me sentia realmente muito culpado. Acho que nunca tinha me sentido tão ansioso quanto como ela me deixava quando desaparecia e não atendia minhas ligações. Ou quando deixava de responder minhas mensagens. Teve um dia que eu simplesmente cansei e resolvi pôr um fim naquilo tudo. As lágrimas que ela derramou, pareciam sinceras. Ela parecia sincera quando dizia que eu a estava abandonando. Que ela me amava e que eu estava sendo egoísta... e por isso tudo, eu me sentia sufocado pela culpa. Mas nada era pior do que a ausência que ela deixava quando fingia se fazer presente. Demorou um pouco, e ainda vieram algumas brigas antes que a verdade batesse na minha porta. Até que eu soubesse que a ausência era deliberada. Demorou pra aceitar que ela me traía. Demorou pra que eu aceitasse que tinha sido feito de idiota por tanto tempo. Quase dois anos. Dois anos perdidos com alguém que beirava a sociopatia. Me senti desperdiçado, muito mais do que enganado. Tive um certo nojo da minha própria inocência. Da minha credulidade. E o pior é que do lado dela não havia remorso. Só mais mentiras. Só cinismo. E os meses que se seguiram passaram como um borrão, de álcool, solidão e de raiva. Eu tive muita raiva, e não posso negar que tive pensamentos de morte. Muito mais dirigidos a mim mesmo do que a ela. Dela, eu tentei apagar todos os vestígios. Primeiros os materiais, mas o mais difícil era apagar as marcas que ela tinha deixado em mim. Os hábitos. As lembranças de momentos que eu achava que eram reais, mas que não tinham passado de mentiras. Certas feridas demoram mais a cicatrizar do que outras.

E eu me pergunto quando eu vou conseguir esquecer isso tudo.

quando vou conseguir me perdoar por ter acreditado...

por ter pedido o telefone dela

e por ter ligado.

Maio, 2017

Eu estava sentado numa parada de ônibus na avenida Conde da Boa vista.

Tinha acabado de sair de um bar onde tinha bebido desde o começo da tarde. Entediado na espera por um ônibus que nunca chegava, comecei a escrever num caderninho de bolso, tentando controlar o fluxo de pensamentos que vinham na minha cabeça.

Me levou 31 anos, incontáveis porres, ressacas, noites de insônia, três relacionamentos falhos, uma sociopata e muitas reflexões para que eu conseguisse entender.

As coisas não vão dar certo simplesmente por que eu espero que elas deem certo.

Eu nunca fui dado a orações, ou a pedir a Deus. Eu sempre fui de fazer o meu e torcer pelo resultado. Em matéria de amor parece que eu fiz tudo errado, sempre. Parece que eu não aprendi as regras, ou simplesmente estou ultrapassado.

Foda-se. Nem nisso adianta pensar.

Sabe-se lá o que adianta.

Não estou interessado em uma solução mágica ou uma receita especial.

Não estou interessado em mais porres e relações casuais,

Não quero sexo pelo sexo. Pela pele. Tesão cego.

Em vez disso eu escolhi simplesmente viver

de mãos dadas com o tempo.

Claro, o tempo é um parceiro filho da puta.

Você sempre acha que tem mais do que tem na verdade. Quando menos espera ele te dá uma rasteira.

As pessoas tem uma percepção distorcida dele, assim como do amor.

E a minha, a mais distorcida de todas, de tão tosca insiste em não mudar.

Míope, anacrônico, cansado, já sou um velho, se encaminhando para a segunda parte da própria história.

E eu quis. Quis muito poder refazer meus próprios passos

voltar aos vinte e poucos e dizer a mim mesmo,

“Deixa de ser idiota, pivete.”

Acho graça, cinicamente.

Meu coração fica acelerando, feito cavalo desembestado,

e eu sei que não tenho maturidade nem criatividade

para criar ou querer algo de diferente para mim mesmo.

Ficarei preso às minhas ideias românticas e aos meus livros.

às minhas histórias mal acabadas e minhas bebedeiras.

Mas por quanto tempo mais?

Novamente, o tempo, aquele filho da puta sádico,

pode me dar mais uma rasteira

E EU de tão estúpido,

nunca aprendi a cair bem.

Fechei o caderno, guardei no bolso e voltei a olhar para a avenida. Foi então que vi um ônibus se aproximando. Era ele... a lenda... o “Rio Doce - Conde da boa vista”. Diziam que só havia dois fazendo a linha. Um indo e um voltando.

Subi e percebi que o ônibus estava praticamente vazio. Passava das 22 horas e eu estava bêbado demais para me equilibrar. O motorista acelerava ensandecido e praticamente me jogou ao chão, tanto devido à inércia quanto ao meu estado alcoólico. Achei que tinha torcido o pé pela dor que senti no momento, mas no fim, vi que não era nada. Contei minhas moedas e paguei a passagem. Eu estava bastante tenso naquele momento. Não sabia exatamente o que estava fazendo, pegando um ônibus naquela hora... principalmente por que ele me levaria para um lugar que eu não me sentia pronto para estar.

Decidi não pensar a respeito e esvaziei o resto da garrafa de cerveja que havia comprado. Me sentei num assento de janela apreciei o cheiro de maresia que tomava todo o veículo. Eu já tinha feito aquele caminho diversas vezes, mas em outras circunstâncias que não vem ao caso mencionar agora. Posso dizer que a viagem me trouxe um gosto agridoce à boca. Lembranças boas e ruins se misturavam na minha cabeça e eu quase me arrependi de ter me metido naquela situação. Mas quantas vezes eu fazia coisas fora do roteiro? Eram muito poucas. Então talvez algo interessante pudesse sair dali. Desci na Praça do Carmo, próximo ao sítio histórico de Olinda. Esperei o meu amigo Pablo, como havia sido combinado. Ele levou um tempo para chegar... o que já que era esperado dele. Mais lembranças foram tomando minha cabeça, mas eu estava determinado. Não voltaria para casa tão cedo.

Pablo chegou junto com uma mulher que eu não conhecia, mas que eu sabia que tinha algo com ele. Ao me ver, os dois acenaram do outro lado da rua. Atravessei e me juntei a eles.

Pablo me recebeu com um caloroso abraço e apresentou-me sua garota.

Chamava-se Bruna. Devia ter algo como 1.60 e tinha o cabelo tingido de ruivo alaranjado.

Não pude inferir muita coisa sobre ela num primeiro olhar e me resumi a caminhar ao lado dos dois e ouvir o que tinham a dizer sobre o local onde iríamos beber.

Bruna pediu para ir no banheiro de um bar no começo da ladeira antes que nós seguíssemos adiante.

Pablo me olhou com alguma preocupação e falou com a voz de quem já havia tomado mais do que alguns copos de cerveja.

- É muito bom sair com você meu amigo. – Disse-me.

- Verdade cara. É sempre bom poder encontrar você por aí.

- Tem algo te incomodando?

- A mesma merda de sempre...

- Aquela sua ex ainda?

- Sim. De alguma forma ela ainda dá um jeito de se manter presente.

- Você tem que superar isso.

- Eu vou. Mas confesso que estou meio apavorado. Não gostaria de encontrá-la por aí. E esse é justamente um dos lugares que ela gosta de sair.

- Não pensa nisso. Vamos beber e falar besteira.

- Vamos sim, você está certo.

Naquele ponto eu ainda não sabia no enredo que eu estava metido com a referida ex namorada. Eu me mantinha ignorante quanto à maior parte das mentiras que ela tinha me contado. Portanto ainda me restava alguma esperança no coração de que fosse possível voltar aos bons tempos. Eu sempre fui meio idiota quando se tratava de mulheres e afetividade. Por algum motivo, quando estava apaixonado por alguém, eu perdia completamente minha racionalidade e passava a viver num conto de fadas cheio de idealizações.

Talvez Pablo tivesse um pouco disso, portanto ele nunca me julgou. Era exatamente por esse motivo que eu tinha atravessado a cidade apenas para poder conversar com ele.

Meu amigo era uma figura estranha. Magro, quase esquelético, de fala ágil e rebuscada. Era poeta, assim como eu. Mas enquanto eu tentava ser simples e despojado na minha escrita, ele era praticamente um clássico. Adorava uma referência à cultura e divindades gregas e de vez em quando soltava um latim no meio dos seus versos, coisa que eu não me via fazendo nos meus de forma alguma.

Apesar de ser sete anos mais novo do que eu e ainda conservar uma saudável imaturidade de jovem adulto, eu gostava de ouvir suas opiniões e sua visão de mundo, quase sempre contrastantes com as minhas.

Bruna voltou do banheiro e trazia em suas mãos duas latas de cachaça. Meu estômago se revirou só de olhar para a bebida. Eu não tinha mais idade para aquilo... eu ia me manter na cerveja e esperava não ficar muito mais bêbado do que eu já estava.

Fomos subindo as ruas que eu só estava acostumado a andar apenas na época do carnaval.

Sempre achei fantástica a visão das ruas vazias de Olinda, durante a noite. Bares, hotéis, ateliers abertos. Passantes ébrios, boêmios e moradores nas calçadas de suas casas.

Subi pensativo e calado enquanto Bruna e Pablo conversavam alegremente.

A cada passo que eu dava, flashes de situações passadas da minha vida surgiam diante dos meus olhos. Não sei os dois se perceberam dos meus devaneios existenciais, ou se estavam bêbados demais para notar, mas em algum ponto do caminho eu fui arrastado de volta para a realidade. O casal continuava conversando e sorrindo... completamente despreocupados.

Parei para comprar uma cerveja numa barraca de esquina, e voltei a acompanha-los.

Bruna olhou para mim e perguntou.

- O que você faz da vida mesmo, Rômulo?

Fui pego de surpresa pela pergunta, mas tentei responder de forma natural.

- Eu sou pesquisador.

- Como assim?

- Eu sou biólogo. Estou fazendo pós doutorado atualmente.

- pós doutorado? Quantos anos você tem? – Ela perguntou, intrigada.

- Tenho trinta anos.

- Não parece de jeito nenhum. Você tem cara de vinte e poucos.

- Todo mundo diz isso. Não sei se fico feliz ou me incomodo.

Bruna riu e me deu o braço.

- Não seja bobo. Claro que é bom. Mas me diga, o que você faz no seu trabalho?

- Sou geneticista. Dou aula, faço pesquisa, oriento alguns alunos. Quebro uns galhos na universidade.

- Você é um cara importante então.

- Não muito. Mas a grana é razoavelmente boa e é só o que eu sei fazer da vida, além de escrever.

- Pablo disse que você escreve bem, mas eu nunca li nada.

- Uma hora eu te mostro algo. Mas a estética é bem diferente da dele.

Pablo me deu um sorriso safado e falou.

- Ele não gosta do meu jeito prolixo de escrever, esse safado acha que eu devia ser mais direto.

- Eu acho que você deve escrever do jeito que você gosta, Pablo. Você tem muito mais serenidade do que eu... acho que mais sensibilidade também. - Respondi.

- Agora sou eu que não sei se me incomodo ou acho bom. – Respondeu.

Rimos os três e seguimos pelo caminho, todos de braços dados.

Chegamos ao bar que Pablo estava bebendo antes de vir me buscar.

Lá dentro, alguns poetas conhecidos, de uma geração anterior a nossa, tocavam violão e confraternizavam. Sentamos junto a eles e começamos a beber e tocar também. A noite prometia ser agradável e minhas preocupações já iam se esvaindo.

Não lembro como a conversa começou, mas me peguei numa discussão levemente acalorada com Bruna sobre sexualidade.

Pablo saiu à francesa e me deixou no debate com sua garota, e eu, como de costume, não larguei o osso e comecei a argumentar.

Por algum motivo, Bruna tinha uma impressão estranha sobe pansexuais.

Para ela, pansexuais eram pessoas promíscuas que transavam com tudo e qualquer coisa.

Ao ouvir seu ponto de vista eu retruquei.

