A espera do abutre

A solidão amanhece em cólera e escorre na aurora,

Imbuída por chagas renascentes que

ardem a cada despertar da pulsação solar.

A luz frita a ferida e como as flâmulas de outros dias,

sou levada a ter minhas cinzas reesculpidas depois

de cremarem-nas no dia anterior;

Feito Fênix, eu volto a me recompor, regenerando as asas de uma consciência inflamada.

Ah, toda manhã meu peito infla de certa coragem de vida, mas meus olhos corroem sob a aurora,

como se pressentissem o clarão dolor de expor as chagas da visão interior.

Mais ásperos são os vermes ignotos que roem a carne da existência e me dilaceram à sombra do

calor, mal sabem eles que ainda não morri.

É apenas a apatia carbonizada em mutações pungentes.

É a fricção dos corpos em meus pensamentos, eles me paralisam para que o fogo emane.

Ora, e não me pergunte sobre a física sensitiva.

É o meu funcionamento, assim como o deste sol que me tortura.

A luz mistura teu flanco ao meu fogo;

E de início a percepção aquece como uma sauna em que o vapor sopra morfina, mas e o calor?

Ah, esse logo se intensifica em sua armadilha e atravessa as camadas dérmicas.

A percepção consome as artérias até me sucumbir nas cinzas do sono profundo.

O sol se pôs em suas queimadas e a noite é o carvão gasto e pueril que adormece em meus

sentidos parcialmente anestesiados.

No despertar da aurora, a luz cutuca as minhas chagas, voltarei a perceber e a queimar.

Heráclito bem que avisou sobre as propriedades do fogo. Apolo e Dionísio se abatem no fundo do meu ser, ressecados no êxtase das dicotomias de viver.

Na solidão causo incêndios de almas enquanto observo uma legião de anjos e demônios na

trilha úmida da estagnação, prontos para salvarem as suas. Veja esse abutre que me olha, ele anseia a minha hora, formando órbitas no ciclo da vida.

Na cadeia alimentar, sou tua carcaça lírica, os nutrientes das almas perdidas e da sombria sina.

- Eu não morri ainda, apenas agonizo. Digo

O meu peito infla de coragem em meio às cinzas solitárias do amor e do medo.

- Ó ave magnata dos impérios necrófagos, apenas espere, para que então, coma os detritos da

minha dor.

- Em breve, tu devorarás os restos orgânicos da minha sensibilidade entreaberta em pleno

labor da decomposição.

- Peço para que enquanto aguarda nessa ode infinita, não me afunile com seu olhar de rapina.

Nessa cadeia alimentar sou devorada viva, a vítima da percepção exposta aos raios.

O abutre aguarda mais um dia.

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 02/08/2020
Reeditado em 24/02/2022
Código do texto: T7024046
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