A infância que não vivi

Perdi minha mãe quando mal sabia dizer adeus,

num tempo em que a vida era um enigma sem nome.

A infância me foi arrancada,

e, em seu lugar, veio o peso do mundo.

Pequena demais para ser mulher,

grande demais para ser criança,

aprendi a cuidar — do pai, das irmãs, da casa —

com mãos trêmulas e alma cansada.

No recreio, eu não corria,

não gargalhava, não sonhava.

Sentava, sozinha, na sala vazia,

esperando o tempo me esquecer.

Na igreja, o eco era o mesmo:

Os da minha idade voavam em outros céus,

enquanto eu media arroz, lavava pratos,

e corrigia lições com olhos marejados.

A infância me escapava por entre os dedos,

como a água que corre de um copo quebrado.

Não aprendi a ler as entrelinhas do afeto,

a decifrar as intenções dos rostos,

pois meu mundo era feito de silêncio,

de tarefas, de sobrevivência.

Aos dezenove, busquei abrigo —

um amor que parecia porto seguro.

Mas era armadilha.

E nele, vivi vinte invernos,

de gritos abafados,

de culpas que não me pertenciam,

de um espelho que mentia todos os dias,

dizendo que eu era o problema.

Ele me moldou em dor e medo,

me silenciou em nome do amor.

E eu, ingênua, acreditei.

Mas a dor ensina onde a vida falhou.

Um dia, o grito que calei virou coragem.

Enfrentei, ergui a voz,

me protegi — finalmente — de quem prometeu cuidar.

Tremi, chorei, me desfiz.

Mas renasci.

Hoje, me olho com ternura.

Perdoo a menina que fui,

sem mapas, sem bússola,

caminhando no escuro da própria história.

Não sou culpada.

Fui forte.

Sou luz que sobreviveu a escuridão.