- Pansexualidade não tem nada a ver com isso.

- E tem a ver com que? Ela respondeu visivelmente irritada.

- Pan sexuais são pessoas que se interessam por pessoas. Dependendo do contexto. Não se atraem por animais, ou objetos. Mas por todo o espectro de gêneros. Tanto heterossexuais, quanto homossexuais, bissexuais ou transexuais. E não necessariamente são promíscuos. Na verdade muitos deles são monogâmicos.

Bruna não pareceu aceitar minha argumentação e começávamos já a discutir sobre os pontos, quando uma mulher que estava fora da conversa se intrometeu.

- Ah, Acho que eu sou Pansexual então. Me achei bissexual durante toda minha vida. Mas pelo seu conceito eu me encaixo mais na tua definição.

Era uma mulher alta e magra. Morena escura, cabelos lisos e compridos. Parecia estar embriagada, mas não tanto quanto os outros presentes no bar.

- Só discordo da questão da promiscuidade. O que você tem contra promiscuidade? – Continuou.

- Não tenho nada contra isso. – Respondi.

- Do jeito que você falou pareceu que era algo negativo.

- Não necessariamente. Se for consensual e não envolver traições eu não vejo problema.-

A mulher pareceu mais apaziguada e sentou-se ao meu lado.

- Acho que assim então eu posso sentar e conversar com vocês. A propósito, meu nome é Stefanie.

- Meu nome é Rômulo. E essa é Bruna. – Disse apontando para minha amiga.

Reparei quase instantaneamente que um dos caras que tocava violão próximo a nós, me olhou de cima a baixo enquanto eu interagia com Stefanie. Tive praticamente certeza de que eram um casal. O homem parecia ter entre quarenta e cinquenta anos. Já Stefanie parecia ser bem mais jovem do que eu.

Conversamos algumas generalidades e Bruna se levantou e foi procurar Pablo do lado de fora.

Cumprimentei Stefanie também saí.

Fiquei um bom tempo conversando com Pablo sobre nossos projetos literários para o futuro enquanto Bruna fumava um cigarro desconfiada logo ao lado. Parecendo impaciente, ela retornou para junto das pessoas tocando violão, visivelmente irritada.

A noite foi passando e depois de algum tempo Stefanie se juntou a nós dois, e aí ficamos sabendo que ela também era escritora. Compartilhamos alguns dos nossos textos e os dela pareciam muito bons. Mais passionais do que os meus, mais diretos que os de Pablo.

A chuva apertou e nos obrigou a entrar novamente no bar.

Sentada, Bruna nos olhava com cara de poucos amigos e Pablo resolveu se sentar ao seu lado.

Continuei bebendo e conversando com Stefanie e descobri que o homem que tinha me encarado era seu marido. Apesar de que ela parecia despreocupada sobre este fato.

Comecei a achar que o olhar mais sério tinha sido coisa da minha cabeça. Fomos nos perdendo na conversa e mal me dei conta de que Bruna saiu do bar, debaixo de chuva, com passos acelerados para o meio da rua. Depois de algum tempo, também percebi que Pablo havia desaparecido. Stefanie pediu para ir ao banheiro e vi que todas as pessoas que eu conhecia tinham saído.

Fui para o lado de fora e deixei a chuva cair sobre mim, me perguntando o que iria fazer no resto da noite.

Esperei talvez meia hora e já me preparava para ir embora, quando vi Bruna se aproximar, exasperada e com lágrimas nos olhos.

Ela veio até mim e me abraçou, sem dizer nada.

- O que aconteceu, Bruna?

- Pablo foi embora.

- Como assim? Achei que ele estivesse com você.

- Não! - disse-me, chorando e soluçando – Ele me deixou sozinha.

- Pablo não faria isso.

- Eu rodei Olinda inteira atrás dele. Mas não o encontrei.

- Ele deve ter ido procurar você. Você saiu sozinha mais cedo. Ele deve ter ficado preocupado.

- Pablo não se preocupa com nada. Ele é frio.

- Não Bruna. Talvez ele se expresse pouco, mas ele não é frio.

- Eu acho.

- Olha. Eu nunca o vi tão ligado em uma pessoa como o vejo com você.

- Eu não entendo aquele homem.

Sentei junto com Bruna na beira de uma calçada e a abracei, tentando consolá-la.

- Ele vai voltar. E você vai ver que isso tudo foi só um engano.

Bruna me deu um sorriso amarelo e ficou olhando para o chão.

Logo em seguida vi Pablo correndo em nossa direção, visivelmente preocupado.

- Onde você estava, mulher?

- Fui procurar você, idiota.

- Acho que foi só um desencontro, cara – Eu respondi tentando mediar.

Bruna se levantou e os dois se abraçaram.

Eu me perguntei como a noite tinha chegado àquilo.

Os dois pareciam muito bem juntos, mas havia algum tipo de tensão não comunicada entre eles. Algo que eu experienciei algumas vezes na minha vida... principalmente nos meus casos mais tórridos.

Era bonito vê-los juntos. Apesar de serem tão diferentes entre si.

Resolvi dar a noite por encerrada.

Abracei-os e disse que iria embora.

Já passava das 3 da manhã e eu tinha muito o que pensar sobre minha vida.

De fato eu tinha.

Muitas coisas aconteceram nos dias que se seguiram e eu descobri em que tipo de cilada eu tinha me metido nos últimos dois anos.

Tem certas verdades inegáveis na vida, e coisas que acontecem, queiramos ou não.

Eu não estava ciente ainda, mas aquela noite seria um ponto de virada para mim.

Possibilidades foram abertas diante dos meus olhos

só faltava eu percebê-las.

2

Lá estava eu, subindo as escadas, com meus passos de jovem velho.

E quanto mais eu subia, mais degraus surgiam em minha frente.

Estava tudo escuro, eu via muito pouco do que havia adiante, mas algo me dizia pra continuar, um passo de cada vez. Gotas de suor escorriam da minha testa para os meus olhos, mas nem o ardor me fazia parar. Porque eu estava ali? Nem eu sabia.

Comecei a correr... mas os lances continuaram a se suceder e nenhum sinal de que eu estava perto do topo.

O tempo parecia congelado. Podia estar ali há horas... ou talvez fossem apenas minutos. Realmente eu não fazia ideia.

Meu coração parecia que ia estourar, as pernas ardiam, o ar fugia dos pulmões, mas eu corria, pulava dois degraus de cada vez, me lançava cegamente na escuridão. Desabei, enfim, rolando escada abaixo. Me desesperei por todo o progresso perdido.

Procurei um corrimão, mas não havia paredes ao meu redor. Eu estava caindo no ar, num abismo de piche e frio.

Acordei assustado. Era como se eu tivesse saído de um estado de quase morte.

A mulher do meu lado sequer percebeu. Continuou roncando, completamente despida, de barriga para cima.

Tateei pelo quarto em busca do meu celular. Usei o aparelho para iluminar meu caminho até o banheiro. Não queria perturbar minha companhia da noite. Sabe lá se tornaríamos a nos ver, mas ela dormia de um jeito que quase me invejava. Era como se nada lhe pesasse na consciência, nada lhe afligisse... era o sono fácil de uma criança. Coisa que eu não tinha desde a adolescência.

Fui até o banheiro e dei uma boa mijada. Baixei a tampa, dei descarga e me sentei sobre o vaso. Ainda me sentia perturbado pelo sonho. Eu tinha horror desses pesadelos misteriosos que de vez em quando me assombravam. Devia haver algum significado por trás daquilo tudo. Eu só era burro, ou cabeça dura demais para entender.

Desisti, quando vi que não chegaria a lugar nenhum. Lavei minhas mãos e fui para a sala.

Minhas duas gatas dormiam no sofá e eu decidi não incomodá-las.

Peguei uma cerveja na geladeira, sentei-me no chão e me pus a enrolar um baseado.

Talvez eu precisasse de um estado alterado de consciência para entender o que estava me acontecendo.

Era quase vergonhoso. Um homem de trinta e um anos, que não consegue botar a própria vida nos eixos. De alguma forma eu vivia ainda como se tivesse vinte e poucos e a vida não passasse de uma sucessão de bebedeiras, ressacas e noites sem dormir. Além das contas a pagar e das mulheres que iam e vinham virando tudo de cabeça pra baixo.

Acendi o cigarro e resolvi deixar esses pensamentos de lado. Depois do primeiro trago, tudo parecia mais simples. A cerveja também facilitava o processo, apesar de contribuir para a minha barriga cada vez mais protuberante. Não que eu fosse atraente quando era mais magro, mas eu tinha certeza que a pança não ia ajudar trazer mulheres para minha cama. Ou mesmo para encontrar a que ia tornar isso tudo irrelevante.

Como um romântico quase que idiota, eu sempre estava esperando por algo permanente com uma mulher. Eu nunca entrava num relacionamento se não achasse que a minha parceira pudesse ser a mãe dos meus filhos, ou a mulher com quem eu seguiria pelo resto dos meus dias. Talvez por isso eu me desse tão mal nessa área.

No terceiro trago, eu ouvi passos vindos do quarto.

Tamires, a moça com quem tinha dividido a noite sentou-se do meu lado.

Pegou a lata de cerveja e tomou um gole. Ela não disse nada, só encostou a cabeça no meu ombro e esperou que eu lhe passasse o baseado.

Ela deu um trago e soprou a fumaça, quase que sensualmente.

Estávamos os dois completamente nus, as 2:10 da madrugada. Eu a conhecia apenas por algumas horas. A fluidez da nossa época permitia esses arranjos casuais, e sinceramente, eu nunca sabia o que esperar deles.

- Eu quero que você saiba que me diverti muito hoje. –Disse-me.

- Fico feliz por isso.

Tamires sorriu e me passou o baseado.

- Você tem um sono muito inquieto.

- Acho que sim. Não tenho dormido muito bem.

- É por que você é daqueles tipos de caras que pensam demais.

- Você acertou nisso sobre mim.

- Acho que quanto mais a gente tem consciência das coisas, menos conseguimos dormir.

- Tem muita coisa que me tira o sono. É um dos motivos pelos quais eu não tenho uma televisão.

Tamires ficou me encarando por um tempo, como se eu fosse uma pessoa de outro mundo, e tomou mais um gole de cerveja.

- Para de pensar e volta pra a cama comigo.

- Deixa eu terminar de fumar.

Fumamos e esvaziamos a lata de cerveja e Tamires se pôs de pé. Seu corpo era maravilhoso. Tudo no lugar e nas devidas proporções. Tinha algumas tatuagens e uma cicatriz, que parecia ter sido por uma cirurgia de apendicite, ou algo semelhante. Devia ser uns 10 anos mais jovem do que eu e com bem mais energia do que eu estava acostumado. Ela caminhou até a janela e ficou recostada, olhando para a lua nova que ia surgindo no horizonte, como uma foice amarelada cercada de algumas nuvens. Eu pus meu corpo de encontro ao seu e afundei meu rosto em seu pescoço. Ela suspirou e se virou para me beijar.

Ficamos ali por um bom tempo curtindo o momento e os pensamentos que me angustiavam desde o sonho desapareceram por completo.

Voltamos para o quarto e transamos ainda uma vez antes que eu pegasse no sono.

Quando eu acordei, passava de meio dia, e Tamires havia ido embora.

Deixou um bilhete sobre o computador escrito com caneta vermelha.

Junto com seu número de telefone havia uma curta mensagem.

“Viva mais, pense menos. Obrigado pela noite. Tamires”

Falar é fácil, pensei. Eu era um caso perdido.

Havia uma pia cheia de pratos para lavar e o almoço por fazer. Contas a pagar me esperavam em cima da mesa. Pendências no trabalho, crises familiares e uma solidão quase patológica.

Quis dizer a Tamires que eu estava fazendo o melhor que podia no momento.

Comecei por recolher as latas de cerveja espalhadas pela casa.

Por si só, isso já era um progresso.

