Out

Afundo o rosto no travesseiro em busca do cheiro de um couro cabeludo que nunca pousou nele. Enrosco-me aos fios dessa ilusão que restaram inertes na pátina do esquecimento. Desvanecer-me por ainda respirar, mesmo que a contragosto, mecanicamente. No meio dessa névoa de hormônios para dormir, eu escuto vozes belicosas cortando a madrugada, um caminhão esporádico gritando na frenagem na lombada da frente do prédio. A trava mental é real. Entre uma diligência ao banheiro e outra à cozinha, amaldiçoo. O bloqueio é um peso pulsante dentro do peito, um balde de água despejado direto nos pulmões. Me afogo no vazio do que sinto, do que penso. Não vejo mais porque estarmos e sermos. Mesmo as coisas mais simples adquiriram uma aura dúbia de escolha e renúncia. A tristeza que sinto quando penso no que fomos é doída, embargadora de goelas, de língua e voz. O conflito interno é contínuo e tão produtivo quanto correr atrás do próprio rabo o é para um cachorro - me desgasto. O que eu posso fazer para me ajudar hoje? Para além da sucção de vitalidade que é maçada burocrática laboral, digo. Rodear a cidade pequena em busca de ver a vida, ver gente, essa gente metida a besta colocando o país na forca, ver os carroceiros imundos, as matilhas mortas de fome indiferentes aos carros, deitadas no meio das ruas - mas chove, não dá. Como? Restarão as paredes de sempre ao fim do dia. O chão sarapintado de barro seco que se desprende dos vincos das solas dos sapatos e a preguiça de varrer. A comida instantânea industrializada feita às pressas e azia e a louça por lavar. As taças com resto de vinho fermentado ao amanhecer do outro dia. Saudades da cidade grande, de temer pela vida a cada esquina, de desconfiar de qualquer criatura bípede de aparência humana e da multipluralidade dessas paixonites que viram a gente do avesso, de num átimo fortuito bater a retina numa criatura jamais vista antes e não a tirar da cabeça por meses. Ao contrário dessa penúria diária da mesma efígie e do mesmo perfume do cão insuflarem o desassossego de quem está perdido.

17/10/2018

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 17/10/2018
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