ME COLARAM NO TEMPO

Me colaram no tempo, puseram-me

uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou

limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,

a leste pelas epístolas de Paulo, a oeste pela minha fé claudicante.

Me vejo numa nebulosa, rodando, sou fluído,

depois chego à consciência da terra, ando como os outros,

me pregaram numa cruz, na minha única vida.

Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.

Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.

Danço, rio e choro, estou aqui, estou ali, sempre desarticulado,

gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,

alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é bem

nem o mal.

Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,

tonto de vida, de cheiros, de movimentos, de pensamento,

não acredito em nenhuma técnica.

Estou com os meus antepassados, balanço minhas pernas em arenas romanas, é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,

depois estou sempre a rir com os meus tios doidos, às gargalhadas,

na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim

Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...

Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.

Onde esconder minha cara? O mundo samba em minha cabeça.

Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,

presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção. O mundo vai mudar de cara,

a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

Andarei no ar.

Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,

me aninharei nos recantos do corpo da noiva,

na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.

Tudo transparecerá:

vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,

o vento que vem da eternidade suspenderá os passos

dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres

vibrarei nos canjerês do mar, abraçarei as almas no ar

me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.

Detesto os que lhe tapeiam,

os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens "práticos". ..

Viva São Francisco e vários suicidas, amantes suicidas,

os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,

as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.

Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam

viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.

Sou a presa do homem que fui há vinte séculos passados,

dos amores raros que tive,

vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,

tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,

estou no ar,

na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,

no meu quarto modesto da praia de Botafogo,

no pensamento dos homens que movem o mundo,

nem triste nem alegre, chama viva com dois olhos, andando,

sempre em transformação. Sempre em transformação!

Celio Govedice
Enviado por Celio Govedice em 12/11/2020
Código do texto: T7110073
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