3

Acordei sem querer, da mesma forma que vinha acontecendo nos últimos tempos. Alguma coisa me arrancava contra minha vontade da confusão pacífica dos poucos sonhos que eu ainda conseguia ter. E depois, acordado, eu tinha que encarar novamente a realidade e os desgostos que eu vinha acumulando e não sabia mais como lidar. Um facho de luz solar atravessava a janela e me mostrava que provavelmente já passava do meio dia. Para mim, o horário já não fazia muito sentido, principalmente nos finais de semana. Eu ia vegetando pelos dias e noites que se seguiam, fazendo o mínimo que precisava para me manter empregado e ter alguma aparência de normalidade na minha vida.

Abri o notebook, acessei minha caixa de e-mails, e me pus a escrever.

Querido amigo Pablo Calazans

aqui segue não uma carta, mas talvez apenas um amontoado de comentários sobre o tanto de coisas que temos escrito e publicado por aí. Fato que parece que estamos numa competição não anunciada para ver quem faz o texto mais sofrido. Fato também é que minha vida não anda exatamente onde queria e me questiono frequentemente sobre o que eu venho me tornando... ou o que me tornei. Me cubro dessas lamentações como se fossem medalhas ou cicatrizes dignas de se expor e fico fermentando pensamentos que não gostaria de ter. O resultado, sempre me escorre pelos dedos desse jeito caótico e doloroso. Será que é só isso que eu sei fazer com esse dom questionável que eu tenho para a escrita. Será que essa porra é realmente um dom?

Será que eu toco minimamente os outros pra que valha a pena continuar gastando energia com isso? Não que eu faça tudo pelo prazer de ser lido – ou compreendido – Mas acho que parte da intenção é essa mesma.

Eu escrevo pra sobreviver e pra não terminar num hospício. Não sei se passa o mesmo com você, nem quais são suas motivações. Mas pelo que eu tenho lido, parece que você anda tão dado à introspecção e a lamentação quanto eu. Talvez com mais sucesso do que eu na hora de pôr os sentimentos no papel.

Confesso que sinto falta de nossas conversas e divagações alcoólicas, mas entendo sua necessidade de ruminar suas ideias sozinho a maior parte do tempo. - Assim também é comigo.-

E seguindo a linha de confissões, digo a você que não tem sido fácil para mim lidar com minhas perdas recentes. Mortes, rompimentos amorosos, desenganos, decepções e as incertezas do dia a dia que geralmente passam na cabeça de um homem solteiro de trinta anos.

Não acho que superei minhas perdas por que não tenho sido muito bom no quesito da aceitação de que sim, a vida é uma brutalidade do começo ao fim. Não é um parque de diversões como gostam de retratar por aí. Acho que a aceitação desse fato tornaria a viagem mais tranquila... talvez até prazerosa, pra quem tem tendência ao masoquismo.

Não quero me alongar falando sobre coisas óbvias e toscas e te entediar com uma leitura alongada além da conta, portanto vou direto ao ponto.

Estou tremendamente cansado de um jeito que usar essa palavra chega quase a ser um eufemismo.

Cansado de fazer as coisas do mesmo jeito e talvez sem criatividade pra aprender algo novo.

Se você tiver algum insight nesse ponto pra compartilhar, eu ficaria muito grato. Se não, pelo menos aparece para uma cerveja.

Um abraço, Rômulo.”

Enviei o e-mail e fechei o computador. Olhei o celular, jogado ao lado do meu travesseiro. O visor mostrava o horário e uma dezena de mensagens não respondidas em minhas redes sociais. Eu estava tão cansado do mundo quanto acredito que o mundo estava cansado de mim. Toda aquela bosta enlatada que a internet oferecia que sempre conseguiu me entreter e me distrair de minhas preocupações, já não fazia nada a não ser agravar minha ansiedade.

Peguei o aparelho nas mãos e já ia desligá-lo quando o ele começou a vibrar.

Era Clara.

Não esperava uma ligação dela, ainda mais naquele momento, mesmo assim, atendi.

- Alô. –Disse desanimado

- Oi Rômulo. Você tá em casa?

- Estou sim. Acabei de acordar.

- Então abre a porta.

- Ahn?

- Isso. Estou aqui na frente.

- Ok. Já vou.

Desliguei o telefone e me sentei na cama.

“Puta que pariu” – pensei.

Eu não me sentia em condição de qualquer interação social, mas talvez esse fosse justamente o motivo para que eu lhe atendesse...

Me levantei, vesti uma bermuda e uma camisa qualquer e fui ao banheiro.

Encarei meus olhos vermelhos e as vastas olheiras que cresciam abaixo deles. Olhei meus dentes amarelados, a barba mal cortada, o cabelo desgrenhado. Eu parecia um fantasma, uma projeção mal acabada de mim mesmo. Parecia que eu tinha voltado de uma guerra. Mas a única guerra que eu vira estava ocorrendo dentro de mim, e com certeza eu estava perdendo feio.

Escovei os dentes, joguei um pouco de água na cara e me enxuguei. Estava uns 5% mais vivo. Era o melhor que eu ia conseguir ali.

Sai do banheiro e desviei pelas coisas caídas no chão do kit net que eu chamava de casa. Era um moquifo, eu mesmo reconhecia.

Vi a silhueta de uma mulher magra, com um vestido azul, pelo vidro da porta de alumínio.

O sol que vinha da rua incomodava minha vista, mas acho que vi um sorriso no rosto de Clara.

Abri a porta e ela realmente estava sorrindo.

- Oi, moço. Tudo bem?

- Acho que sim. – Respondi um pouco atarantado.

- Posso entrar?

- Claro, me desculpa... Não liga pra a bagunça.

- Realmente, isso aqui tá uma zona. Mas eu gostei.

Deixei-a entrar e puxei uma cadeira para ela.

Ela deu dois passos pra dentro e me abraçou sem avisar.

Fiquei um pouco sem jeito, sem saber como retribuir inicialmente.

Ela se afastou e me olhou nos olhos de uma forma quase maternal.

- Eu sei que tá doendo. Você não precisa fingir que tá bem.

- Não conseguiria fingir, nem que eu quisesse. Só que já to nesse estado há tanto tempo que já nem estou sentindo direito.

- Eu sei como é. Mas não pode ser assim.

- Não pode. Mas o que eu vou fazer?

- Abrir as janelas e deixar alguma luz entrar nessa casa já seria um bom começo. Uma faxina também ajudaria.

A forma espontânea com que ela falou me fez sorrir, e quando ela percebeu, outro sorriso brotou na sua face.

- Tá. Posso abrir as janelas, mas a faxina vai ficar pra outro dia.

Me levantei e afastei as cortinas e abri a janela do quarto e da sala.

De uma hora para outra, a caverna em que eu me escondia ficou um pouco mais habitável.

Clara começou a andar pela pequena sala e fixou os olhos nos livros na estante e na minha coleção de discos de vinil.

- Você tem algum de Caetano?

- Tem uma coleção inteira aí. Pode botar qualquer um que quiser pra tocar.

Clara começou a procurar entre os discos e depois de um tempo puxou um, triunfante.

Colocou um disco para tocar e ficou curtindo a vitrola chiar enquanto a agulha corria pelo disco preto.

- É um som tão mais quente, não é? Mais humano. Sei lá.

- Verdade. Eu gosto dessas coisas velhas mesmo. Minha avó me deu quase todos esses discos quando meu pai morreu. Alguns são deles, alguns são dela.

- Sua avó tem muito bom gosto.

- Tem sim.

Clara veio para perto de mim e pegou na minha mão.

Sentamos no chão, um de frente pro outro e eu fiquei um pouco tenso, sem saber o que dizer.

- Eu sei que nada do que eu fale vai fazer você se sentir melhor imediatamente, mas eu queria dizer que já considero você como meu amigo, e me preocupo realmente contigo.

As palavras de Clara me acertaram de um jeito que terminei por me desarmar e toda minha tristeza e agonia, que eu fazia questão de manter encarcerados dentro de mim, escorreram pelos meus olhos.

Segurei rapidamente o choro, e balbuciei algumas palavras.

- Eu não sei como lidar com tudo isso.

- Acho que ninguém sabe, Rômulo. Pelo menos no início.

- Olha, eu já lidei com umas tantas decepções amorosas, mas nunca com algo assim.

- Qual a diferença?

- Os meus relacionamentos anteriores, apesar frustrados, foram reais. Houve mentiras e decepções, claro. Mas pelo menos a coisa toda foi real. Dessa vez não. É desesperador descobrir que tudo o que vivi nos últimos dois anos não passou de uma coleção de mentiras.

- O que você sentiu foi uma mentira?

- Não. Mas a parte dela...

- A parte dela não interessa. Você não pode se culpar pelos erros dos outros. O que importa é que o que você sentiu foi genuíno.

- Em teoria isso deve funcionar. Mas agora não tá dando pra pensar assim, por mais que eu queira, Clara. Eu queria que fosse possível apagar essas lembranças da minha memória, como naquele filme, “um brilho eterno de uma mente sem lembranças”.

- Não é tão simples assim, mas um dia você vai lembrar dessa história e ela não vai ter esse peso todo. Você não precisa crer nisso agora, só aceita tua dor e vai seguindo da forma que você puder. Uma hora vai passar.

Clara pôs a mão sobre a minha e entrelaçou os dedos entre os meus.

Naquele momento eu pude perceber que ela falava sobre tudo com certo conhecimento de causa. Não era simplesmente alguém que falava as palavras certas para acalmar uma pessoa que está sofrendo...

- Parece que você sabe exatamente do que está falando. De alguma forma eu sinto que você sabe bem o que eu estou sentindo e por isso essa sua identificação com minha situação.

- Passei por isso que você está passando recentemente, talvez não com a mesma gravidade no caso das mentiras, mas fiquei assim por uns cinco meses. Eu fui decaindo, definhando, me isolando... até que morri.

- Morreu?

- Sim. Morri.

- Você parece bem viva.

- Hoje eu estou. Mas uma noite dessas eu morri. Todo aquele sofrimento morreu junto... E aí eu acordei, abri a janela e vi que o sol estava lindo.

- Entendi. Parece um bom final feliz.

- Nem tão feliz, pelo menos por enquanto, mas foi um alívio.

- Eu não entendo por que você se dá o trabalho de ouvir minhas ladainhas... quando eu nunca fiz nada para merecer essa atenção sua.

- Não vejo dessa forma. Estamos nos ajudando. Quando eu estive mal, achei que ninguém apareceria, mas foi justamente o contrário. Eu me vi cercada de pessoas que queriam o meu bem. E é por isso que eu estou aqui.

- Não acho que vai ser hoje o dia que eu vou superar isso tudo, mas eu não vou esquecer o que você está fazendo por mim, Clara. Você disse que já me considerava como seu amigo, e eu posso dizer que te considero da mesma forma.

Clara ficou um pouco sem graça e sorriu com o canto da boca.

Me levantei para virar o lado do vinil que tinha parado de tocar.

Nos sentamos um do lado do outro e ouvimos musica pelo resto da tarde conversando sobre nossas vidas e histórias conturbadas.

De noite, fui deixá-la no ponto de ônibus e voltei para casa me sentindo um pouco mais leve.

Meus problemas estavam longe de serem resolvidos. Não ia ser uma amnésia que ia me fazer superar tudo. Era uma questão de tempo, de aceitação dos fatos e, sobretudo de esperança.

Clara só me mostrou que não era uma questão de esquecer o que passou,

mas de lembrar do que realmente vale a pena.

Do que é realmente importante...

4

Cheguei um pouco atrasado, como de hábito.

Clara estava sentada na beirada do porto, olhando o encontro do mar com o rio.

Balançava as pernas, como se fosse uma criança, e eu podia perceber que ela estava um pouco incomodada com o frio que o vento do fim de tarde trazia do mar. Fiquei olhando para ela por alguns segundos antes de me aproximar.

