O copo

Guiberto Genestra

Outubro/2003

Numa noite de temporal, entre um copo e outro, minha cabeça pende ao lado como pífia poça d’água em ladeira inclinada. Seguindo a réplica, o corpo e o copo sobre a mesa, tombam no mesmo sentido.

A garantia para que o copo não se esvazie no espaço é um par de dedos que lhe cerca sem tanta força ou fé. Um passo para a displicência.

A minha, para não me exaurir pelo cansaço é confiar na sua mão me cercando o dorso da nuca, no telegrama entregue a pouco e numa balsa partindo pra fora do Continente levando a gente. Um passo para a delinqüência

Entretanto é hora de ir. A chuva passou pro lado de lá da calçada, ficaram apenas nuvens. Inclusive as minhas.

Pedi então à mulher do bar que o vinho fosse seco e amargo. Pedi então à mulher do bar que o vinho fosse barato, que o barato fosse vagabundo e que o vagabundo o entornasse num só gole. Pedi ainda à mulher do bar que não se preocupasse com a dose do desequilíbrio com a fúria ou com o tom uníssono do ressentimento. Pedi também à mulher do bar que tomasse cuidado ao descer da escada velha, escancarada como estava, ao sacar o vinho da prateleira.

Não podia ela correr o risco de cair nem eu de acudi-la naquele momento, tinha mais o que fazer.

Assim fui. Um vagabundo, com um vinho enconchado debaixo do braço e tão vagabundo quanto eu andar fleumático pela calçada e pelo meio fio num estado vadio, só não bobo pro vacilo.

Preciso me entregar são em casa, me refugiar na trincheira que escavei sozinho e ajustar o quebra cabeças do meu traseiro na almofada sobre a cadeira. Caserna onde vivo em constante delírio.

Apertar um cigarro, lança-lo entre os dedos e caçar a luz da luminária que me filma à direita dos olhos e em diagonal. Esparramar em sua direção uma nuvem de fumaça e recriar um palco pra assistir ao meu drama particular, lançando partículas das minhas iras, frações dos meus canhões e enésimas da minha dor e do meu prazer pela paixão.

E essa parafernália de pensamentos tão súditos quanto solitários se manifestam numa dessas noites que fico diante de um fundo branco com pequenos planetas negros, registrando minha história em suas páginas, até que o corpo caia e até que o copo se rompa no asfalto em ladeira inclinada na beira da esquerda de uma pífia poça d’água

Guiberto Genestra
Enviado por Guiberto Genestra em 18/08/2006
Código do texto: T219385