Putrescina (Cap. V)

Quando uma efêmera centelha tinha a rara oportunidade de iluminar, ainda que fracamente, o negror de seu horizonte, Ernest se forçava a deixar o casarão e passear pela vizinhança que lhe testemunhara o triste crescimento.

Trajando um longo sobretudo negro que se lhe arrastava por detrás como uma extensão do corpo e cujas golas lhe cobriam a boca, e um pesado par de botas gastas, saía a carregar o peso do existir, caminhando lento e contrito como se participasse de um funeral no papel de uma antropomorfização do próprio Luto, atraindo aqueles olhares de curiosidade hostil, que tentavam perscrutar e mensurar seu sofrimento, com os quais já estava acostumado.

O viúvo andava sem destino fixo, e sem pressa de ir ou chegar; mantinha o mesmo passo vagaroso, ritmado, passando pelos mesmos lugares de sempre, como se houvesse sido programado para fazê-lo. Por mais que seus dias na cidade de opressivos prédios e poluição não houvessem sido dos mais recompensadores (aqui empregando um perceptível eufemismo), ainda assim se entristecia ao ver que mesmo aquele lugar não era imune ao fluxo contínuo do Tempo. Um ou outro edifício do qual guardara resquícios de memória afetiva foram demolidos para dar lugar a novos edifícios, que algum dia também seriam destruídos e assim sucessivamente; uma praça, um monumento, um muro que lhe aparentavam ainda mais depredados do que se recordava desde que partira; uma das já raras árvores que fora cortada – nem mesmo seu lugar de exílio voluntário lhe era familiar! As mudanças o deixavam enervado, pois sentia que só ele haveria de permanecer congelado num ponto fixo do Tempo.

Foi numa destas suas caminhadas que se sentiu compelido a passar pelo antigo colégio onde estudara, vetusta construção de um século muito mais severo do que este nosso, dedicado a educar única e exclusivamente a nata da sociedade da cidade de … O lugar parecia ainda mais decadente do que se lembrava, em estado não só pior do que a própria casa de Ernest.

Com desdém é que se recordava dos anos que lá passara; dos mestres pomposos e pretensiosos que nada tinham a lhe ensinar de fato, e de seus colegas de turma que o insultavam e provocavam. Numa tentativa vã de se consolar de seus dissabores, gostava de pensar com seus botões que, a essa altura, grande parte de seus velhos mestres já não mais existia neste plano, e seus colegas, com os quais (para seu grande júbilo) perdera contato após a circunspecta cerimônia de formatura, viviam vidas piores do que as dele – coisa da qual duvidava muito, afinal de contas.

Suas usuais tristonhas reflexões foram cortadas por gritos e risos juvenis que ouvira por perto. A alegria dos jovens o deixava ligeiramente incomodado, porque não pudera senti-la por quase toda a sua própria juventude, mas apesar da disposição pesarosa, não era um misantropo no sentido estrito da palavra, então fazia o possível para não perturbar a felicidade alheia. Mas quando entre as risadas adolescentes discerniu exclamações de dor, aguçou ainda mais os ouvidos, e correu na direção do som.

Não muito longe dali, um grupo de adolescentes, entre 14 e 17 anos, portando os uniformes da supracitada instituição de ensino, maltratavam outro rapaz, também uniformizado; um pisoteava-lhe a cabeça, imergindo-a numa poça de lama de onde entulhos e outras imundícies se viam sobressalentes, enquanto os restantes cúmplices observavam a distância, gargalhando estupidamente. “Os porcos gostam de lama, não gostam? Pois então aí tem a sua!”, zombava aquele (um rapaz deveras feio, de cabelos raspados e rosto redondo) a afogar sua vítima. Ernest não gostava de injustiças, em primeiro lugar porque seus sofrimentos jamais minaram a bondade de seu coração, e em segundo porque, tendo sido sujeito a tantas no passado, sabia o que era ter empatia: avançou perante o garoto cruel, dando-lhe um soco na cara e fazendo com que caísse quase de cara na enorme poça de sujidades.