Sentei-me do seu lado sem dizer nada. Ela me olhou, sorriu e voltou a contemplar o por do sol. Ficamos ali, sem trocar nenhuma palavra enquanto o sol mergulhava entre os prédios que cobriam a linha do horizonte às nossas costas, e pintava o céu inteiro em tons de laranja e rosa.

- Não teve um bom dia? Eu disse finalmente.

- Não exatamente.

- Imaginei. O meu também não foi dos melhores.

- Quando me sinto desse jeito eu gosto de procurar o mar. Parece que ele simplifica tudo.

- É assim que as coisas são, Clara, nossos problemas muitas vezes são simples... A gente é que complica, mas no fim tudo se acerta.

- Desde quando você se tornou um otimista?

- Desde que você me ensinou, amarela.

Clara riu e passou o braço por trás do meu pescoço.

- Quer tomar uma cerveja?

- Só se for mais de uma. Falei, sorrindo.

Nos levantamos e andamos lado a lado até um bar na rua do Bom Jesus. Sentamos e pedimos uma cerveja.

Fiquei olhando pra minha amiga enquanto ela enchia os copos. Apesar da melancolia que eu sabia que existia dentro dela, eu não podia negar que a serenidade dela me acalmava e me ajudava a lidar com minhas próprias inquietudes. Estar com Clara de alguma forma me mostrava que eu não estava sozinho ante todas as situações que me angustiavam. Era como naquela música do Pink Floyd. “Two lost souls swimming in a fish bowl, year after year”.

Conversar com ela, era conversar com alguém que sabia exatamente o que eu estava sentindo, e no fundo, acho que eu também sabia o que se passava com ela.

Eu ainda me admirava das circunstancias que nos aproximaram e nas histórias que nos levaram a caminhar juntos pelas ruas do Recife antigo naquela noite. Eu não era o tipo de cara que acreditava em destino, pelo menos não naquele ponto. O que eu acreditava era em sorte. E eu me sentia afortunado por poder contar com ela.

Imerso nesses pensamentos, percebi que Clara me encarava, com um sorriso sem graça no rosto. Não sei quanto tempo passei na minha viagem, mas acho que não foram meros segundos.

- Onde você tava agora? – ela riu – Tava perdido?

- Foi mal, as vezes acontece. Coisa de geminiano.

- Ah... Achei engraçado, você ficou tão sério.

- Tava pensando em como as coisas acontecem e que a gente termina tendo pouco controle sobre o que vai acontecer amanhã.

- Como assim?

- Bem. Eu não imaginava que estaria aqui, bebendo cerveja com você. Ou que conversaríamos sobre nossos problemas. Que você me entenderia. Que eu te entenderia.

- É verdade. É bom poder conversar contigo.

- Só que eu acho que você não se abre tanto quanto eu sobre o que sente. Eu falo pelos cotovelos, pro bem ou pro mal. E te vejo muito reservada.

- É difícil falar sobre certas coisas.

- Eu entendo. Não é uma crítica.

- Eu sei que não é.

- Não sei se é exatamente isso o que você sente. Mas vou tentar falar sobre o que eu percebo.

- Ok.

- Tu tenta fazer o melhor que pode pelas pessoas que você gosta. Todo mundo espera reciprocidade nas relações, é algo natural. A falta dela sempre causa sofrimento. Contigo eu acho que é mais simples. Você só espera que as pessoas tentem. Que mostrem o esforço. O esforço parece mais importante que o resultado, pra você.

Clara ficou encarando a cerveja enquanto eu falava, e não falou nada, então eu continuei.

- Diferentemente de mim, teu amor não vem fácil. Eu me apaixono rotineiramente e de forma rápida. Você demora a amar alguém, as coisas fluem lentamente, mas vão se carregando de intensidade. Como um rio que começa correndo devagar, mas que vai acelerando e termina numa cachoeira. Você só espera encontrar alguém que queira nadar em você, tanto nos dias de calma quanto nos dias de correnteza.

- De onde você tirou isso tudo?

- Não sei. De você.

- Continua.

- Eu sou um Zé Ruela. Confio em todo mundo. Basta eu gostar de alguém que eu já espero o melhor dela. Acredito no que os outros dizem até eles me provarem que não merecem minha confiança. Por isso fui feito de otário por você sabe quem.

Clara não conseguiu conter o riso com minha brincadeira e gesticulou para que eu continuasse.

- Já você, parece que demora a confiar afetivamente. É uma questão até de entrega, se você sente a reciprocidade, você se joga. Tudo em tu denota intensidade. Eu gosto de analogias e você parece a própria cachoeira.

Clara ficou pesando as minhas palavras, tomou um gole da cerveja e me olhou com um sorriso de aprovação.

- Tá tudo certo. Não achei que eu era tão transparente.

- Não sei se você é transparente, ou se é simplesmente familiar pra mim.

- Estranho que você me diga isso tudo agora.

- Porque estranho?

- Por que eu não estou acostumada em ser compreendida. As pessoas parecem alheias umas as outras. São poucas as que estão realmente observando ou realmente preocupadas.

- Desde quando você se tornou assim tão fatalista, Clara?

Clara riu, por eu ter roubado sua frase, e disse me dando um tapinha no braço.

- A vida né? Uma sucessão de histórias semelhantes se repetindo, as coisas vem e vão, e de um jeito ou de outro, as elas se repetem e vão moldando a gente.

- Eu não queria concordar com isso, mas acho que você tem razão.

Terminamos a cerveja em silêncio e Clara falou subitamente.

- Eu quero dançar.

- Sou uma negação dançando, digo logo.

- hahaha Não é possível.

- É verdade. Mas se você quiser eu te acompanho, só não ria da minha cara.

- Não vou rir. Só quero me mexer um pouco.

- Tá certo.

Paguei a conta e fui no banheiro. Quando voltei, Clara estava em pé, fuçando no celular.

- Vou desligar essa bosta, só avisei a minha mãe que estava com você.

- Acho que vou fazer o mesmo, Clara. As vezes eu fico ansioso, olhando o telefone o tempo todo e termino me esquecendo de aproveitar o que tenho ao meu redor.

- Então tá certo. Sem celular até a hora de ir embora.

Apertamos as mãos e saímos, de braços dados, procurando por algum agito.

Eu sempre me senti à vontade no Recife Antigo. As ruas de paralelepípedos, os prédios caindo aos pedaços, as calçadas e as luzes amareladas que as iluminavam. Eu amava sobretudo o cheiro de maresia e a proximidade do mar. Clara, pelo jeito também amava estar ali. Seu olhar se perdia constantemente nos prédios, como tentasse reconstruir a história de cada casa e cada sobrado.

Eu não estava me sentindo muito falante aquela noite, diferentemente do que é comum para mim. Acho que meu silêncio deixou Clara intrigada. Eu via que ela estava com alguma pergunta na ponta da língua, mas hesitava de fazê-la.

Em algum ponto do caminho ela finalmente falou.

- Você tem estado com alguém ultimamente.

Fui pego de surpresa pela pergunta, mas respondi prontamente.

- Tenho sim.

- E?

- Como assim?

- Eu quero saber... como tem sido pra você?

- Estranho. Confuso.

- Fala mais.

- Depois do meu último relacionamento eu não sei se consigo confiar em alguém com quem esteja envolvido.

- Eu sei que é difícil, mas você não pode deixar que as decepções que uma pessoa lhe causou afetarem os seus próximos relacionamentos.

- Clara. Eu vivi dois anos de uma mentira. É complicado demais. Eu descobri traições, mentiras, omissões, manipulações de todo o tipo. Considero que minha ex tinha algo de uma sociopata.

- Pode ser. Pode não ser. Mas o que ela fez cabe à consciência dela. Você sabe que deu o que tinha de melhor. Se ela errou, o erro é dela, não seu. Não se puna por isso.

- Me culpo por confiar cegamente.

- Eu sei como é. Mas não fica nessa. Tu é melhor que isso.

Paramos de andar e Clara me abraçou.

Pude sentir sua respiração um pouco mais calma do que a minha e aos poucos fui também me acalmando.

- Olha Rômulo, eu te conheço há muito pouco tempo, mas já sei que não suporto te ver com esse humor. Tenho que fazer algo a respeito.

- Acho que ninguém gosta de me ver assim. Fico mais ranzinza do que o de costume. Por isso que esse meu novo rolo tá estranho. Qualquer pessoa que conviva comigo por mais de uma hora vai ver que eu estou carregando um peso enorme nas costas. Eu me sinto um burro de carga subindo a ladeira da misericórdia.

Clara riu e me deu um beijo no rosto.

- Tu faz os melhores comentários, cabra besta. Vamos dançar.

- Tu vai, eu só vou ficar olhando e me agarrando com uma cerveja.

- Vamos então.

E ela dançou. A noite inteira, como se não houvesse amanhã... até que fosse de manhã.

Terminamos no mesmo lugar onde a noite começou.

Clara se tremendo de frio, abraçada comigo e esperando o sol surgir do meio do mar.

Pensei que o tempo poderia dar uma parada pra que aquelas sensações durassem mais um pouco. Fazia tempo que eu não dividia algo com uma companhia realmente sincera.

Mas o tempo passou, e logo estávamos nos nossos respectivos ônibus em direção às nossas casas.

Só ai, ligamos os celulares e voltamos às vidas e aos problemas que estávamos tentando deixar para trás, da melhor forma possível.

5

Eu estava novamente subindo escadas. Mas dessa vez os meus passos eram lentos e hesitantes. Os últimos anos da minha vida passavam como um filme diante dos meus olhos a cada degrau que eu galgava, as vezes eu parava para limpar as lágrimas que escorriam e manchavam meus óculos, mas logo retomava o passo. Finalmente eu estava no décimo sexto andar.

Apesar de haverem elevadores no prédio em que eu morava agora, algo me fez decidir pelas escadas. Arrependido pelo esforço, eu dei de cara com a porta de madeira do meu apartamento e já podia ouvir o miado das gatas, angustiadas pelo confinamento que eu as havia imposto. Me senti triste por isso, mas eu não podia continuar minha vida na casa antiga. Algo me dizia que não seria uma mudança de imóvel que ia resolver meus problemas. Mas era um passo necessário.

Abri a porta e a tranquei rapidamente para que as gatas não fugissem.

Observei a sala com os móveis ainda espalhados e desorganizados pela mudança. Caminhei pela casa e fui até a varanda.

Lá embaixo, eu via boa parte da cidade. Via pequenos carros e pessoas se locomovendo. Aquilo tudo me acalmou, mas também me deu a certeza de que as coisas não poderiam continuar daquele jeito.

Voltei para sala e botei ração para as gatas. Abri uma cerveja e me sentei na cama. Me despi sem pressa e fui bebendo o conteúdo da lata. O mesmo filme que passara na minha cabeça na escadaria retornou e com ele as lágrimas. Achei que eu tinha encontrado meu limite.

Me levantei e fui até o chuveiro. Tomei um banho quente e me enxuguei displicentemente. Fiquei diante do espelho. Novamente, não reconheci meu rosto. Apenas os olhos manchados de vermelho.

Vesti uma bermuda surrada e me sentei na grade da varanda. Com as pernas para o lado de fora.

senti uma agonia no estômago. Eu sempre tive medo de altura.

Eu suava frio e meus pés estavam gelados.

Fui esvaziando a cerveja e olhando para baixo.

Seria tão fácil fechar os olhos escorregar. Seria tão simples, rápido e indolor. Cessariam todas as dúvidas, morreriam as perguntas sem respostas e calariam todas as vozes que não me deixavam ter paz.

Parecia uma decisão sensata. Mas por que eu hesitava?

Fechei meus olhos e tudo ficou escuro.

Achei que a queda seria mais rápida e assustadora. Estranhamente me senti acolhido, como naqueles sonhos em que se pode voar. Parecia que estava mergulhando numa piscina quente.

Então, subitamente, veio um clarão e eu pude ouvir um estampido seguido de um zunido fino e oscilante.

