Coisas não escritas
 
Muitas coisas não estão escritas, apenas pensadas, mas o pensamento tem uma fluidez que não permite a permanência das coisas não escritas, essas coisas desaparecem quando algo interrompe o pensar e novas coisas vão surgindo, mas como também não serão escritas vão desaparecer e o céu vazio de nuvens não tem lugar para armazenar essas coisas não escritas que se perdem para sempre ou sobrevivem através de fragmentos reprodutores.
 
Quem conta um conto aumenta um ponto por isso é preciso que as coisas sejam escritas, coisas só pensadas, quando repensadas o são de forma diferente, um ponto a mais ou a menos nunca dá para precisar, já não é a mesma coisa.
 
Penso agora no que pensei mais cedo e já não consigo acertar o passo: foram três ou quatro músicos que vi hoje na calçada, tocando aqueles instrumentos, quais mesmo? Sei que deveria ter tirado uma foto, mas aí pensei, isso será politicamente correto? Tenho que pedir licença? Ou fotografar disfarçando como se estivesse fotografando outra coisa? Uma foto não transmite o som e o que era mais importante ali era o som, mas como transcrever um som apenas na mente já que o ouvido é mouco para muitas coisas tais como melodias e línguas estrangeiras?
 
Pergunto: O que tem maior valor – o escrito ou o não escrito? Para que serve o escrito se não para fixar o pensamento não escrito na lembrança? O não escrito vem primeiro, mantendo-se sempre assim ou modelado em formas identificáveis. O escrito é imutável enquanto o não escrito é volátil e adaptável. Evolui conforme evolui a mente que emite o pensamento.
 
O não escrito não pode ser lido e isso faz com que sua vida útil seja efêmera e seu alcance espacial diminuto em relação às coisas escritas, mesmo assim ele tem a pureza da originalidade preservada, sem os retoques das coisas escritas que são maquiadas para se apresentarem de acordo com as normas vigentes ou para romper com elas, mas de uma forma impura, porque modificadas.
 
Só vale o escrito é o que dizem certas gentes para coisas tanto da Fé quanto da Lei, mas o escrito às vezes é tão torto que nem dá para entender então o que resta são as interpretações quase nunca escritas, cada cabeça uma sentença. Para fazer valer o escrito realmente seria preciso que a linguagem utilizada fosse tão simples que não gerasse interpretação, fosse assim tal e qual na matemática, onde sempre um mais um são dois (Mas e se alguém achar que são onze?)
 
E enquanto escrevo o que penso, muitas coisas também penso e não escrevo, guardando só para mim no baú do coração.
 
 
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