Último dia

Dou-te hoje tudo o que posso e tenho. E tudo o que tenho e posso é nada mais que este textículo.

Lembro-me bem do dia de hoje. Com muito custo ao coração e nenhum à memória.

Dezoito. Mas poupo-lhe dos detalhes de mês e ano porque também assim impessoalizo-me. Hoje é nosso dia. E veja bem: afirmo, com toda a segurança que tenho em mim, que não deixou de sê-lo, nem mesmo por um segundo.

Enquanto éramos, assim nós o havíamos definido, intitulando-o para que fosse. E mesmo hoje, que não mais somos – e tenho por ousadia minha dizer que nós vestimos tão bem as roupagens do nada que, aos olhos de quem nos desconhece, nascemos para nada sê-lo -, ainda que sem querer, não deixamos de tê-lo como nosso. Muito embora em ti nada mais seja - e sequer creio viverem em tua memória lembranças tais -, declaro que, em mim, o mundo fez questão de anotá-lo como eternamente nosso.

E eu não te culpo. Tampouco culpo tua memória fraca, mas seletiva. E também é verdade que meu tempo de insatisfação e rebeldia já até se desfez. Dissolvido em lágrimas e outros porres tantos, o amor também já deixou-se esvair. Quieto e observador, quase como quem acredita que é incapaz de amar, eu juro a mim mesmo que não amo você. Eu não amo você! Não mais.

E é aqui que mora a minha dor. Eu, que durante tanto tempo, acreditei ter nascido para amá-la, tive de aprender, entre apunhaladas e os murros mundanos, que jamais deveria ter tentado fazê-lo. Me perdoe, Mundo, pelos erros que cometi em nome daquilo que entendia se tratar de amor. Perdoa-me, você também, por ter falhado em amar por nós dois.

Teu nome, que me servia de mantra para os dias mais difíceis, hoje faz-se impronunciável. Acredito eu que por nele haver tanta memória capaz de me fazer duvidar de mim mesmo e de minha tenra resiliência.

Logo eu que jurei a mim mesmo ter volatilidade tão grande a ponto de causar inveja a qualquer bom gás. No fim, notei que química nenhuma explicaria o que é a dor de amar.

Não é que você vá me entender. Sei que tampouco vai me ouvir, já que, afinal, eu também jamais te falaria. Mas só para que saibas, eu hoje despeço-me de ti. Espero genuinamente que hoje seja o nosso último dia, principalmente se considerarmos que nós existimos somente em mim. Parece-me que - tão mesquinho - até o mundo fez questão de nos esquecer, deixando que você viva somente em mim. E eu já não quero mais ser o único berço de sua tão esquecida vida. Infelizmente, por não haver forças para continuar, deixo-te ir. E espero ser capaz de, enfim, colocar verdadeiro fim ao processo do esquecimento, deixando queimar todos os livros que me existem na biblioteca da memória.

A tinta já começa a falhar, convidando a lembrança para o tango. E a memória, por sua vez, educada que só, decide acompanhar. De traço em traço, palavra após palavra, eu vou matando o que de nós ainda existe em mim para que então possa começar a viver outra vez.

um poeta da noite
Enviado por um poeta da noite em 18/04/2018
Reeditado em 16/07/2020
Código do texto: T6312534
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