Senti que eu me dissolvia e em algo quente e aconchegante. Finalmente eu estava em paz, cercado de silêncio e nada.

Não sei quanto tempo isso durou... tempo parecia uma coisa abstrata.

Mas fui arrancado daquele estado pacífico por uma voz conhecida...

Abri meus olhos.

Acordei ofegante. Eu estava numa barraca de camping. Do lado de fora dava pra ouvir que caia uma tempestade. A barraca tremia e chiava com o barulho das gotas de chuva.

Abri o zíper e dei de cara com Clara, ensopada e tremendo.

- Posso entrar? Minha barraca tá com goteira.

- Entra aí, mulher. Se enxuga.

Clara entrou, e eu fui voltando aos poucos ao normal.

Tinha sido tudo um sonho. Dos mais loucos e profundos que eu já tinha tido.

Parecia real. Apesar de eu nunca ter morado num apartamento no décimo sexto andar. Apesar de nunca ter me mudado para um lugar assim... os sentimentos eram reais. A angústia era a mesma. Eu só estava fingindo que não sentia para parecer uma pessoa normal.

Clara se aconchegou do meu lado e eu abri espaço entre a bagunça para que pudéssemos deitar.

- Você está bem? – Ela disse.

- Estou... Só tive um sonho muito estranho.

- Que tipo de sonho?

- Não quero falar sobre ele agora.

- Você tá tremendo.

- Você também... haha parece um pinto que saiu da chuva.

- Eu não sabia que ia cair essa chuva né?

- Só tu mesmo pra me convencer a acampar e ainda me traz pra uma tempestade.

- Você falou que eu era uma cachoeira. Eu quis te apresentar minha cachoeira preferida. O meu lugar favorito do mundo.

- Não to reclamando de ter vindo. Achei tudo maravilhoso.

- Certeza?

- Sim. E vou te provar.

- Como?

Clara parecia intrigada com minha afirmação e eu podia sentir, apesar da escuridão completa.

Engatinhei e abri a barraca e só assim pude ver um pouco a surpresa de Clara.

- Vem comigo. Eu disse.

- Mas tá chovendo muito.

- Venha menina.

Com isso, puxei Clara pela mão e corri com ela debaixo da chuva.

A cachoeira estava perto, dava pra ouvir.

Fomos andando pela grama e logo depois pelas pedras e chegamos finalmente no riacho onde a cachoeira quebrava.

Puxei Clara pela mão e entramos debaixo d´água.

Ela tremia, mas sorria.

O frio à fazia soluçar e se encolher. Mas mesmo assim o sorriso não deixava seu rosto.

- Você ficou doido?

- Um pouco.

- Tô vendo.

- Como se tá tudo escuro?

- Dá pra perceber...

- Eu precisava me sentir um pouco mais vivo.

Afundei na água e me afastei um pouco de Clara.

Ela veio andando devagar em minha direção.

- Vamos voltar pra a barraca e beber alguma coisa. – Balbuciou enquanto tremia.

- Vamos.

Voltamos da forma mais rápida que conseguimos. Nos enxugamos e abrimos uma garrafa de vinho.

A noite foi passando e começou a trovoar.

Raios cortavam o céu e Clara abriu um pouco a barraca para observar.

Dava pra ver que ela estava encantada e ao mesmo tempo um pouco assustada. Me postei ao seu lado para assistir e senti a mão de Clara segurando com força na minha. Não sei se foi o álcool ou o frio, mas eu a sentia cada vez mais próxima.

Depois de um trovão particularmente intenso, Clara resolveu parar de olhar para o céu e se apertou contra mim.

Deitamos e nos enrolamos nos lençóis.

Não sei quanto tempo levou para que adormecêssemos e só lembro de acordar, olhar para o lado e ver Clara encolhida dormindo.

Saí silenciosamente da barraca e vi que estava amanhecendo. Não chovia mais e resolvi observar o estrago na barraca dela.

Abri o zíper e para meu estranhamento, estava tudo seco lá dentro.

Não havia um furo sequer.

Voltei para minha barraca e me aninhei debaixo dos lençóis ao lado de Clara.

6

Stefanie afastou o corpo do meu e respirou fundo, meio fora de controle, e tapou os olhos. Eu me recostei na parede e puxei sua cintura de encontro à minha. Ela tremeu, mas descobriu os olhos e me encarou. Eu via uma certa confusão em seus olhos, mas o desejo e a vontade de estar ali eram claros em seu olhar. Havia hesitação de sua parte e eu podia imaginar quais eram os motivos. Algo dentro de mim sugeria que talvez fosse melhor me afastar e esperar que ela viesse até mim mais solta e de própria vontade. Mas a outra parte sabia que aquela hesitação passaria no próximo beijo. Eu me perguntava o quanto ela me queria e se a coisa era proporcional ao que eu sentia.

Stefanie entranhou os dedos da mão direita em meus cabelos e com a esquerda segurou com força em minha bunda. Aquilo acontecia pouco comigo. Eu não tinha costume de “ser pego” daquele jeito.

Como eu imaginei, a hesitação foi embora e Stefanie embarcou profundamente no nosso lance. E o romance hipotético começou a ser posto em prática. Como se espera de uma aquariana – o que ela adorava ressaltar – o seu desejo sempre começava de forma verbal e intelectual... muitas vezes até hipoteticamente. Mas com o tempo, o tesão, a vontade e as conexões que formava, iam se tornando cada vez mais reais e materiais. Ela só tinha se desacostumado de por tudo em prática, dadas às circunstâncias de sua vida nos últimos anos.

Ela sempre dizia que não se arrependia de nada que tinha feito. O amor era realmente uma coisa mais profunda que transas sensuais e encontros casuais. E ela tinha vivido o amor em várias das formas possíveis. Muito mais que eu, que vivia redundantemente preso à ideia de amor romântico e pouco variável. Eu era poeta de palavras. Ela era poetisa de ações e de vivências, mas sem nunca deixar de lado os sonhos e os castelos que erguia no ar, da fumaça das próprias ideias.

Stefanie podia não me amar. Ou podia me amar intensamente. Dependia muito dos nossos momentos. E aquilo podia marcá-la pra sempre, ou desaparecer no vento com o passar dos meses. Nem eu nem ela sabíamos se ia durar. Na realidade, eu fingia que não me preocupava com isso, e não fazia ideia do que passava por sua cabeça.

Eu era muito bom em expor o que sentia com palavras, mas também era terrível para acertar o tempo de demonstrar meus sentimentos de uma forma mais concreta. As vezes eu me jogava loucamente em qualquer possibilidade, sem nem mesmo considerar se era algo realmente possível.

Meu coração vivia na roleta russa.

Sempre achei que esse fato era o que compelia Stefanie aos meu braços. Sempre achei que o tesão dela era por minha intensidade. Pela minha ingenuidade quase cega, mas feliz.

Pelo jeito que eu descrevia minhas mulheres e minhas paixões. Pelas palavras que fluíam soltas e fora de controle, pelos desejos que eu vivia pela metade, mas que me queimavam e me levavam até a beira da insanidade.

Por esse motivo eu sabia que desejos escorriam das pernas de Stefanie e que sua boca queria a minha. Que seus mamilos estavam rígidos e que ela me devoraria sem pudor algum.

Com o passar dos minutos, eu me entranhava cada vez mais em seus cabelos e suas unhas penetravam em minha carne à ponto da dor se misturar com prazer. Eu podia sentir sua respiração em meu pescoço e o seu coração disparado... quase tanto quanto o meu. Desci a mão até a sua perna e fui subindo debaixo do vestido... Eu sentia sua carne tremendo com o meu toque e encorajado pelos seus suspiros, cheguei até onde ela esperava que eu chegasse. Parei e olhei em seus olhos... A tensão do momento fez um filme passar em minha cabeça. Desde o primeiro instante que eu a havia visto, a sua primeira gargalhada, a primeira poesia, o primeiro flerte... e eu estava ali, desnudo em espírito e com pensamentos correndo desesperados em minha mente.

Nos afastamos e ela não conseguiu disfarçar um sorriso.

Estávamos perdidos e achados ao mesmo tempo. A sensação era deliciosa. Tanto para mim quanto para ela.

Ficamos os dois, nos olhando e sorrindo, pela descoberta. Pela sensação de possibilidades infinitas, pelo tempo que derretia e parecia não significar nada.

Reciprocidade era um negócio que me tirava do chão. Eu via nos olhos dela um espelho do que eu sentia. Aquilo era raro.

Mas a ilusão do tempo se desfez. Percebemos a hora, e que deviam nos estar procurando.

Voltamos de mãos dadas pela rua, enquanto o cheiro de fumaça e de milho assado enchia ainda o ar. O frio, a chuva, as pessoas correndo e dançando embriagadas... E nós estávamos embriagados um do outro.

Chegamos na casa em que estávamos hospedados.

Stefanie ficou num quarto, eu no outro.

Apenas uma parede nos separava e enquanto haviam pessoas acordadas na casa eu estive sozinho, olhando para o teto, incapaz de adormecer.

Mas, no meio da madrugada, quando estavam todos bêbados ou dormindo, eu ouvi passos e a minha porta se abrindo.

Eu pude ver os olhos de Stefanie brilhando, sob a pouca luz de uma lua minguante. Era ela, se enfiando debaixo dos meus lençóis e se aninhando contra meu peito.

Era ela que me beijava o pescoço e que disse,

- Me ame. Me foda. Só hoje, ou pra sempre. Tanto faz.

7

Junho já se encaminhava pro seu fim e eu não tinha conseguido muitas respostas para as questões existenciais que 2017 tinha trazido à minha mesa. Na verdade o ano passou e eu não sai do lugar. Não tinha feito nada de muito útil, além de descobrir que eu tinha sido feito de idiota por uns dois anos. Talvez o problema seja justamente o fato de eu me repetir nesse assunto com extrema frequência, tanto em meus pensamentos quanto estou fazendo aqui. Eu acordava mais uma vez num domingo de manhã, moído de ressaca. Meu coração estava partido, mas que estava levando a pior mesmo era meu fígado.

Me arrastei e me sentei na beirada da cama. Desliguei o ventilador e fiquei olhando o sol por trás da cortina improvisada que eu tinha feito na janela e que deixava o quarto sempre à meia luz. Eu precisava fazer algo diferente ou ia ficar doido. Havia uma pilha enorme de pratos na pia, poeira no chão e nos móveis e uma boa quantidade de roupas para lavar. Era o drama do jovem adulto moderno. O mundo seguia numa velocidade caótica do lado de fora, com guerras, crises, atentados terroristas, mas o que mais me assustava era mesmo a bagunça da minha casa e a inércia que eu não conseguia expulsar de mim mesmo.

É o tipo da coisa que pouca gente percebe... as crises internas parecem sempre mais trágicas e difíceis de lidar do que as externas, mesmo que nelas você tenha todo o poder de escolha e de transformação.

Amanhã, algum louco poderia explodir um avião, ou lançar uma bomba sobre o país errado e em uma semana o mundo ia estar enfiado numa guerra insana e sem precedentes. Mas eu estava mesmo era preocupado com o buraco no meu coração e minha falta de vontade de cuidar de simples tarefas domésticas.

Peguei meu telefone que jazia no chão, descarregado. Liguei o aparelho na tomada e verifiquei o que tinha perdido na última madrugada de bebedeira.

Havia uma ligação perdida de Clara, e um número enorme de mensagens em grupos de whatsapp supérfluos.

Pensei no que Clara poderia querer falar comigo, já que estávamos relativamente distanciados nas últimas semanas, por minha própria escolha.

Resolvi ligar para ela.

O aparelho tocou duas vezes e ela atendeu com uma voz sonolenta.

- Oi, poeta, boa tarde.

- Boa tarde. Você me ligou?

- Liguei sim. Quis saber como você estava.

- Tô na mesma, acho. – Respondi laconicamente e claramente desanimado.

- Dá pra perceber.