“Quem foi que lhe deu o direito de se intrometer, velho?”, gritou, mal-educado, o agressor. “É algum amigo seu?”, continuou, se levantando atabalhoadamente e dando um chute na barriga do pobre mocinho abatido, que gemeu de dor. Apesar da compleição magricela, Ernest não era de todo um mau lutador; o pouco que sabia, aprendera sozinho para se defender dos algozes de sua infância. Ardendo em fúria, agarrou o pequeno biltre pelo colarinho, e após dar-lhe alguns tabefes disse entre dentes:

“Saiba você que eu sou um V…, garotinho impertinente. Se por acaso eu souber que segue maltratando pessoas inocentes, posso fazer com que passe o resto de sua juventude transviada encarcerado!” E soltou-o com brusquidão, fazendo com que caísse novamente, desta vez de costas, rumo à lama.

“Ele é um V…! Vamos embora daqui”, gritou, esbaforido, um dos asseclas do valentão. “Com o dinheiro que ele tem, pode mesmo nos mandar prender por toda a vida!”

“Ou até mesmo contratar alguém que nos mate!”, arrematou o outro, tremendo. Ernest percebeu que não eram lá muito inteligentes, mas fosse como fosse, desataram a correr na direção do colégio, com o aparente líder volta e meia olhando para trás, fuzilando sua vítima e o homem com esgares de ressentimento.

Tão logo desapareceram no horizonte, Ernest estendeu a mão para ajudar o mocinho a se levantar; este soluçava de dor e de medo. Todo coberto de lama, mal parecia um ser humano de tão imundo e irreconhecível que estava. Agarrando timidamente a mão de seu salvador, levantou-se com muito sacrifício.

“Você está bem?”, lhe perguntou Ernest com gentileza. “Quem eram aqueles meninos? Por que eles o maltratavam assim?”

O menino não conseguia responder. Apenas encarava o homem com seus grandes olhos castanho-claros, ainda mais arregalados pelo medo e pela surpresa. Logo, porém, baixou-os ao chão. Ernest teve uma estranha sensação ao ver que eram idênticos aos olhos de sua falecida esposa – ou talvez fosse só sua imaginação, pensou. Ainda assim, se sentiu deveras aliviado quando o rapazinho parou de encará-lo. Ambos continuaram num silêncio quase que palpável por mais alguns instantes até que o adolescente tomou a iniciativa de cortá-lo:

“Obrigado por me ajudar”, foi tão só o que disse, quase num sussurro, como se tivesse medo de ofender seu interlocutor com o mero ato da fala.

“Ora, não precisa me agradecer”, respondeu Ernest, bruscamente desperto de seu devaneio. “Fiz o que qualquer pessoa de bem teria feito. Mas por que…”

“Preciso ir agora, adeus”, o mocinho interrompeu-o, e seguiu seu caminho rumo ao colégio com os outros, cabisbaixo e sem olhar para trás. Ernest ainda ficou ali parado, sem que compreendesse nada daquilo; só pensava em seus olhos imensos, e em como lembravam os de sua mulher. A coincidência açulou ainda mais seu pesar corriqueiro: ao mesmo tempo que pensava com um certo receio que o Destino lhe mandara aquele doppelgänger para atormentá-lo ainda mais, não podia deixar de rememorar, com sempiterna paixão, as graças de sua amada. Voltando para o solar arruinado, pois sentira que já tivera aventuras o bastante naquele dia, Ernest não conseguiu encontrar nada que lhe distraísse os pensamentos daquele menino enlameado e, principalmente, seus olhos, passando a noite toda em claro com aquele par de olhos a acossá-lo – somados às visitas de praxe do fantasma da esposa.

[Continua no Cap. VI]

Eutychus Euphorion
Enviado por Eutychus Euphorion em 17/02/2025
Código do texto: T8266531
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