Putrescina (Cap. VI)
Já alguns dias haviam se passado desde os feitos heroicos de Ernest, mas não se podia dizer o mesmo de sua obsessão pelo mocinho. Sem que fosse capaz de tirar seus olhos do pensamento, ou chegar a qualquer conjetura plausível sobre sua triste existência, tão triste a ponto de apanhar sem que ninguém interferisse – muito provavelmente o teriam matado se ele, fortuitamente, não aparecesse para defendê-lo –, o homem sentia que seu cérebro, já tão fragilizado, estava a ponto de rachar como um ovo; voltou várias vezes às imediações do colégio com o intuito de reencontrar seu estranho amigo, mas suas buscas foram infrutíferas. Chegou mesmo a ver o valentão a quem ameaçara, que mal lhe pôs os olhos virou o rosto e fugiu com pressa; no entanto, o objeto de suas perturbações parecia ter simplesmente desaparecido.
Certo dia, enquanto cumpria religiosamente seu ritual de reler as cartas da esposa, mesmo que já não conseguisse se ater à leitura devido às suas preocupações com o garoto, ouviu baterem-lhe à porta; a princípio, ignorou-o como sempre o fazia. Desde que retornara à casa para pagar pelos pecados, fechou sua moradia a quem quer que fosse – uma ou outra alma caridosa tentou visitá-lo, a princípio, para lhe oferecer condolências, majoritariamente amigos da família com os quais tinha pouquíssima intimidade e parentes distantes, mas ante suas recusas empedernidas finalmente o relegaram à solidão completa que tanto queria. Quando as batidas começaram a redobrar sua intensidade, Ernest resolveu despachar o mais rápido possível a irritante visita; andou até chegar à enorme porta de entrada de sua morada, se preparando para lançar algum impropério à face de quem quer que fosse (não que fosse naturalmente grosseiro; estava apenas mentalmente fatigado), mas tão logo abriu-a e inflou os pulmões para mandar o visitante embora aos gritos, quase engasgou-se com o ar e sucumbiu ao ver que aquele que lhe roubara o pouco do sossego que ainda lhe restava fora quem aparecera, sem mais nem menos, ali em sua soleira!
Agora que seu rosto não estava mais coberto de lama, Ernest pôde distinguir seus traços faciais: ele não era um garoto feio, muito pelo contrário. Seu rosto era de uma beleza delicada, andrógina, mais voltada ao Feminino que ao Masculino, acentuada pelos imensos, lânguidos olhos de mulher e pelos cabelos cor de palha, encaracolados como os de um amorino renascentista. Em contrapartida, num contraste grotesco em relação à beleza física, estava horrivelmente encardido e malvestido: trajava uma vez mais o tradicional uniforme do colégio, a jaqueta azul desbotada e puída sobre a camisa que, de branca que costumeiramente era, nele se via de um tom amarelado sujo. O calção curto, também de cor azul, desnudava-lhe as pernas magras e deixavam à mostra as meias enxovalhadas e em desalinho; os sapatos negros estavam gastos e pareciam que se desmanchariam em pleno ar a qualquer momento – um furo no pé esquerdo deixava entrever uma nesga de seu dedão. Ele se postava cabisbaixo e tímido perante Ernest, como se esperasse que o homem o punisse por qualquer falta muito grave; este, por sua vez, encarava o menino como se estivesse sonhando – mas o pungente odor que exalava de seu corpo, que o lembrava de uma mélange de frutas podres, confirmava que estava perfeitamente desperto.
“Ora! É você”, disse Ernest, tão logo recuperou a compostura. “Você está bem? Como sabia que eu moro aqui?”
“Você disse que era um V…”, respondeu o menino, submisso. “Obviamente deduzi que esta casa era sua, como qualquer outro da cidade.”
O homem corou ante a imbecilidade de sua pergunta. Como podia ter se esquecido de seu status da curio por excelência do lugar? “Oh, é mesmo”, arrematou abobalhadamente, “mil perdões. Gostaria de…”
“Obrigado por ter me defendido”, cortou-o o adolescente estranho, “mas preferiria que não houvesse interferido. Gosto de me enxergar como uma flor de lótus, e as mais bonitas brotam nos lamaçais mais insalubres.”
“Poderiam ter te matado!”, exclamou o viúvo, perturbado.
“Quem sabe fosse melhor assim”, replicou o garoto.
Sua resposta surpreendeu o estupefato Ernest. Aquele menino, que não parecia ultrapassar os 15 anos de idade, lhe falava na Morte! Nem mesmo ele ousara pensar n’Ela com aquela idade! Ele começava a se interessar ainda mais por aquele jovenzinho esquisito.
“Não diga uma coisa dessas”, proferiu Ernest, mesmo não tendo tanta certeza do que haveria de argumentar, afinal de contas; sabia que só haveria de repetir usuais clichês, os mesmos que ouvira quando as esperanças lhe começaram a escorrer após o falecimento da esposa. “Aposto que sua vida tem importância para alguém. As coisas podem melhorar uma hora dessas…”
“Não me importo se não mudarem”, o jovem o interrompeu novamente. “Em verdade, acho que se me conhecesse a fundo não tentaria me ofertar qualquer consolo.”
“Fala como se houvesse feito algo muito ruim, meu rapaz. Por que não entra? Gostaria muito que se explicasse…”
“Não. Se realmente se preocupa comigo, venha me visitar em minha própria casa – garanto que seus escrúpulos vão desaparecer tão logo saber o que sou.”
“E onde fica sua casa?”, perguntou Ernest, desconcertado com o rumo daquele diálogo.
“Na rua …, número …” O homem ficou chocado com a resposta, pois não imaginava que, naquele estado de desleixo, o menino morasse numa das ruas de maior afluência da cidade.
“Ora, sigamos juntos para lá então!”
“Não; venha amanhã de manhã. Darei um tempo para que repense sua decisão. Inclusive, não o culparei se nem ao menos aparecer.”
Dito isto, ele deu meia-volta, preparando-se para ir embora, mas Ernest o impediu com uma mão no ombro. O menino arregalou os olhos feminis, encarando o viúvo com temor, que aproveitou o ensejo para se embeber com eles – mas, ante um gesto tranquilizador de sua mão, retornou à tristonha calma.
“Tenha calma! Só gostaria de saber seu nome”, disse Ernest, apaziguador. O garoto baixou os olhos ao chão, respondendo quase num sussurro:
“Me chamo Theo.”
“É bom conhecê-lo, Theo – muito mesmo. Prometo que serei seu amigo, se não tem nenhum.”
Theo pareceu sorrir timidamente, mas não respondeu ao comentário amigável de Ernest. Apenas seguiu seu caminho, devagar, levando consigo seus andrajos e seu agridoce odor corporal, deixando o homem ainda mais confuso – e mais obcecado por aqueles olhos que não cessavam de zumbir feito um impertinente mosquito ao redor de sua mente escangalhada. De qualquer forma, pelo menos agora sabia que o dono daqueles olhos era real, e tinha até mesmo um nome e um endereço, e em pouco menos de 24 horas todo o mistério lhe haveria de ser explicado – ou, pelo menos, assim o queria crer.
[Continua no Cap. VII]