- Não, eu to até melhor, na verdade. Mas você sabe. Domingos sempre me derrubam. Questão de costume.

- Sei exatamente do que você tá falando.

- Você tá chateada comigo?

- Não estou. Só me perguntei o motivo do sumiço.

- É, eu sei. Não foi nada demais. Nada que eu consiga explicar.

- Não sei se você é doido ou só complicado mesmo, poeta.

- Acho que a resposta mais precisa seria que eu sou as duas coisas.

Clara riu do outro lado da linha e eu pude ouvir além de sua risada o barulho de crianças e outras pessoas falando. O que contrastava com o silêncio do meu quarto.

- Olha. Você quer tomar um café comigo essa semana – Disse-me.

- Eu aceito. Só diz o dia e o horário que você pode.

- Acho que quarta ou quinta. No fim da tarde antes de eu ir pra faculdade.

- Fechado.

- Então tá bom. Fica bem e não some mais.

- Não posso prometer, mas vou tentar.

Clara riu de novo, se despediu e desligou o telefone.

Larguei o aparelho de lado e voltei para a sala.

Encarei a pilha de pratos sujos e depois abri a geladeira.

Tirei uma Maçã e tasquei-lhe uma mordida.

sentei no chão e ponderei sobre o que eu estava fazendo com minha vida.

A vida profissional era um desânimo só, minha vida amorosa parecia uma história de horror. Minha família era uma completa insanidade, totalmente virada de cabeça para baixo. Eu estava amargando de tanto fatalismo e nem sequer tomava uma atitude para reverter as situações que eu tinha poder de escolha.

Não ia poder beber e fumar os meus problemas, ou esquecê-los no meio das pernas de mulheres que apareciam randomicamente na minha vida.

Claro que eu conseguia viver momentos realmente interessantes e sentimentos genuínos a partir disso tudo e que de alguma forma eu sentia até prazer durante um tempo. Mas no fim, eu sempre estava só aos domingos.

Pensei em Stefanie. Como estaria sendo o domingo dela, com muito mais responsabilidades e obrigações. Me perguntei sob com que frequência ela pensaria em mim e por quanto tempo eu estaria em sua cabeça.

Pensei em Clara, com toda aquela energia e boas intenções, mas ainda assim, tão perdida quanto eu. Pensei em Tamires, que tinha sumido no mundo tão subitamente quanto tinha aparecido.

Me questionei sobre a transitoriedade das minhas crises existenciais e que talvez a atual fosse a pior de todas pelas quais eu já havia passado. Me perguntei sobre que sabedoria eu poderia extrair daquilo tudo e se eu ia sair dessa como uma pessoa diferente.

A resposta não estava com Stefanie, com Clara ou com Tamires. A resposta não estava nos pratos por lavar, na pilha de roupas, ou no meu trabalho.

A resposta não estava nas minhas bebedeiras, nem nas distrações que eu procurava no dia a dia.

A resposta estava dentro. Tão profundamente entranhada em mim mesmo que eu à sentia fora do meu alcance. Eu ia chegar lá, só precisava mudar a metodologia.

Afinal, eu já não tinha tanto tempo pra perder quanto tinha aos vinte e poucos.

Terminei a maçã, e fui aos pratos, depois às roupas e então varri o chão. Passei pano, lavei o banheiro, joguei o lixo do lado de fora.

Organizei meus livros, juntei minhas cartas e versos que estavam espalhados pelo quarto.

Por fim, tomei um banho frio e me vesti.

Já era quase noite, e a chuva fina que caía levantava um adocicado cheiro de terra molhada.

Eu sabia o que precisava fazer. Não era uma questão de como, mas de quando eu ia começar.

Puxei o computador para o meu colo e abri o editor de texto.

Palavra por palavra, fui jogando na tela meus pensamentos e minhas loucuras. Meus amores, frustrações e ansiedades. Não era pouca coisa,

mas uma hora ou outra eu ia chegar lá.

Talvez escrevendo eu pudesse dar um sentido a tudo o que me estava acontecendo.

8

Pra não dizerem que eu só falo de minhas dores, às vezes reservo espaço entre meus versos para algumas flores e para alguns sorrisos.

Mesmo a maior das tempestades aduba o jardim, diz a letra da música que eu canto para tentar consolar a mim mesmo, e olhando para o jardim na frente de casa eu vejo flores, sim. Meus olhos encharcados ainda não perderam o brilho, minhas mãos não perderam a força, minha boca não perdeu a voz e meu corpo ainda mantém algum calor. Talvez isso não signifique nada para quem não esteja olhando. E por meses eu não olhei. Eu só sentia o gosto da derrota e do meu próprio desamparo. Eu abandonei a mim mesmo, deixei de ser o que era por uma causa perdida. Quando a derrota final veio, junto com o armistício exigindo rendição incondicional. Eu me rendi. Armas no chão. Cabeça baixa. Quis ser executado pelos crimes de outrem, só para acelerar o fim. Mas a poeira foi baixando e a terra devastada do meu peito pareceu calma novamente. As chuvas foram lavando as lágrimas e o sentimento de perda territorial, que na verdade era uma ilusão. A chuva me deu novos olhos, e com eles, eu estava vendo tudo com novas cores.

Dava pra sentir ainda os arranhões em minhas costas. Dava pra sentir o cheiro do perfume de Stefanie entranhado em minha pele. Eu quase podia ouvi-la dormindo no quarto. O sono mais inquieto que eu já vira.

Tive medo que o barulho da chuva a despertasse. Tive medo que meus passos lhe roubassem a tranquilidade da modorra. Voltei para o quarto e ela permanecia adormecida, com o corpo descoberto e o púbis maravilhosamente exposto. Os seios, nem pequenos nem grandes, seguiam o ritmo lento de sua respiração. Sentei-me ao seu lado e me deixei perder naquele momento. Fui trazido novamente à realidade pela própria Stefanie, que acordara de sobressalto. Assustada com a minha presença ela se pôs sentada, depois me abraçou, chorando e soluçando.

Abracei-a também e esperei que ela se acalmasse. Ela se afastou um pouco e me olhou nos olhos.

- Você está bem? – Ela perguntou.

- Estou, meu bem. Estou bem, e estou aqui.

- Tive um pesadelo com você. Você estava tão triste, e eu não consegui te consolar.

- Você tem feito o que pode. E tem feito muito mais do que qualquer outra pessoa.

- Mas não parecia suficiente.

- Não se preocupa com isso, meu bem.

- Como você conseguiu passar por tudo o que passou sem se revoltar?

eu só vejo você triste. Não te vejo com ódio nem raiva.

- Acho que essas coisas não cabem muito bem em mim.

- De alguma forma eu senti em mim tuas dores durante o sonho e me subiu uma raiva pela espinha...

- Não pensa mais nisso. Deita aqui comigo.

Deitamos os dois, com as pernas aninhadas. Stefanie colocou a cabeça em meu peito e ficou suspirando, ainda exaltada.

Aos poucos nossas respirações foram sincronizando e tudo pareceu finalmente em paz. Pelo menos teoricamente.

Stefanie logo teria que voltar para as suas obrigações e eu para minha rotina. E nossos encontros voltariam a ser raros e espaçados. Ela tinha muita coisa a resolver antes de poder se envolver da forma que estávamos fazendo. Separação, crianças, mudanças... Ela tinha muita coisa para pensar e eu não queria ser mais um problema a se resolver.

Espatifado internamente como eu estava, também não poderia me dar ao luxo de ir muito mais fundo do que eu já estava indo.

Apesar de tudo era bom viver apenas naquele momento, sem olhar muito para frente. Era bom focar apenas nas flores e deixar o concreto de lado.

Não como escapismo ou fuga, mas por necessidade. Por que a forma que encaramos esses momentos é o que define nossas vidas.

Eu resolvi pegar o melhor que cada pessoa decide me oferecer e guardar dentro de mim. Resolvi transformar esses momentos em “eternidade”, um capítulo por vez, como um porta retratos de lembranças.

Apesar de eu me sentir quebrado, algo me dizia que ainda existia espaço para muitas histórias,

que eu poderia contar, ou guardar apenas para mim.

9

O som fluía arrastado, quente e abafado, da vitrola, enquanto o velho vinil que fora de minha mãe girava lentamente, ganhando novamente vida e inundando minha casa de nostalgia.

"O meu amor tem um jeito manso que é só seu

E que me deixa louca quando me beija a boca

A minha pele toda fica arrepiada

E me beija com calma e fundo

Até minh'alma se sentir beijada"

Maria Bethânia ia cantando e Eu dançava, meio que fora de ritmo, nos braços de Stefanie, com os olhos grudados nos seus, dada nossa semelhança em altura. Ela parecia não dar importância para minha falta de talento para dança, e apesar da seriedade em seu rosto, eu sabia que ela estava feliz.

A cada verso da música, arrepios corriam por seus braços e ela me puxava para ainda mais perto. Quis me beijar, mas eu não deixei, insistiu, mas eu de teimoso, resisti.

A prendi com toda minha força, mas ainda assim, gentilmente. Ela lutou, irritada e inquieta. Eu queria que ela tivesse consciência daquele momento, e não que se jogasse em mais uma loucura lasciva, como as que nós estávamos tendo.

Ela parou de resistir e amoleceu e se entregou. Soltei os seus braços e tirei os cabelos da frente da sua testa. Stefanie, contrariada e perdida, fechou os olhos e suspirou um de seus suspiros de birra, de quando ela não conseguia disfarçar a própria confusão.

Mas aí, eu trouxe seu rosto de encontro ao meu, segurando levemente em sua nuca.

Trouxe a sua boca até a minha. Beijei-a, nos lábios, no rosto, na testa, no pescoço, na alma.

Desci pelo seu colo e soltei o seu vestido pelas alças até que caísse completamente no chão.

Stefanie cobriu os seios com as mãos, num reflexo de pudor que ela raramente tinha.

Desnuda, não de corpo, mas de mascaras, ela enrubesceu e olhou para baixo.

Deitamos no chão mesmo e nos deixamos ficar em silêncio por um tempo, enquanto minhas mãos passeavam por seu corpo. Eu calei porque quis, mas ela, eu sabia, tinha muito engasgado e por dizer. Finalmente ela recostou a cabeça sobre meu peito e se pôs a chorar, lágrimas que eu sabia que estavam acumuladas já há muito e por causas muito maiores do que eu poderia compreender. Na realidade aquela não era minha função ali. Só quis que de algum jeito ela pudesse ser a pessoa que ela queria ser, e não a que tinha que ser no dia a dia.

Ela chorou e soluçou e me beijou. Depois me bateu, também no peito, como que se estivesse frustrada por ter se aberto tanto. E eu deixei que me agredisse...

- O que você quer de mim, Rômulo?

- Não quero nada mais do que o que já temos

- Você adora essas suas falas inteligentes... ou que você acha que soam inteligentes, mas que não respondem nada.

- Que resposta você quer que eu dê?

- Uma resposta humana e não mecânica.

Parei ali, abatido pela pancada de suas palavras, e não pude sequer responder.

- Olha, eu não me importo com as suas mulheres, ou com os versos que você escreve para elas. Na verdade eu me incomodo, mas que se exploda, sei conviver com isso. Quanto aos seus silêncios e seu laconismo ocasional, confesso que fico confusa, mesmo sabendo que isso é parte do que você é. – Continuou, entre lágrimas e soluços.

- Stefanie... eu – falei hesitantemente, até que ela me interrompesse.

- Eu ODEIO que você me chame assim, pelo nome completo. Não me reconheço nas suas palavras quando você fala assim... Eu te amo e te odeio pelas coisas que você me faz sentir. Odeio ser levada assim, tão facilmente por teus versos, tuas brincadeiras, teus sorrisos. Queria que fosse mais simples.

- Se fosse mais simples, você não estaria aqui. Se fosse simples você não sentiria tanto.

- isso não é um jogo, ok? Meu coração que está na linha do trem.

- E onde você acha que o meu está? Não acha que eu sinto também, ou que não sou vulnerável a você? Acha que o que você fala não me toca?

- Não foi isso que eu quis dizer.

- Então o que foi, mulher?

- Não sei. Queria saber onde estamos.

- Estamos aqui, nos braços um do outro. Pra mim não existe nada além de aqui e agora. Mesmo que eu saiba que amanhã vamos ter que voltar para nossas vidas.

- No começo isso não era um problema, mas agora acho que é.

- Sempre vai ter alguma coisa, Stefanie. Sempre vai ter uma pedra no caminho. Você pode passar por cima dela, ou dar meia volta.

- Não quero dar meia volta.

- Eu sei.

ficamos calados, olhando um para o outro.

O disco já havia parado de girar sem que tivéssemos percebido. Desliguei a vitrola e tomei Stefanie pela mão. Sentei em minha cama e ela se encostou na janela para fumar um cigarro.

Ainda faltava muito tempo para que amanhecesse e eu não tinha nenhum sono. Eu sabia que eventualmente ia adormecer, mas me perguntava se Stefanie estaria ao meu lado quando eu acordasse. Naquela altura, não sabia o que esperar dela, mas de alguma forma, estava pronto para descobrir.

10

Junho era sempre um mês de ansiedade para mim, desde a infância.

Logo de cara, era meu aniversário, e depois vinha o São João e as férias. Era uma época engraçada, quando eu só tinha que me preocupar com que presente eu ia ganhar – quando ganhava – e em passar por média na escola. Hoje eu sinto inveja de mim mesmo de anos atrás.

A cada ano que se acumula nas minhas costas eu sinto que meus objetivos finais ficam mais distantes e intangíveis...

Melancolia e nostalgia... tudo o que um homem não precisa no próprio aniversário. Mas era assim que eu me sinto hoje, e eu já passei do ponto que eu ainda tentava fingir para as pessoas que eu estava bem.

Fodam-se as pessoas em geral. Salvando-se apenas algumas em particular. O último ano tinha sido, com toda certeza, o pior da minha vida. De perdas familiares a decepções amorosas e incertezas profissionais. Sendo quase impossível lidar com isso tudo sobriamente e racionalmente, como era o meu costume. Embriaguez e emoção tomaram os seus lugares completamente.

Pouca gente sabe, mas um em cada vinte e cinco pessoas são sociopatas. Eu dei a sorte de me apaixonar e ter uma relação de mais de dois anos com uma. Só depois de muito tempo que descobri a quantidade de mentiras e manipulações as quais eu estive submetido.

Acredito que eu seja uma pessoa vulnerável a esse tipo de coisa, por que eu parto do principio de que todo mundo merece algum grau de confiança automaticamente. E quando eu me apaixono, não sei ter nada menos do que confiança absoluta por quem está comigo.

Essa confiança gratuita pode parecer algo idiótico e infantil, mas para mim era natural... ainda é natural de alguma forma. Mesmo que eu me sinta destruído demais internamente para confiar novamente em alguém, algo dentro de mim anseia pela possibilidade de fazê-lo novamente. E para um cara crédulo ingênuo como eu mesmo, descobrir que um relacionamento de dois anos foi uma completa mentira, cheio de traições das mais rasteiras, terminou sendo o empurrão que eu precisava para seguir direto para o fundo do poço.

Puta que pariu... só a lembrança dos fatos me faz embrulhar o estômago. Me deixam enojado e fazem com que eu me sinta sujo. Mesmo que a sujeira não tenha sido minha. O pior é que a referida pessoa é incapaz de se sentir culpada por tudo que fez e segue em seu metiê de fazer outras pessoas de idiotas e de brincar com a vida dos outros.

Eu não imaginava que pessoas assim realmente existissem. Eu sempre achei que fosse coisa de novela. Coisa de roteiros mal elaborados polarizados entre o bem e o mal. Não achei que alguém fosse capaz de dormir tendo sido tão cruel e violenta com as emoções dos outros.

Não sabia que alguém fosse capaz de fingir amar, de chorar, de sorrir, de declarar amor eterno, de beijar, de transar, de fazer amor, de foder, tudo com base em mentiras... e de uma forma natural e corriqueira. No fim, a única coisa que eu consigo sentir é culpa. Culpa por ter acreditado e deixado alguém entrar assim na minha vida. Mais um ano passando e eu caindo nesse tipo de cilada.

Paro para pensar sobre tudo completamente envolto em cansaço e derrotismo e me sinto impotente, descontrolado.

Sinto que resta cada vez menos do garoto que ia dormir ansioso pelo primeiro dia de junho,

Por mais um ano... Por mais um passo em direção aos próprios sonhos.

11

Clara me ligou de madrugada. Acho que era umas 2:28.

- Alô. Rômulo.? – Ela disse.

- Estou aqui.

- Você está bem?

- Estou. Firme na insônia.

- Eu não estou conseguindo dormir hoje.

- Comigo é sempre assim.

- Então... Acho que estou apaixonada. – Ela falou depois de alguns segundos de silêncio.

- Acontece com todos.

- Não comigo. Mas ele é especial, sabe?

- Sério?

- Sim. Ele é lindo... Deve ser um pouco mais alto que você e um pouco mais magro. Anda sempre bem vestido. Gosta de poesia também. Ele sempre posta umas coisas de Caio F. Abreu.

- Uhhmm. – Murmurei.

- O que foi?

- E qual o problema com ele?

- Como você sabe que tem um problema?

- Pra você me ligar uma hora dessas deve ter alguma coisa.

- É. Esqueci que já estava bem tarde. Me desculpa.

- Não é um incômodo.

- Tá. Então. O problema é que ele é casado.

- Bem. Acho que a esposa dele não vai gostar muito dessa história.

- Então... Antes o problema fosse só esse.

- Tem mais?

- Ele é casado com um homem.

- Ele é gay?

- Não exatamente. Ele se diz bissexual. E tem uma daquelas relações não monogâmicas.

- Se não é monogâmica, qual o problema?

- O problema é que eu não quero estar apaixonada por um homem que dorme toda noite com outro homem.

- Estou entendendo.

- O que eu faço?

- Não sei. Sinceramente eu não sei.

- O que você faria?

- Nunca estive numa situação nem perto dessas. Então não sei bem o que te dizer. Mas acho que não vale a pena você perder o sono por causa disso. Claramente não é o tipo de coisa que daria certo com você.

- Você tem razão.

- Aí eu já não sei.

- Obrigada por me ouvir. Vou tentar dormir agora. – Clara falou. Pude ouvir o barulho dela derrubando alguma coisa do outro lado, seguido de um palavrão.

- Não foi nada meu bem. Boa noite. – Respondi.

- Boa noite.

Deixei o telefone de lado e voltei a tentar me concentrar no livro que estava lendo antes. Mas não passei da segunda página. Larguei o livro de lado e andei até a sala. Sentei na janela, com as pernas pro lado de fora. No telhado do vizinho, um gato preto passou com um rato na boca e me olhou. Pude ver os olhos do bicho brilhando na escuridão. Na sua boca, o rato piava e se retorcia. Mas estava acabado. Aquela era a última noite dele.

O gato correu para longe com o rato na boca e se escondeu entre as calhas pra garantir o jantar.

Eu fiquei olhando pra o céu, procurando a lua entre as nuvens. Ela não estava lá...

Não me restava muita coisa a fazer além de esperar o sono ou o amanhecer do dia. O que chegasse primeiro.

Uma ambulância rasgou a avenida, rompendo o silêncio. Provavelmente carregando alguém tentando não sufocar, e esperando pelo pior.

Eu também sentia que poderia sufocar. Apesar do ar enchendo meus pulmões.

Eram meus pensamentos que tentavam me matar. A ansiedade que vinha de ter muitas perguntas e poucas respostas.

Na verdade eu não fazia questão de respostas.

Eu só queria um pouco de sono. Mas já estava acostumado a ver o sol nascer antes de poder fechar os olhos.

Desci da janela e dei de cara com Stefanie saindo do quarto.

Stefanie estava vestida apenas com uma camisa minha, que ia até quase os seus joelhos. Apesar da cara de sono, ela tinha um sorriso nos lábios.

- Sem sono? – Ela perguntou.

- Sempre.

Ela veio, me abraçou e recostou a cabeça no meu peito.

- Quer café?

- Se você fizer, eu quero. - Respondi.

Ela me deu um beijo nos lábios e foi andando até a cozinha.

Me deitei no chão e fiquei encarando o teto. Logo o cheiro de café invadiu a casa e Stefanie apareceu com duas canecas nas mãos.

Ela se sentou do meu lado e me passou uma das canecas.

Era isso. – Pensei. – Eu não poderia querer muito mais...

Talvez eu estivesse pronto, enfim,

pra amar mais uma vez. Se fosse possível.

12

Ela me destruiu com palavras que mais pareciam marretas. Mas eu me mantive firme, como um prego pronto para ser enterrado na madeira. Havia faíscas em seus olhos e fogo em sua língua enquanto ela andava pelo quarto, gesticulando com as mãos energeticamente. Ela veio e me fodeu, como dizia que gostava de fazer. E disse que não gostava de dar satisfações sobre onde e com quem andava.

Bem... “junte-se ao clube”, pensei.

mas não me atrevi a interrompê-la. Quando um burro fala o outro abaixa a orelha, era o que a minha mãe dizia.

Não que eu quisesse satisfações, ou restringir a sua liberdade. Mas ela achava que essa era a minha intenção e reagia de acordo.

Ao fim do seu discurso, eu a encarei por alguns segundos antes de dizer qualquer palavra.

Ela estava ofegante... e talvez até entusiasmada.

- Olha só, baby. Não sei de onde você tirou que eu quero ser seu dono... se não me sinto nem dono de mim mesmo.

- Desse papinho eu já ‘tô calejada. Não me faz ter que me repetir.

- Não acho que eu me preocupar com fato de você desaparecer de uma festa de madrugada e só reaparecer dois dias depois como sendo uma necessidade de posse minha. É pura preocupação apenas. Mas você sabe o que faz da sua vida e agora eu já entendi o recado.

Ela ficou parada me olhando antes de abrir a boca... como se procurasse as melhores palavras para responder adequadamente. Por fim, suspirou e sentou-se do meu lado.

- Desculpe. Eu só não estou acostumada com pessoas que se preocupam com o meu bem estar, genuinamente, pelo menos. Já apanhei tanto que terminei criando essa casca.

- Não é nada que eu já não tenha visto por aí.

- Acho que a única coisa que eu faço questão nessa vida é da minha liberdade... você sabe.

- Ninguém é realmente livre. Sempre tem algo que nos prende. Nem que seja o próprio conceito de liberdade.

- O que você quer dizer com isso?

- Não foi nada pra lhe ofender. Só uma conclusão que eu tirei observando as pessoas.

- Pode falar. Estou ouvindo.

- Sua reação agressiva, ao que você supôs ser uma tentativa de afirmar minha posse sobre você, foi realmente necessária?

- Não. Eu já disse. Falei sem pensar.

- Pois é. Foi uma reação automática. Mas não deveria ser.

- Onde você quer chegar com isso.

- A lugar nenhum. Não quero convencer você de nada. Só gostaria que você se desarmasse, caso queira continuar se encontrando comigo.

Percebi que ela pensou em contestar algo mas segurou o instinto e falou depois de um suspiro.

- Tudo bem. Eu vou tentar. Sei que eu sou uma pessoa difícil.

- E quem não é? Lá fora tem uma guerra. Tá ruim pra todo mundo.

- Você soa tão pessimista as vezes.

- É algo que eu já tentei mudar em mim. Mas otimismo parece pouco natural para mim, como filosofia.

- Quantos anos você tem mesmo? 60...

- Deve ser... Mas na cama ainda tenho trinta e um.

- Ainda bem... - Ela disse com um sorriso no rosto e me abraçou.

- Você poderia ficar comigo até de manhã? Tenho tido dificuldade para dormir. – Perguntei.

- Fico sim. Eu gosto de estar aqui.

Ela abriu a sua bolsa que estava jogada sobre a cama e tirou uma carteira de cigarros. Levantou-se, acendeu um, se recostou na janela e ficou com o olhar perdido em algo do lado de fora.

Eu poderia me acostumar com aquilo. Mas meu bom senso dizia que era melhor pensar em outras formas de aproveitar minhas noites de insônia.

13

- Eu sei que está acabado – Eu lhe disse, com minhas mãos escondidas nos bolsos da minha bermuda.

- Seria melhor se você não fizesse um drama por causa disso.

E ela juntou as bitucas de cigarro que tinha fumado durante toda a noite e jogou num cinzeiro. Como se tivesse escondendo os vestígios de um crime.

- Eu costumo reservar o meu drama para mim mesmo, você não precisa se preocupar com isso. – Respondi.

- Acho que isso tudo foi um erro. – Falou, enquanto calçava as sandálias. E foi como se ela não tivesse mais nada a dizer.

- Você deve estar certa. – Concordei, tendo cada vez mais certeza de que a vida é um touro de rodeio, e que eu estava novamente no chão.

Stefanie saiu pela porta, mas o perfume e o cheiro de cigarro ficaram espalhados pela casa.

Os pratos sujos que não lavamos estavam na pia, junto com uma taça de vinho com uma marca de batom quase obscena que ela deixou sem esvaziar.

Enchi a pia d´água, joguei o vinho fora e voltei para a sala.

Me perguntava sempre de onde vinha minha tendência em me meter em situações como aquela, e dei de cara com ela, à beirada da minha janela, tentando disfarçar um choro.

Me escondi para que ela não me visse, e acompanhei a distância, cada soluço e lágrima que ela deixava sair de dentro de si.

Vi hesitação ali. Mas ela foi se recompondo e saiu pela portaria, pra entrar num táxi e desaparecer da minha vista, como todas as outras haviam feito de uma forma ou de outra.

Mas talvez ela não fosse tão impermeável quanto gostava de parecer.

No fim, eu ainda me sentia mal, como se tivesse sido pisoteado no rodeio que vinha sendo a minha vida.

Me sentei no chão da sala, abri o notebook e me pus a escrever.

“Meu querido amigo Pablo”. Comecei...

“Já passa da meia noite, então já é domingo, e eu estou sentado na minha sala, menos bêbado do que gostaria. Estou te escrevendo pra dizer que Stefanie finalmente me deixou. E deixou de uma forma espetacular que eu sequer consigo começar a compreender. Talvez você possa me ajudar nisso (apesar de que eu acho difícil).

Bem, ela chegou as 17h, com uma mochila nas costas e uma garrafa de vinho tinto seco. A encontrei no ponto de ônibus e fomos ainda num mercadinho para que ela comprasse uma carteira de cigarros e um isqueiro. Ela parecia cansada, mas ainda assim eu via um ânimo quase frenético emanando dela. Quando chegamos em casa ela pediu para ir ao banheiro e trocou de roupa. Tirando a calça jeans e a camiseta e colocou um vestido florido, meio surrado. Não demorou pra que eu percebesse que ela não usava nada por baixo do vestido.

Ela foi pra a janela e acendeu um cigarro e se virou pra mim com um sorriso. O tipo de sorriso que desarma qualquer um. Mas eu vou poupar você dos detalhes menos interessantes e simplificarei dizendo que a noite foi fantástica. Sensual, etílica, canábica, erótica, musical... tudo isso de um jeito muito fluido. Em certo momento, estávamos os dois completamente despidos e jogados no chão da sala, com ela me provocando constantemente, arrepio atrás de arrepio. Depois fomos ao quarto e transamos mais duas vezes. Eu dormi primeiro e quando acordei, vi que ela estava andando inquieta pelo quarto, com um dos meus textos impressos na mão. Percebi que ela tinha lido vários deles enquanto eu dormia.

Ela virou para mim e perguntou se as mulheres em meus textos eram reais. Eu respondi com toda a sinceridade que havia dentro de mim, mas aquilo parecia lhe doer mais do que o normal. E ela me disse que não poderia se envolver com um homem como aquele que estava retratado em minhas páginas. E que sobretudo, não queria ser como uma daquelas mulheres.

Discutimos por algum tempo sobre o assunto, depois transamos e ela foi tomar um banho. Quando ela saiu, eu percebi que estava tudo acabado. Resolvi não questioná-la em sua resolução, e ela foi embora. Mas não antes que eu a visse chorando do lado de fora, como se aquilo tivesse realmente lhe doído. Não vou fingir entender as motivações dela, mas também não dá pra saber o que o passado das pessoas esconde. Apesar de eu não fazer muito esforço para esconder o meu. Agora acho que vou voltar para o vinho que eu ela deixamos pela metade. Devo te enviar essa carta enquanto ainda estou bêbado, e espero que você não esteja sóbrio quando for lê-la.

Abraços,

Rômulo.”

Enviei o texto ao meu amigo e tomei um gole de vinho diretamente da garrafa. Decidi que iria dormir depois de esvaziá-la e esperar que o dia seguinte não me trouxesse uma ressaca, tão amarga quanto a própria bebida com a qual eu me embriagava.

14

- Suas histórias sempre começam ou terminam com sexo, sempre com um tipo diferente de mulher – Stefanie disse ao telefone.

E eu achei que não tinha nada para lhe responder, então fiquei calado.

- Você deve ser um tipo de obcecado – Ela continuou.

- É?

- Sim. Mas por algum motivo eu gosto de ler as coisas que você escreve.

- Quer sair para tomar uma cerveja? – Perguntei-lhe.

- Não sei se devemos.

- O que nos impede?

- Na verdade, nada.

- Então por que não?

- Porque eu não quero ser mais uma delas.

- Ah, sim.

- Não é por nada. Eu só não sei se quero começar mais uma história conturbada com alguém.

- É justo.

- Você ficou chateado?

- Não. Está tudo bem.

- Vou esperar ansiosamente pela sua próxima história.

- Está certo.

Ela desligou, e eu larguei o celular no sofá da sala, como se não fosse algo muito importante. Fui até a janela e fiquei observando os ônibus passando pela avenida.

Não deu cinco minutos até que a campainha tocasse. Andei até a porta e vi Pablo na minha frente, dessa vez com os cabelos platinados e um sorriso no rosto.

Eu abri para que ele entrasse e ele me deu um abraço e se acomodou na sala.

- Gostei do AP.

- Obrigado. Quer uma cerveja?

- Por favor.

Fui até a cozinha e peguei duas latas.

Quando retornei à sala ele estava sentado no chão, com uma das minhas gatas no colo.

- E aí? Para onde você quer ir hoje? - Pablo perguntou.

- Qualquer lugar que dê pra conversar e não falte cerveja.

- Ah. Podemos ir pra o centro... O que não falta é bar pro lado de lá.

- Ok. Só me deixa tomar um banho.

- Tá. Vai sem pressa. Ainda tá cedo.

Eu bebi boa parte da lata numa golada e fui para o banheiro.

Quando retornei, Pablo estava sentado na varanda acendendo um cigarro. Dava pra ver a carteira de Gift semi exposta no bolso de sua camisa. Pelas bitucas amassadas no parapeito dava pra ver que não era o primeiro.

- Você está meio estranho. – Ele falou depois de uma tragada.

- Não é nada. Nada demais.

- Mulher?

- E quando não é?

Ele riu e se engasgou com a fumaça.

- É foda. Eu também estou meio encalacrado por causa de uma.

- Mas no meu caso não é nada pra perder muito tempo pensando. Eu só achei que era uma coisa, e no fim era outra.

- Acho que é sempre assim. O enredo às vezes varia, mas o resultado é o mesmo.

- Bem. Por isso que existe a cerveja, não é?

- A cerveja, o vinho, a cachaça e outras drogas leves recreativas.

- Claro, claro.

Juntamos nossas coisas e metemos o pé na rua. O ônibus passou logo em seguida e nós dois subimos e fomos até o fundo para nos sentar.

- Fiquei curioso sobre o que aconteceu entre você e Stefanie. – Pablo falou após se sentar.

- Ah. Acho que no fundo o que ela me disse não fez sentido nem pra ela. Mas eu fingi que estava tudo ok.

- E o que ela disse?

- Ela sempre falou que gostava das coisas que eu escrevia... Que achava profundo, intenso. Mas acho que se assustou justamente com isso. Falou que não queria ser só mais uma no meio das minhas histórias.

- Você tem que ver o lado positivo.

- E qual é o lado positivo nisso?

- Pelo menos ela colocou um fim antes de começar a ficar muito sério. Foda é quando o fim vem depois do começo.

- Não sei se te entendi.

- É assim cara. Quando aparece uma mulher e ela abre um buraco no teu peito e se enfia lá dentro... E de uma hora pra outra você se vê como um viciado, seja no cheiro dela, ou na forma que ela te olha, ou como te chupa, ou te beija. E daí, quando decide ir embora, ela deixa o buraco atrás de si. É como se te dessem um tiro e você sentisse falta da bala depois de arrancarem ela de dentro do seu peito.

- Porra, é isso... Mas infelizmente foi exatamente o que aconteceu comigo agora – Respondi perplexo.

- E isso quando não somos nós que fazemos a merda, por tédio, canalhice ou imperícia mesmo.

- Bem. Acho que você está certo.

- No fim estamos fadados a esse ciclo vicioso de paixões e solidão. E por enquanto eu tenho preferido estar sozinho.

Foi quando o meu telefone tocou no bolso da minha calça.

Peguei o aparelho e vi uma mensagem.

“Acho que podemos tomar sim aquela cerveja”

Era Stefanie.

Mostrei a mensagem a Pablo e ele sorriu.

- Está aí a sua bala, meu amigo, vamos ver se ela te acerta mesmo.

- Pode ser que sim, mas hoje prefiro me resumir à cerveja e aos amigos de mesa de bar.

- Parece mais do que o suficiente, meu amigo.

Descemos do ônibus e paramos no primeiro bar na primeira esquina mal iluminada do Centro do Recife. Ao descer, fomos lavados por um chuvisco leve carregado por um vento frio.

Era Setembro... Nada de novo a se esperar.

15

Depois de seis semanas e dois dias, eu e Stefanie resolvemos voltar a transar. Mesmo que as coisas continuassem na mesma bagunça de sempre. Bem. Tanto fazia que ela passasse o dia comigo. Ou só batesse na minha porta e se deixasse ficar por algumas horas.

Na real. Tanto fazia pra ela. Como Stefanie gostava de dizer.

para mim era uma merda. Por que eu realmente não estava muito à vontade com toda aquela sobrecarga emocional e com toda a incerteza.

Mas algo tinha me impedido de ligar o foda-se e seguir com minha vida sem ela.

Nesse meio tempo, novembro ia se arrastando e o sol é que tinha ligado o foda-se para toda a raça humana. Pelo menos pra o povo que vivia em Recife, que tinha se tornado um forno à céu aberto. E eu imaginava que era a mesma coisa lá em Olinda, por onde ela costumava a bater perna e se embriagar de axé até o dia clarear. Pra chegar na minha porta com a maior cara lisa do mundo e perguntar se eu tinha seda para o baseado dela. Mas é claro que além da seda, ela se apropriava da minha cama e de um pedaço da minha sanidade e paz de espírito também.

Qualquer dia desses eu ia manda-la pro inferno... antes que ela desaparecesse no carnaval pra ressuscitar na semana santa.

Mas não. Eu não me arrependo de nada.

Só que ainda me pergunto onde ela estaria a uma hora dessas.

Se estaria fodendo

bebendo, amando, ou pensando

se é que ela ainda pensa

em mim,

além do sexo

além da carne.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 31/03/2022
Reeditado em 26/10/2022
Código do texto: T7485091
Classificação de conteúdo: seguro
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